Arquivo do extinto blogue Esferovite- a vida em pedaços (13-08-2003/ 4-01-2006)

domingo, julho 31, 2005

cigarro

ainda dá para fumar um cigarro, pouso a mala à porta de casa e sento-me, talvez pela última vez, no sofá da sala. olhos os quadros pendurados na parede e tento lembrar-me dos lugares onde os compramos. antes de eu ter entrado nesta sala, não havia nada nas paredes. só os armários.

agora, é ver os quadros, as fonte de cores que se plantou por aqui enquanto durou a nossa paixão. foram alguns anos, sim, enquanto sinto o fumo a entrar-me pela garganta tento pensar quantos. estendo as pernas para debaixo da mesa onde amontoas jornais. olho em volta e não há cinzeiro.

antes de eu ter entrado nesta sala, ainda tudo era possível nas nossas vidas. agora estamos mais velhos, mais cansados, menos certos de tudo aquilo que nos foi sendo prometido desde que nascemos. apago o cigarro no beiral da janela e sigo porta fora. deixei as chaves onde combinámos, do lado de dentro.

noite

devia ser frio, era com certeza frio, lá fora, na rua, onde passavam os carros com as luzes acesas, de maneira que os traços da estrada sem viam em intermitência, cada vez menos, mais tarde fosse. ela ficara acordada a noite inteira. agora doíam-lhe os olhos e já não tinha mais nada com que se distrair que não fosse os dedos dos seus pés, a entrelaçarem-se uns nos outros.

devia ser frio, era com certeza frio, ela passara a noite a pedir-lhe para não casar, para não fazer parvoíces, para não fugir. ele tinha passeado pela casa semi nu, com o olhar incerto sobre as folhas perdidas nas mesas de todas as salas da casa. a ela, doíam-lhe os olhos, as luzes lá fora dos carros, e dos dedos dos pés, os dedos dos pés, entrelaçados.

o frio, o frio, mas só a ela. ou os pensamentos a isolarem-se em dossiers separados na cabeça. palavras, não, não lembrar que ela passou a noite toda a pedir-lhe para não casar, para não fugir. ele o olhar incerto, semi nu, pela casa, pela casa. lá fora os carros, as luzes, o frio, o frio. os pensamentos, isolados. só a ela. só a ela.

sábado, julho 30, 2005

miopia (outra vez)

a estrada turva da miopia e a rádio que insiste em dar notícias. falta-me música, falta-me banda sonora para este a caminho de casa diário. a estrada turva da miopia e é de noite. a cabeça a latejar por todos os lados. uma mensagem que chega no telemóvel.

não tem remetente e, se pensar no assunto, nem sei se tem destinatário. um outro dia encontrei uma cassete velha no carro, com a gravação de um poema, o "I don't really exist". podia ser um manifesto de uma geração, uma geração que se ia perdendo na noite. mas já todos esqueceram o poema.

a estrada turva da miopia e a mensagem que não se percebe. o rádio já começou a passar algumas músicas, mas nada que me faça esquecer aquilo em que tenho que pensar. na verdade, não quero esquecer. mas nunca se é forte o tempo todo. a estrada turva e os olhos que se fecham.

na galiza...

http://www.agal-gz.org/modules.php?name=News&file=article&sid=2169&mode=&order=0&thold=0

and so good night... Posted by Picasa

sexta-feira, julho 29, 2005


i am cool... Posted by Picasa

are you cool? Posted by Picasa

licença sem vencimento

agora fico mais tempo em casa. é como se tivesse deixado de ter onde ir. logo eu, que sou uma pessoa de hábitos mais ou menos fixos, logo a mim, que não discutia com ninguém e que sempre ia olhando a vida como o comboio que passa para lá e para cá todos os dias, só porque tem de ser. havia uma certa resignação de lord, nesse olhar. algumas pessoas diziam que era mais um enfartamento do quotidiano. simplesmente, uma série de coisas não te interessavam. pois fosse.

agora fico mais tempo em casa. porque há certas coisas que nem o zen nos pode impedir de sentir. quanto tens uma agulha espetada no braço e, diariamente, te vêem remexer o bico, mais para um lado, mais para o outro, sempre acabas por soltar um guincho. neste caso, não um guincho. mais uma asneira bem dita, com todas as letras, made in portugal, ora como haveria de ser? soltas, estás solto. e ao mesmo tempo que te sentes liberto percebes como ficas preso nos teus caminhos.

agora fico mais tempo em casa. estou à espera não sei do quê. os dias repetem-se igualzinhos, quase nunca nada para dizer que o dia mudou depois do de ontem. encontraste uma fórmula para os teus dias, foi o que foi. acordas cedo, tomas banho, preparas o almoço, sais a espreitar o jornal pelo quiosque, bebes uns quantos cafés, pensas no jantar e fica o dia pronto, o diagnóstico. dantes ainda te distraías um bocado, ou era só o hábito? agora fico mais tempo em casa, tenho muito mais tempo para pensar nisto.

dedo

o meu dedo, que balança sobre o monte de livros, quer dizer não. podes escrever no teu caderninho de recados. não.

é uma palavra muito pequena, como bem podes reparar.

o meu dedo, que balança que balança, tem isso para te dizer.

quinta-feira, julho 28, 2005

desordena-se o ordenador

uma semana, uma semana só e trocar todos os fios das ligações, das conexões feitas.

podia não entender nada do que se passa à minha volta, podia estar frio, podia chover, podia haver pessoas que me dissessem quatro palavras estendidas pela noite, podia ser de ferro, o limão, a pele enegrecida pelos fumos, os pés, os meus pés, estalados.

uma semana só e isto. acordo e fico na cama a pensar. isto.

faço todo o tipo de perguntas que me possam vir à cabeça nos minutos que se seguem ao descalabro. depois do descalabro, os minutos que se seguem ao acordar. depois disso, todas as coisas. podia não entender nada, ficar a olhar pela janela, saliva a escorregar-me pela boca. podia ter uma mão que me alimentasse, a mesma mão que me castigava.

