Arquivo do extinto blogue Esferovite- a vida em pedaços (13-08-2003/ 4-01-2006)

quarta-feira, maio 25, 2005

para saberes da minha verdade

existem uns poemas meus dos meus cinco, seis anos, em que um qualquer avaliador a posteriori poderia encontrar já uma grande parte daquilo que é a minha escrita: uma mistura entre coisas sérias e menos sérias, uma conjugação de um erudito (na altura imperceptível, quase) e um rapaz qualquer. algures entre essa idade e esta, vinte anos passaram, e algo me prende indiscutivelmente a essa dualidade. acho que nessa altura já me prendia a magia do papel em branco, mas normalmente atacava-o com mais afinco para fazer listas de jogadores de futebol de todas as proveniências. não guardo em outro lugar que não seja a memória cadernos e cadernos cheios de nomes, equipas, jogos inventados. nisso, eu era um menino como os outros.

comecei a escrever com alguma consistência (cof cof) quando tinha quinze anos. foi a lírica de camões. não que tenha ficado espantado com a poesia, nem que a métrica me tenha levado ao encontro do ritmo. gostava, gostava daquilo. dava vontade de ir escrever alguma coisa. e por isso os meus primórdios de escrita são adolescentemente amorosos, românticos. dado que, pela mesma altura, comprei um cd com músicas do zeca afonso, em versões mais arrocalhadas, entrou por aquilo que eu escrevia um certo cepticismo lírico. desde cedo que não me apeteceu usar palavras difíceis e ainda hoje afirmo que toda a gente percebe aquilo que eu escrevo mesmo quando ninguém pesca nada. há que compreender que há um lado da minha personalidade muito ciente das minhas qualidades e pouco interessado com as qualidades dos outros. mas isso é de outra história.

posso pensar que entre os meus quinze e os meus dezoito anos não houve grande evolução. é claro que muitas influências apareceram aí, o kundera na prosa, o rimbaud na poesia, os doors na música. também apareceram algumas namoradas, mas foram sobretudos as paixões falhadas que alimentaram a minha escrita. via uma miúda a passar pelo corredor do liceu e lá ia eu logo esscrever poemas para casa. nenhuma delas os leu, que me lembre. mas tenho a agradecer-lhes a força que me deram para escrever. provavelmente só quando fui para a faculdade é que comecei a escrever alguma coisa de jeito. acho que uma boa parte disso é culpa de um mês e tal que eu passei cá por torres, antes das aulas começarem. passava o dia no café com dois amigos meus a falar de política e poesia. isto com muito tabaco e muita cerveja. depois fui para o meu quarto de lisboa escrever e pronto.

a coisa de que me lembro a seguir, foi um ano depois. eu tinha umas páginas impressas, uns poemas meus, que andaram de um lado para o outro. aí sim, já havia alguma coisa para ler. mas também aí já tinha aparecido uma cassete de mário viegas, já tinham aparecido alguns colegas de faculdade que sabiam muito de coisas que eu queria saber muito, já tinham aparecido as noites a olhar pela janela do meu quarto a ver as putas do técnico cá em baixo. nesse ano fartei-me de crescer e escrevi alguns poemas bem bons. e depois fiz um ano de pousio. um ano em que, se bem me lembro, não saiu nada. andei pela faculdade farto daquilo, não gostava de ninguém, escrevia sem interesse. até que chegou o verão outra vez, eu tinha vinte e um anos, estava de rastos, completamente de rastos, e comecei a escrever contos. fiquei espantado até por os conseguir escrever. no final do verão, estava a publicá-los num jornal regional. os primeiros textos que saíram lançaram alguma confusão porque eu escrevia, e se calhar ainda escrevo sempre na primeira pessoa, e as pessoas que os liam pensavam que era eu a falar de mim. se calhar agora ainda pensam. se calhar, entre cá e lá, em vários casos têm razão. mas não assim tanta.

não assim tanta porque nós nunca conseguimos falar de nós, muito menos escrever sobre nós. o que nos acontece é trazer para o papel qualquer coisa que nos tem prendido a atenção nos últimos dias, nas últimas horas, nos últimos minutos, mas depois também há a técnica, também há a forma, também há outras coisas de outras pessoas que nos apetece juntar porque fica bonito, também há um certo transe que eu transporto para a escrita e me faz, alguma vezes, escrever sem estar a pensar no que está a sair. talvez seja por isso que eu raramente me lembro do que escrevi ontem, antes de ontem, ou talvez seja só eu que tenha uma fraca memória. agora sou isto que estás aqui a ver. continuo a fazer planos de leitura, quero ler toda a poesia que há em língua portuguesa, quero ler tudo, para saber tudo, para misturar tudo. agora sou isto que estás aqui a ver. continuo a pensar que tem tudo a ver com trabalho, tem tudo a ver com pensamento, tem tudo a ver com leitura, tem tudo a ver com entrega. agora sou isto que estás aqui a ver. e, mantendo-se o padrão, não me vou nunca zangar com a escrita, talvez nunca arrumar a caneta e os papéis com sensação de definitivo. porque faz parte de mim e já não se usam mutilações, nesta idade e neste estado da terapia. e depois porque há sempre um verso a pedir arranjo.

5 comentários:

Anónimo disse...

:-) Texto longo...mas gostoso.

Bellatrix disse...

just do it*

Aleksandra Pereira disse...

"foram sobretudos as paixões falhadas que alimentaram a minha escrita"

Isso é tão preciso prá mim, meu querido!
Acho que os principais diálogos e as melhores situações que já criei forma com base em conversas e discussões com alvos de meu amor platônico.

É de um querer estar apaixonado que inspira a escrita, mesmo que o objeto de desejo nunca leia, ou saiba dos textos. Mas a gente sabe.

Anizabel disse...

gosto de te ler!

Sara F. Costa disse...

Identifiquei-me contigo na busca por essa dualidade, uma vez tive que fazer um texto argumentativo referente a um trabalho meu e falei da forma como a obra deve balançar entre o que de mais etéreo existe e o pragmatismo necessário ao quotidiano, o poético e o prosaico como uma unidade. Acho que realmente gera um equilíbrio muito bom mas muito difícil de encontrar. Pelo menos, eu considero bastante difícil mas também ainda sou uma mera aspirante. Beijos e Abraços

Sara Costa.

Arquivo do blogue