(e depois, no meio da história, o telefone toca, toca mesmo, e há pessoas que reclamam pagamentos, dívidas, dinheiros, papéis, pessoas que eu conheço, pessoas que eu nunca vi passar na rua, pessoas que são gravações, multinacionais, encarregados, bisturis, no meio da história, o telefone mesmo que toca.)

eu fico sem saber o que responder. ouve-se tão mal. uma semana e isto, uma semana só.

talvez se eu usasse uma fita métrica, um pano, um mapa, uma inglória sublimação do eu, talvez se eu usasse o mundo para explicar o próprio mundo, se eu correspondesse aos compromissos, se eu me alertasse para os perigos, se eu cerrasse os dentes com tal forma que eles se desfizessem uns nos outros, se eu ouvisse quando eu falo comigo mesmo.

tiro notas à parte. estas letras deviam estar escritas a lápis, na margem da folha. é assim que devem ser lidas. como notas. eu agora lembrei-me de que me podia queixar a alguém. fazer voz e papel de fraco, dizer umas quantas coisas chorosas a um ouvido, sentir a incompreensão dos justos e a mão quente de quem gosta de mim. tiro notas à parte e fecho o caderno. depois levanto-me da mesa e esqueço-me do que pensei.

uma semana. uma semana. uma semana.

não me permito as lágrimas mas também não consigo o sorriso. os braços, as mãos tremem. fragilizo-me de noite, é isso. reoriento-me nas minhas atitudes destrutivas. não tenho jeito, como a pessoa do telefone não tinha jeito, para pedir seja o que fôr. continuo a dizer que me aguento muito bem sozinho. é isso que os outros têm que ouvir.

faz-te homem, faz-te homem.

e algumas pessoas ainda me olham quando passam na rua. e algumas séries de olhares ainda são seguidos de um pequeno sorriso. e as pessoas não sabem as moradas quando lhes perguntam. e as raparigas gostavam que o tempo estivesse mais quente, para usar menos roupa, talvez. e eu podia escrever alguma coisa que se percebesse. e eu podia dizer-te, agora, assim, dá-me todas as coisas do tamanho do mundo.

tu ias encolher os ombros, acenar negativamente com a cabeça, fazer aquela cara de quem não ouve bem e está contente com isso. porque há tantas coisas que é preferível não ouvir. apesar de guardares para ti a necessidade de estar sempre alerta e consciente de tudo. e de teres feito assim o desenho do mundo para te defenderes dos bárbaros quando estes se aproximam de ti. quando espreitas pela janela não vês o mar. é um desenho.

faz-te homem, faz-te homem, a ecoar dentro da minha cabeça.

eu, a meio da noite, na cozinha, à procura da faca com lâmina mais afiada, a faca que eu uso para fazer saladas, para cortas o tomate em rodelas finas, antes de espalhar um pouco de azeite e vinagre, antes de deixar cair uma pitada de sal, uma pitada de sal sobre a minha ferida aberta. cerro os dentes e os olhos. estou distraído, uma vez mais. os pulsos de onde sai o sangue ardem em lume brando. procuro um saco de batatas fritas para o acompanhamento.

sempre a ecoar dentro da minha cabeça todas as pontas das coisas que me acontecem. é isto que os homens são, tectos falsos. tectos falsos de onde saem fios desordenados, fios que nem o melhor electricista saberia onde ligar.

(onde está o número de telefone da minha psicóloga quando eu preciso dele? depois faço contas: as compras, o telefone, uns quantos cafés por dia, almoços, mesmo que a preços baratos, nos dias em que saio tarde do escritório. depois penso, não vale a pena, iria lá para chorar, posso bem chorar em casa. depois penso, mando-lhe uma mensagem e peço-lhe o e-mail. depois penso, toda a gente tem que ganhar a vida. até eu. não sou capaz de maltratar quem me rodeia. prefiro acabar eu maltratado. assim como assim, estou habituado, sei como se faz.)

continuo a tirar notas a lápis e a guardar nos bolsos papéis que não imagino que utilidade possam ter no futuro. sei que ao fim de uns quantos dias todos os papéis acabam por ir para o lixo. penso na minha sala e é isso que eu vejo. uma série de papéis que acabarão por ir para o lixo.

lixo. faz-te homem. lixo. não vales o mínimo. lixo. paga o que deves. lixo. lixo. lixo. lixo. lixo. não saber quando se deve parar.

tábua das matérias I

a cara, os olhos inchados. é de manhã mas a cabeça como se fosse de noite. o olhar cansado e retraído. que horas são? os olhos inchados, os dedos vagarosos, incapazes. exercício de memória número um, logo ao acordar: o que foi que eu fiz ontem de noite? mesmo de noite, como agora, a cabeça. o que foi que eu fiz?

exercício de memória número dois. quantas frases tem um livro quando o fechamos. quantos passos têm um passeio que não fizemos. os dedos, os olhos inchados. uma náusea abundante que cresce pelas veias, a corrente sanguínea da cabeça e os vapores que exalam do meu corpo. não há descanso.

podias-me telefonar a dizer que existo. só poderei ter a certeza de que me vêem quando olharem para mim. exercício de memória número três: as resoluções tomadas alguma vez são para sempre? pensar, em todos os momentos, em todas as decisões, em todas as resoluções quebradas, abandonadas. exercício de memória número quatro. esquecer.

quarta-feira, julho 27, 2005


mapa das estradas Posted by Picasa

silêncio para 2

se começarmos a falar objectivamente, não nos vai restar nada para dizer. o silêncio acaba sempre por se recentrar nas tardes de verão. houve um tempo em que nos sentávamos numa toalha de praia a olhar o mar e a ouvir os miúdos em nossa volta a falar das noites na discoteca. para nós, aquilo era um mundo estranho. acordávamos de manhã cedo e bebíamos chá, depois compravamos o jornal, tu trazias sempre um saco com livros, eu levava maçãs. a praia.

sempre, entre nós, um cheiro a protector solar em excesso na zona do nariz. eu calçava chinelos e usava t-shirts muito largas, tu muito pouco mais que o bikini. éramos felizes assim, por detrás dos nossos óculos escuros. de noite víamos filmes franceses em cassetes de videos gastas e comíamos ameixas que, dizia-se, eram colhidas no quintal do dono da mercearia. gostávamos destes pequenos gestos demarcados das aldeias da beira do mar. era só isso.

agora estamos mais crescidos e o tempo que nos resta para férias aproveitamo-lo sempre para fingir que temos mais um qualquer trabalho a fazer. há qualquer coisa em nós que nos impede de nos usufruirmos maritalmente. tu continuas agarrada aos teus desenhos de casas e medidas de engenharia, eu continuo a tentar medir o curso das estrelas por cima das nossas cabeças. estamos sempre calados, eu sei, mas também sei que é isso que nos mantém sossegados. se começarmos a falar objectivamente, não nos vai restar nada para dizer.

terça-feira, julho 26, 2005

cidade abandonada

eu, a cidade abandonada deste verão, os lugares de carros por ocupar, a cara fechada pela rua, logo que hoje, que chove assim em pleno verão, que molha as nossas caras com o vento, as palavras que agora não consigo escrever.

eu, o não estar na praia agora mesmo, não ver o pôr do sol atrás dos teus óculos, não sentir a brisa do mar nas minhas pestanas, os meus ouvidos embalados pelo mar, os meus pés enterrados na areia. e depois a chuva.

eu, o agora ouvir-te sempre e só à distância, o ser de todas as maneiras e acabar sempre igual, o estar em constante condenação por quem olha de fora, o ficar dentro de casa e depois mais só, só uma vez, poder dizer, chuva.

porque as teorias pressupõem o caos - indícios

havia uma maneira de fazer sempre tudo como deveria ser feito.

haveria também uma outra maneira de fazer tudo, diferente.

havia uma forma de encontrar o nosso corpo sempre que fosse necessário ter um corpo.

haveria uma maneira de destabilizar toda e qualquer forma de permanecer num lugar.

havia uma forma de fazer filosofias da solidão.

haveria uma forma de solidificar a existência.

há-de haver uma forma, uma maneira, o que fôr, de não utilizar o verbo haver.

webcam dialogs 1 Posted by Picasa

maneiras de acabar com amizades - II

depois ela disse que o melhor do mundo eram os seus amigos.

como nunca me dizia nada, depreendi a minha exclusão do grupo.

maneiras de acabar com amizades - I

comia sempre a salada as mãos, deixando sobre a toalha da mesa as nódoas de azeite que caíam do tomate cortado em quadrados ou das pequenas folhas de alface. gostava de esticar as pernas debaixo da mesa até ao ponto de incomodar todas as outras visitas. telefonava a meio da noite sem razão aparente, passava dias e dias sem ligar quando toda a gente precisava dele.

desaparecia de circulação durante meses e depois tocava a campaínha, entrava pela sala dentro e instalava-se no sofá como se nada fosse. falava, sem parar, obrigando a que toda a gente o ouvisse, mesmo que isso fosse mesmo muito chato a maior parte das vezes. nem sempre tomava banho, nem sempre era simpático, quase nunca era capaz de estar disponível para um amigo.

um dia fizemos uma festa de aniversário e ele não foi convidado. quando ele tocou à porta, atenderam-no como se ninguém o conhecesse. ninguém o deixou de entrar. ele deixou de aparecer.

segunda-feira, julho 25, 2005

1

não estamos para aqui a fazer contas em papéis velhos
nem queremos, alguma vez, dizer que temos razão
em detrimento de uma outra qualquer razão que se apresente.

não estamos para aqui a fazer com que a vida seja o mesmo de sempre
nem nos vamos embrulhar em pequenas questões meteorológicas.
mas não, não estamos velhos
e não, não estamos gastos.

está mesmo tudo a começar agora.

a mala às costas

a mala às costas quando chove para lá do minho, numa cidade cheia de edifícios de há muitos anos, cheio de pessoas de um amor imenso à vida. a mala às costas e as palavras que se repetem nos meus lábios, em busca de compreensão. a mala às costas e perceber-se que se está em mais lugares em casa, em mais lugares em paz.

a mala às costas e descobrir-se um rumo para a conversa. os pés que se trocam pelo caminho entre sugestões de visitas e de encontros. os papéis na mão, pequenas obras de arte recortadas dentro de gráficas, palavras e palavras entrecruzadas até ao fim do mundo. há um cabo com este mundo, algures aqui perto. vamos?

a mala às costas, sensação de nunca parar. a cada abraço, aperto de mão, beijo, alguém que sempre esteve ali para nos reconhecer. os olhos brilhantes das oportunidades conquistadas, as mãos abertas quando começa a chover pela tarde. a liberdade de nos sentirmos capazes de estar ali. a mala às costas. sempre.

mais logo à noite

mais logo à noite vem dizer ao meu ouvido que me queres. largas o jornal das mãos e encostas a tua cara ao meu peito. mais logo à noite vem dizer ao mundo, ao meu ouvido, que falta faz o respirar nas tuas manhãs, que dano cobre o teu corpo a minha ausência.

mais logo à noite, mais logo à noite, quando a neblina chegar à cidade, quando o cobre em fios se tocar entre os dedos, quando o telefone tocar na sala mais longínqua da casa, mais logo à noite, na nossa cama, a tua cara na minha cara, finalmente, os teus lábios em gestos lentos de concórdia.

mais logo à noite, quando o calendário tocar das vinte e cinco, as vinte e seis madrugadas da nossa existência, mais logo à noite, no teu olhar, no meu ouvido, os teus lábios, gestos lentos, a falta que te faz o respirar, o dano da minha ausência, o teu corpo, o teu corpo, mais logo à noite.

domingo

estava sentado no meio da festa, as mãos sujas do molho do churrasco, um pedaço de carne preso a um osso preso aos dentes e pensava, aqui estou eu a partilhar-me sempre só comigo.

sábado, julho 23, 2005

o filme: três possíveis personagens

o meu coração em estado de lírica em desuso, começava Gonçalo por dizer, é uma máquina de destruição do meu existir. todos o compreendiam muito bem, à volta da mesa. Gonçalo bebia absinto num copo alto e coçava a barba espessa que já vinha do seu avô. nos dedos esguios trazia sempre um cigarro que esvoaçava conforme a entoação das suas palavras. era bom ter os olhos sempre abertos para as túnicas do desespero. ele falava, e todos o compreendiam muito bem.

Marie falava sempre em francês. comment mon coeur ouvert peut être comme la nuit? também a ela todos compreendiam muito bem. Marie não era apenas uma mulher. não era simples, não era fácil, nem era evidente. Marie usava vestidos longos e as unhas pintadas de tons violeta. tinhas as mãos pequenas e olhos expressivos. o seu corpo andava sempre resguardado pelos vestidos, as suas origens incompreensíveis disfarçadas pelo perfeito francês. l'incompreensible matiére qu'habite mes lèvres c'est l'amour.

a Abreu a vida não corria tão bem. tinha as mangas do casaco sebosas e o cabelo raro pelo crânio. a sua voz era apagada e mal se percebia o que ele dizia. só ocasionalmente se via o Abreu a participar da conversa. com o tempo, todos o passaram a considerar um observador do que se passava em volta da mesa. era aceite por tudo nele, apesar de nada o confirmar, indicar que ele pertencia ao meio em que viviam todos os outros. Abreu não falava, mas escrevia. foi o que se descobriu depois, no dia do seu suícidio. deixou um recado em cima da mesa do quarto alugado em que vivia. nenhum avanço pode ser tão eficaz como o retrocesso total.

sexta-feira, julho 22, 2005

todos temos a nossa dose de ilusão

todos nós temos os nossos condenáveis desdobramentos de personalidade, pensava Oscar enquanto afiava a nova faca de cozinha comprada na loja chinesa. gostava de olhar pela varanda e ver a vizinha a despir-se de estores abertos. semanalmente comprava facas de cozinha. tentava estabelecer uma relação de confiança e proximidade com cada uma delas. esperava encontrar a faca ideal para cortar os próprios pulsos.

há certas coisas em que é melhor nem pensar, dizia, ao telefone, Anais. passava metade do tempo do telefonema a pintar as unhas, era uma maneira de manter estável o seu discurso e também a sua relação à distância com Oscar. quando desligava o telefone, sentava-se no sofá da sala a comer bolachas de chocolate e a ver filmes antigos. era uma senhorita séria, como diria o seu vizinho mexicano, Álvarez.

Álvarez insistia em dizer-se um intelectual, um interessado pelas filosofias modernas, um inventor, um cientista. Apesar de tudo isso, só lia o Correio da Manhã e livros técnicos velhos que encontrava num alfarrabista do Bairro Nono. Os vizinhos julgavam-no uma personagem de romance, mas poucos vizinhos tinham o hábito de ler romances. Na verdade, Álvarez era um nome falso. Adrian era, afinal, descendente de anarquistas russos e vivia iludido com a existência de agentes secretos soviéticos que o perseguiam para todo o lado.

lista das compras

os poetas escrevem poemas.
os cães constróiem filosofias em varandas sobre o mar.
os varredores de ruas varrem, meticulosamente, os passeios, os carteiros entregam correspondência.
os homens vestem-se como homens,
outros homens vestem-se como mulheres,
outros homens vestem-se como bem lhes apetece.
as avós olham-nos nos olhos e dizem que já somos uns homenzinhos.
as mulheres vestem-se como mulheres,
outras mulheres vestem-se como homens,
outras mulheres nem sequer se vestem.
as avós falam de nós no passado e choram lágrimas pequeninas.
os empregados de balcão tiram cafés curtos,
os bancários contam as notas,
os desempregados lêem, nos jornais, anúncios de emprego totalmente falsos.
as mãos pegam nos sacos de compras,
as compras são arrumadas nos lugares devidos,
as casas são só casas quando há alguém para estar dentro delas.
a música toca em diversas ocasiões,
quando há festa ouvem-se foguetes,
os gatos espreguiçam-se nos telhados
e os carros passam pela estrada sem apitar porque já é de noite.
os escritores compram canetas,
os informáticos olham para écrãs vazios de significados,
os adolescentes vêm fotografias de mulheres nuas
e os solitários masturbam-se ao deitar e ao acordar.
as senhoras casadas pegam em livros com delicadeza,
os pobres de espírito vêm as fotografias,
os ignorantes não percebem os sinais,
os tristes vêm sempre tudo do lado de lá das lágrimas,
os velhos são velhos e têm histórias para contar.
os doutores dão-nos conselhos,
os pais dão-nos conselhos,
as mães dão-nos conselhos,
os rockers dizem-nos para não seguir nenhum.
os cantores populares gostam da mamã,
as meninas gostam do papá,
os meninos jogam à bola mesmo nas estradas com mais trânsito
e os dreads passam de skate aos gritos.
as malandras piscam os olhos,
os malandros roubam carteiras.
os solitários saem de casa envergonhados, um pouco antes da hora do almoço,
as solitárias passam as tardes na missa.
os poetas escrevem poemas,
os poetas escrevem poemas.

despertador

nem tive tempo para te dizer que já comprei o bilhete de avião. preciso de reconfirmar a data, uma semana antes do voo. comprei o bilhete pela internet, num daqueles sites de leilões. estava a um preço acessível, pelo menos para mim. comprei o bilhete. não foi preciso pensar muito. era tarde, o leilão estava mesmo a terminar. o telefone não tocava, ninguém me bateu à porta. comprei o bilhete. e agora me lembro, não tive tempo para te dizer.

nem tive tempo para te dizer todas as coisas que tinha para te dizer. disso não preciso de reconfirmações. entraste com uma daquelas cadeiras de praia no meu coração e, quando eu me apercebi, já estavas sentada sobre um banco de pedra maciça, daqueles que estão no jardim há centenas de anos. é muito dificil tirar-te daqui. o pior é que talvez não me oiças. não me ouves quando te chamo, nem quando choro de noite. num filme qualquer por fazer, estamos de cada lado de uma parede, a lamentar os estarmos perdidos.

nem tive tempo para ter tempo de fazer todas as coisas que tínhamos para fazer. perdi os relógios e também perdi a orientação. eu sou este aqui, pequenino, às cabeçadas pelo mundo. não sei se se vê daí, ao longe, mas tenho a testa cheia de galos. este aqui sou eu a pensar que me tinha encontrado, este aqui sou eu a pensar que se pode sempre chegar a algum lado. este aqui sou eu a ter pensamentos positivos, este aqui sou eu a pensar em ti e nas juras de amor que nunca te farei, porque te soam mal. nem tive tempo para ter tempo de fazer todas as coisas, todas as coisas, amor, que tínhamos para fazer.

caras

eu e a minha cara de mau. não, não, isto não é a minha vida, isto não tem nada a ver com o que eu penso. aqui eu a mexer nas palavras. comprei um bisturi e uma bata de cirurgião, pus-me a cortar pedaços às coisas, sim, cortei dedos, àrvores, maçãs, noites inteiras. eu e a minha cara de mau. não se cheguem, eu posso morder.

eu e a minha cara de parvo. sim, sim, é mesmo isso que estão a ver. eu recostado numa cadeira do café, a olhar para um écrã verde. pedi um café e uma garrafa de água das pedras. sinto as borbulhas aos encontrões dentro da barriga. tenho a testa suada e o olhar mortiço. eu, a minha cara de parvo, nada de interessante para dizer.

eu e a minha cara de mim mesmo. a tremer em frente ao espelho do elevador. as mãos que eu sinto sempre mais pequenas, o coração apertado. o querer rebentar no preciso momento em que começa a chover em cima de mim. o querer desaparecer, não na morte, mas na mais límpida não existência possível. eu e a minha cara de mim mesmo. mais nada.

quinta-feira, julho 21, 2005

(sem título)

como é que eu posso saber que as luzes alaranjadas da rua me vão aconchegar esta noite? não consigo fechar os olhos, não consigo abrir as mãos. sobre o lençol da cama reflecte-se a luz do exterior, os meus sonhos esperam pela hora do sono chegar. deixo o rádio ligado, por via das dúvidas.

certas coisas, quando se pensa nelas, tornam-se evidentemente inacessíveis. é como se sempre estivesse ali estado, a impossibilidade. podia estar escondida debaixo do tapete, talvez disfarçada num recanto difícil de espreitar. mas no momento em que se pensa nela, na coisa, ela surge, enorme e inantingível ao nosso entendimento.

as luzes alaranjadas. lá fora. o meu corpo sobre a cama a delinear planos sem execução provável. penso em forma de lista de objectivos. conseguir adormecer. conseguir ter um sonho. conseguir que esse sonho termine bem. conseguir acordar. as luzes alaranjadas, no exterior da casa. a janela. penso. tantas coisas que eu sei que não vão acontecer, como me poderão as luzes aconhegar?

quarta-feira, julho 20, 2005

dois motes

serias capaz de respirar debaixo de água se um dia o mar te viesse beijar o corpo por inteiro? escrevo isto e penso que já deverá ter sido escrito uns milhares de vezes em toda a história da literatura. meto as mãos nos bolsos e encontro moedas esquecidas, um lenço sujo, uma pequena pedra. serias capaz, apesar da literatura toda, de respirar debaixo de água? mesmo que o mar te viesse beijar o corpo por inteiro?

o calor faz-nos andar com as camisas molhadas nas costas. andamos pela rua, sentamo-nos no carro, e pequenos riscos de suor que nos descem pelas costas ficam tatuados nas camisas. em frente ao ar condicionado, paramos. deixamos que a brisa nos seque a testa. depois pensamos em coisas como mar, piscina, praia. pensamos em coisas como almoços de domingo, férias, feriados. e depois olhamos para as pessoas que passam por nós e lá estão as riscas de suor.

terça-feira, julho 19, 2005

para além daqui...

Já saiu o programa oficial do Festigal 2005, em www.festigal.com

Na Galeria das Letras, poderão ver, dia 24 de Julho, o seguinte:

"17.00 Presentación da REVISTA LITERÁRIA PORTUGUESA " SITIO"Participan: Luís Filipe Cristóvao, Director da Revista / Xavier Queipo, Colaborador da Revista.
Presenta: Carlos Quiroga profesor na USC

17.30 Sinaturas : Cesáreo Sánchez Iglesias, Luís Cardoso (Timor), Luís Filipe Cristóvao (Portugal), Xavier Queipo."

Vamos a Santiago?

mergulho

vamos mergulhar no mar ou noutra coisa qualquer. o importante, hoje, é tirar a camisa e deixar que o sol nos toque, intimamente, no peito. vamos mergulhar em sonhos, em paz, em alegria. tirar a roupa e as formalidades de todos os dias, abrir os braços, sentir esta brisa que corre quando se está perto do mar. vamos mergulhar em verde, mergulhar em vermelho, mergulhar em todas as cores. vamos sair molhados daqui.

vamos, não ouves a minha voz? vamos conquistar os olhos bem abertos, vamos refazer os beijos que fomos deixando à beira da estrada, vamos esquecer o trânsito, esquecer os gritos da vizinha na escada do prédio, esquecer o homem que nos pede contas a cada esquina. vamos mergulhar, sim, vamos mergulhar como quem voasse. e depois, de asas bem atadas ao peito, quem sabe, podemos fechar os olhos e não parar, não parar nunca mais.

vamos mergulhar no mar, vamos, vamos mergulhar em todas as coisas do mundo. porque agora não adianta nada ficar parado, não adianta nada esperar a história, não adianta nada nada mais adiantar. vamos soltar os cabelos, vamos soltar as pernas, vamos soltar o próprio mar. e depois de tudo solto, podemos mergulhar. vamos conquistar todas as pequenas coisas que nos restam conquistar. o sorriso, o abraço, o olhar. vamos mergulhar nos sonhos, vamos mergulhar.

não me digas a palavra lua

agora vou deixar as minhas mãos baterem asas. ligar a rádio e encontrar uma voz que me assegure. agora vou limpar a testa com os meus dedos sujos, olhar-te nos olhos, pegar-te na mão, dizer-te, sim, eu quero que me leves até ao fim. agora vou continuar a ter tinta de canetas nas mãos, os sonhos sempre cheios de coisas por fazer. vou abrir a porta, beber da garrafa. agora vou aprender a verbalizar os espíritos que vivem em mim.

e então tu podes me telefonar a sorrir. dizer-me uma série de coisas que não vão mudar o mundo, nem o clima da estação. e então tu podes vestir aquele vestido novo que compraste num final de tarde outonal. podes encontrar-me numa esquina, ler o jornal, beber um café. e então podes pedir adoçante, pedir um copo de água, pedir que te levem a casa no final do cinema. e então tu podes também começar a mudar o mundo.

para mais tarde vou deixar os rascunhos de uma centena de poemas que encontrei nos cadernos. uma mesa da escola que vi no meio da rua. para mais tarde vou deixar coisas insignificantes como o azul do céu e o verde dos relvados pelo jardim, o sabor dos gelados quando se derretem. para mais tarde vou deixar os encontros marcados pelo jornal e a dívida externa dos países de terceiro mundo. eu só quero pensar que eu vou, tu vais, sorrir. para mais tarde o mundo mudado, nas nossas mãos.

domingo, julho 17, 2005

pequenas considerações sobre a bicicleta (a continuar)

são duas rodas sobre a estrada, uma estrada que vai em curvas até ao alto. tem homens em cima, a puxar.

são duas rodas com pedais ao meio. homens de camisas abertas, a cara muito suada. pessoas, à beira da estrada, a olhar.

são duas rodas muito mais que duas rodas. são almas que se desfazem pela montanha abaixo, enquanto sobem.

são duas rodas. no final, só se ganha o descanso.

povoações

tenho, nas pontas dos dedos, gravados nomes de povoações. percorro-as com os dedos, pelos mapas. guardados num baú, tiro-lhes o pó quando chega a noite. abro-os no chão da sala e, gravados os nomes nas pontas dos dedos, percorro povoações.

vou de olhos abertos, sim. os meus dedos nos mapas, imagino que os meus olhos sejam o céu. os meus dedos, a minha boca. sim. há qualquer coisa na minha boca que me impede de viajar. digo os nomes das povoações muito baixinho.

nas pontas dos dedos, gravados. os nomes são feitos de letras, itinerários. tenho letras nos bolsos, às vezes. os mapas abertos sobre o chão da sala. querer, querer sempre o que não se pode. na minha boca, os meus dedos gravados. povoações.

sábado, julho 16, 2005

bilhete

hoje é logo de manhã. tenho poucas palavras para te dar, todas elas pequenas. o sol bate nos vidros e aquece o quarto por dentro. a minha boca seca, parecem querer colar-se os lábios um no outro.

hoje e logo de manhã. o despertador que me acorda de repente, com um sinal estranho ao meu sono. as palavras espreguiçam-se sobre a almofada, tenho sede. um minuto mais.

hoje logo de manhã. era isto assim que eu teria para te dizer, se. uns passos preguiçosos pelo corredor e os meus olhos fechados. tenho poucas palavras para te dar, palavras pequenas. uma vez mais eu.

sexta-feira, julho 15, 2005

colo

vem aqui ao meu colo, vamos ouvir o silêncio. lá fora a humidade queima vagarosamente a relva que rodeia a casa, alguns cães, na vizinhança, ladram aos carros que passam pela madrugada. vem aqui ao meu colo, sente a minha mão a encostar-se pelas tuas costas. vou-te dizer coisas ao ouvido, coisas que precisas de ouvir. vem aqui ao meu colo. aqui vai estar sempre tudo bem.

vem aqui ao meu colo, deixa que o tempo passe mais devagar. fechamos os olhos e nem damos pelos minutos. sente a minha boca na tua pele, os meus risos nos teus. nesta vida tudo se parece sempre com o mesmo, embora, na verdade, nada seja igual. vem aqui ao meu colo, sempre tinhas que te sentar em algum lado. beijo-te e tu coras.

vem aqui ao meu colo, a tua cabeça no meu colo. é de noite e a minha mão alivia as tuas dores de barriga. dizemos xuu aos medos e ficamos a sorrir, a dizer baboseiras. eu falo baixinho, com a cara na almofada. tu sorris e adormeces. devagarinho. vem aqui ao meu colo. os medos foram embora, voaram com as pombas. de manhã, digo-te salut. tu estás aqui. no meu colo. onde vai estar sempre tudo bem.

segunda-feira, julho 11, 2005

Livraria Livrododia

Finalmente.

dia 12, abre ao público a Livraria Livrododia, situada na Avenida General Humberto Delgado, 6 A, em Torres Vedras. Para marcar a abertura, faremos o lançamento da revista sítio em Torres Vedras, pelas 18h30, esperando ter por lá muitas caras conhecidas.

Agora, já sabem onde me encontrar.

quantos

quantos dias, quantos, os teus olhos todos negros em volta, quantos dias, sim, horas e horas seguidas dentro do aquário, a ver as coisas do mundo a passar lá fora e ali, sim, ali, quantos dias, quantos momentos em que o teu coração bate e se apressa, sim, quantas horas em que parece que tudo está a voltar para trás, é, e depois olhas para o relógio de pulso, é bonito, está ali, a marcar horas.

era, era assim o tempo inteiro, um papel rascunhado e embrulhado no chão, os teus pés a batebater na perna da cadeira, um ritmo qualquer, um jeito qualquer, sim, sim, quantas horas, quantas, dias, dias, dias, era assim mesmo, era, e tu, ali dentro do aquário, a deixar um rasto de pegadas pelo chão, uma vassoura atrás a limpar, sim, sim, sim, toca o telefone e tu atendes antes de te esqueceres de quem és.

mas, mas, mas dormir também não vale a pena, os olhos todos negros em volta, quantos dias, quantos dias, chegar a casa já tarde demais, sair sempre cedo demais, quantos dias, quantos, já nem ser voltar a casa, é mesmo só dormir em casa, o tempo todo dentro do aquário, o tempo todo a ver o mundo lá fora e tu, tu, tu ali dentro, a viver um mundo inteiro só para ti, pois, só mesmo para ti, mais ninguém, quantos.

terça-feira, julho 05, 2005

manifecho-me

nós não temos que ser grandes já.
precisamos de tempo para crescer como as árvores. precisamos de água e que nos falem ao ouvido. precisamos de aprender a estar de pé e a dar passos seguros.
não temos que ser grandes já.
podemos ser grandes aos poucos. seguros aos poucos. inteligentes aos poucos. apaixonados aos poucos. podemos acreditar na felicidade aos poucos.
não temos que ser grandes.
basta-nos ser sérios. basta-nos ser como realmente sentimos que somos. basta-nos ter amor. basta-nos ter-nos a nós próprios a respirar o mesmo ar que os outros.
não temos que ser grande já.
não precisamos de encaixar em conceitos. não precisamos de caber dentro dos armários. não precisamos de calçar os sapatos do pai. não precisamos de vestir as calças do irmão mais velho.
não temos que ser grandes já.
só temos que acreditar.

copo de água

estou a fazer que não com o indicador direito. comigo não.

não estás a ver bem, podiam ser os óculos. não estás a perceber que entre o que se diz e o que se sente há uma fuga imensa, intensa, de nós próprios. nem tu consegues perceber a maneira como foges.

como é que eu poderia ser inteiro? como é que eu poderia ser sério?

andei tempo demais a pensar que era sério e a comprometer-me com o mundo. agora não sou nem mais sonhador, nem mais iludido com nada e com ninguém. sou até menos. agora sou muito mais parecido comigo, sei que um dia vamos morrer e que todas as páginas vão ser apagadas dos nossos cadernos.

é mesmo assim. é por isso que, para mim, as palavras têm o peso que têm. são leves e ocas. podemos sempre fazer com elas o que quisermos.

e entretanto eu pareço demasiado directo, demasiado fútil, demasiado brincalhão. a minha maneira de deixar o álcool longe da ferida o suficiente para não andar sempre a chorar. desrespeito a tua dor? nunca, nunca o poderia fazer.

eu sei como queima e como dói. eu sei como é quando tudo parece mal, tudo parece que vai acabar. agora não sou mais leve. agora sou só mais eu. porque, no final das contas, nós temos que aguentar. eu, a tentar perceber o amor em todas as coisas.

silêncio

um silêncio é ter os pés perdidos sobre a mesa numa noite de verão. um telefone toca algures no corredor. um silêncio, uma noite perdida na televisão apagada. um silêncio, quatro da manhã. o calor que derrete os cabelos sobre a testa suados. um silêncio é ter a janela fechada, morrer assim, sem respirar.

um silêncio e a roupa toda a escorregar pelo corpo. botões abertos, os calções. um telefone que toca, não sei bem onde, nem sequer se sabe bem se há um telefone nesta casa. um silêncio e os olhos bem abertos, a cor do tecto é creme, creme como o sujo e o sol que queima o estuque das paredes. um silêncio é uma promessa por fazer.

um silêncio, a sala. ter a certeza de que há qualquer coisa lá fora que nos faz ficar aqui dentro. os pés, a mesa. botões a cair para os lados. cabeças contra o tecido do sofá. a cabeça que balouça o sono que não vem. pele vermelha. um silêncio é ter as mãos ocupadas, mecanicamente. quatro da manhã, olhos chorosos. noite.

tesoura

comprei uma tesoura para cortar as unhas. esta podia ser uma decisão de uma vida. uma tesoura para cortar as unhas. um dia na vida de um gajo qualquer, uma tesoura entra e muda tudo. é assim a vida, diz-se. mas eu digo que uma tesoura de cortar as unhas pode ser algo de verdadeiramente diferente. mas eu digo tanta coisa de tão pouco valor.

amanhã de manhã vou vestir uma camisa e umas calças lavadas, fazer a barba, pentear o cabelo. amanhã de manhã vou sair cedo de casa e entrar no carro, com a chave na mão, como um homem grande. os homens grandes têm tesouras para cortar as unhas. as unhas crescem todos dias. os homens grandes preocupam-se todos os dias. as unhas. as coisas todas.

comprei, comprei, comprei. pedi dinheiro emprestado e comprei. fui ao supermercado que vende as coisas mais baratas e comprei. fiz as contas de cabeça enquanto punha as coisas no carrinho e comprei. preenchi fichas de desconto e sorri à empregada, comprei. olhei bem para todos os preços, comprei. procurei os descontos, comprei. sou e não sou um homem grande. um homem grande chega e leva. eu faço as contas de cabeça. para que quero eu uma tesoura de cortar as unhas?

"tu mirada roja"

tenho os olhos vermelhos. andam assim há meses, talvez mais que um ano. tenho os olhos vermelhos (estou-me a repetir). preciso de. bah, preciso de tanta coisa. talvez de me calar. tenho (quantos?) vinte e seis anos. escritos por extenso. parece uma brincadeira. ai eu era tão nova quando tinha a tua idade, dizia-me ontem à hora de jantar. prá merda, sim?

ora, o valor das coisas é tantas vezes diferente do valor das coisas. uns olhos vermelhos, por detrás dos óculos. as pessoas que vão reparando e calando, afinal ele sempre foi estranho. há meses, meses atrás, desisti da corrida de chegar sempre à frente. e passados uns tempos a chorar, fiquei em primeiro. os olhos vermelhos.

vinte e seis anos por extenso, nada na manga, nada de magias. o cheiro do incenso na sala toda e um jornal sobre a mesa da sala. os olhos vermelhos, uma boa companhia. deixar de cantar às escondidas, as pontas dos dedos molhadas pelas lágrimas. uma frase boa qualquer que servisse para rematar um texto. um beijo, um homem sozinho pela cidade. uns olhos vermelhos.

segunda-feira, julho 04, 2005

quantos dias

deixa-me ficar aqui à beira deste abismo. o sol do lado de lá.

é assim que se respira. com o vento a fechar-nos os olhos. uma mão vem, por detrás das costas. e depois há qualquer coisa de diferente nesta mulher. assim se confundem os papéis. mesmo o de leitor. o abismo é isto. um dia qualquer e então.

liga a rádio. há uma estação que tem uma música para ti.

respira, respira. a mulher ali em frente e tu. sabes a cor do silêncio e sabes que um cesto nem sempre trás as uvas da vindima. os papéis, podia ser do vento. pensavas que estavas a ler mas afinal não estavas. estavas a olhar, talvez.

uma música, sim, uma música, uma música para ti.

quase que parecia uma voz a escorregar. um dente caído sobre o prato, a luz do sol que se extingue no mar. se somos capazes de quebrar um cometa, um dia seremos capazes de apagar o sol. a lua, a lua, só a lua. os papéis trocados, de uma vez.

domingo, julho 03, 2005

o mundo

o mundo de cada um colado atrás dos passos que se dá. olhas uma cara e não podes imaginar o que vem dentro. é isso. mesmo assim, tentas. abres a boca saem palavras. se tivesses os olhos maiores verias as palavras a sairem da tua boca e a entrar nos ouvidos do mundo do lado de lá. sim, eu disse mundo. já percebes agora?

o mundo, o mundo, o mundo. não podes imaginar, arrisca. arisca, a pessoa do lado de lá foge, a pessoa e o mundo. olho para trás neste momento. posso deixar tantas vezes a palavra mundo num terço de parágrafo? sigo em frente, do lado de lá, alguém que pensa, alguém que diz, alguém que faz. mais nada, só imaginar. nunca se pode conhecer o irreconhecivel.

o mundo, o mundo, o mundo. não havia um poema com um verso assim? mas bem, segues em frente, o único lado para onde podes sempre seguir. não peças para compreender. olhas uma cara e não podes imaginar o que vem dentro. tenta, tenta, o mundo, o mundo está lá. se tivesses olhos maiores serias até capaz de ver o amor a voar entre os abraços. mas o mundo, nem o podes imaginar.

no escurinho do cinema

podes-te sentar, podes sempre te sentar aqui na nossa mesa, não estamos a falar de nada de especial, só umas conversas de quem escreve e de quem não, de quem lê e de quem não, falamos de livros no escuro do bar, bebemos cervejas, podes-te sentar, sim, senta-te aí.

tinhas queixas da tua irmã, do teu pai, da tua mãe. dizes que não tens família e depois dizes palavras como mãe. palavras como irmã. dizes que não tens família e a tua irmã doi-te mais do que facas que te cortam os pulsos nos teus sonhos. nos teus sonhos.

senta-te, senta-te. os nossos hálitos são de cerveja e a tua pele é tão clara. falamos de mulheres, de mamas, de camas. falamos de homens, de tristezas, de inconveniências. tu sorris. desde muito nova que te sentes bem na nossa mesa, aqui, sentada. hoje ainda és tão jovem que me faz pensar que quando te começaste a sentar na nossa mesa não terias mais que quinze anos.

quinze anos e nós sentados no sofá da tua sala a ver o gilbert grape, quinze anos e num outro sofá, numa outra casa, a tua cara no meu colo, cheia de lágrimas, a contar-me segredos que talvez nem te lembres já que me contaste. quinze anos e eu a beijar-te nas férias de natal. tu a fugires a correr.

senta-te, afinal sempre estivemos aqui. não é sequer bom quando nos juntamos. é pegar numa ponta da história que ficou rascunhada lá para trás. dizes que não tens familia e casarias-te connosco, se pudesses casar com todos ao mesmo tempo. fazes as vontades a toda a gente como gostarias que toda a gente te fizesse as vontades. não és mimada. apenas querias dizer família e ela existir. a tua.

eras muito nova ainda e nós tratavamos-te como igual. como igual ou como nós pensavamos saber, quando também ainda éramos novos e não percebiamos nada do assunto. agora senta-te, senta-te aí connosco. falamos do que houver para falar e quando alguém nos vier dizer que o bar fechou, fechamos. sempre gostamos de ficar até ao fim do filme.

álbum de fotografias

uma fotografia tua no meu computador, uma fotografia tua, acordo a pensar-te, ali, uma fotografia tua, uma fotografia nua, eu, procuro, acordo a pensar nisso, foto, fotografia, fotoqueeuqueria.

uma fotografia, fia, a minha grafia incompreensível num bilhete de cinema, pousado sobre a mesa de cabeceira, uma fotografia, tuanua, eu que procuro, eu, tu no meu computador, computador, a dor de não te ter e o desejo de sempre te procurar.

uma foto, foto, fototua, nua, procuro, no computador meu, eu, procuro uma fotografia tua no meu computador, uma fotografia tua, fotografia nua, sim, ali, aqui, a mim, fototuanua, no meu, no meu computador, desejo.

ferro

um ferro na cabeça, pesado, um ferro de engomar, um ferro de malhar, na cabeça. ficas parado e só podes olhar em frente. mesmo assim os olhos fechas. um ferro, um ferro na cabeça.

dois passos atrás eras livre. e agora isto.

mesmo assim os olhos fechas, não ouves. alguém que te chama do outro lado da rua, e tu não, um ferro na cabeça, uma luz que tu só imaginas que existe. algures.

dois passos à frente. se os conseguisses.

e o pior é que tu consegues, tens os braços, tens as mãos, tens as pernas. tens o pensamento. o pensamento é capaz de derreter o ferro mais pesado, mais sólido. mas um ferro na cabeça.

se ao menos, passos.

sábado, julho 02, 2005

V

acende-me essa luz aí junto à parede. depois podes sair.

era o sono ou era a febre. era o pijama húmido, as mãos fechadas. era de manhã e de tarde. era de noite ali em mim. eu, a cama, fechados. faltava qualquer coisa em nós. talvez os artigos definidos.

acende-me essa luz. sim, essa. não faças barulho.

era uma imagem que fugia pelos meus olhos. um pequeno furo na íris. uma lesão no pensamento. pensar todas as coisas no mesmo momento, usar a cabeça até rebentar com os fusíveis. ouvir um estrondo, encolher-me na cama. era assim, era assim que era tudo.

a luz, minha querida, a luz. e sim, desaparece.

não estava lá ninguém, eu mais uma vez a falar sozinho, a dizer palavras. sim, dizer palavras. posso descobrir novas frases enquanto tenho os dedos presos na boca. se os lábios não se conseguem movimentar, vão criar sons, coisas que não existem. estava lá, ela, a inexistência.

a luz, acesa, a luz, apagada, sempre igual.

comprimido

dores de cabeça são coisas produtivas, literariamente. muitos e muitos escritores tiveram dores de cabeça, umas mais fortes que outras. alguns poemas ficaram por se escrever devido às dores de cabeça - o poema a surgir, desinteressado e fútil pelo meio da indisposição, a mão já sem obedecer, o adormecimento. dores de cabeça, olhos pesados, corpo inquieto.

a cama desfeita há mais de uma semana. os pés descalços num tapete desfeito pelos pés descalços. muitos escritores passearam sobre tapetes em salas onde deviam estar sentados a escrever. o escritor perante a emergência de um poema, de uma frase, levanta-se - e os pés descalços, e o tapete que se desfaz, e as mãos nos bolsos ou no queixo.

um monte de livros sobre o sofá. seria preciso conferir algumas histórias atrás, perceber que os livros já ali estão há muito tempo, como que abandonados no cenário. os olhos pesam, fecham-se. o corpo, sem forças, deixa-se moldar pela pequenez da sala. quando acordar, a dor de cabeça talvez já tenha passado, mas estarão duridos o pescoço, as costas, as pernas. todas dores menos produtivas que as dores de cabeça.

palavra vezes três

o gago ali era eu. comecei a falar cada vez mais devagar. deixa-me ver se me lembro. estava eu, estavas tu, estavam eles. os pronomes pessoais chegam para escrever a lista dos convidados.

gaguez é ter as palavras maiores do que elas são. é ter sílabas gémeas a sair pela boca, um tanto descontroladamente. e quando se fala depressa, quanto mais depressa, mais perto de gaguejar.

o gago ali era eu, a falar devagar. gagodevagar. gaguejar. gaguejei até ter falta de ar. ararar. tu mais depressa, mais depressa, mais depressa. deixa-me ver se me lembro. uma camisa preta, uma saia de tons claros, as tuas pernas.

gagagagagagagagagagaga
gagagagagagagagagagaga
gagagagagagagagagagaga
gagagagagagagagaguejava.
mas, que horas eram mesmo?

ainda para mais tu, ainda para mais eles, sentados numa mesa cheia de pratos e cigarros, alguém passava no meio do centro comercial com um megafone " ele sempre tinha sido muito insistente mas a natureza dela levava-a não ceder" e gagagaguejava.

trança

os dedos entrelaçados uns nos outros são os dedos entrelaçados uns nos outros. que horas eram no teu mundo quando saíste de casa, um cão puxado pela trela, os dias azuis e os olhos verdes bem abertos?

os dedos são os dedos são os dedos. mil páginas de futurologia em cima da mesa e os pés pequenos, tamanho trinta e seis trinta e sete, comidos pelas mãos ínfimas dos ratos que atrás das paredes, debaixo do soalho. ouves o barulho ou tenho que aumentar o volume?

racionalmente, racionadamente, radicalmente, raiz. uma raiz a nascer no meio da sala. era uma flor e depois era uma planta e depois um arbusto e depois uma árvore. entretanto já não tinhas uma sala, tinhas um jardim e havia macacos. havia muito barulho, era impossível adormecer no quarto ao lado.

os dedos, porque toda esta história era sobre dedos, os dedos estavam arrumados dentro de uma gaveta, no meio da papelada lá de casa, e um dia veio um funcionário bater à porta e disse que era muito urgente. o telefone estava caído no meio das árvores. os dedos?

mas bem, entrelaçados também o mel e as bolachas, pequeno-almoço na cama, dias azuis, o cão pela trela, saíste de casa, tu a correr pelo passeio, em casa, lá em cima, folhas e ramos e folhas e ramos a sair pela janela, nos teus dedos, entrelaçados.

sexta-feira, julho 01, 2005

o que tu tens para me dizer é a tua voz baixa, baixíssima, ao ponto de eu te pedir várias vezes para repetires e tu, no mesmo tom de voz, baixo, baixíssimo, repetes, ou então, dizes coisas diferentes, nesse tom, é impossível descortinar. o que tu tens para me dizer é essa tua voz de silêncio.

o que tu tens para me dar é a tua mão fria e sem vigor, que me cumprimenta na distância de duas malas, eu a chegar-me ao teu abraço e tu a dares pequenos passos para trás, tenha uma boa tarde, tratas-me por você, estendes a mão mas o teu braço fica colado ao corpo, na distante segurança de não saíres de um perímetro de segurança.

o que tu tens para me deixar é a tua partida para longe, onde há uma casa que é tua, uma lua que é tua, um jeito de dizer as coisas nesse tom de voz que alguém entende, mas eu não, nos teus braços que ganharão vigor e apertarão os braços de alguém, os meus não. o que tu tens para me deixar é esta maneira de não me deixares nada.

curvas

são muitas as curvas perigosas no caminho entre a minha casa e a tua. eu visto um casaco e saio. tenho um carro, um carro pequeno e aceitável como as manhãs de outono. não tenho mais nada para fazer, vou a tua casa. as curvas, as curvas perigosas, eu faço-as meticulosamente. tenho o cuidado de tentar chegar a ti.

obrigo-me ao rigor na aproximação a ti. faço-o sempre devagar, quer seja no carro, a pé ou na tua casa. sim, eu vou a tua casa. pelas curvas perigosas, eu vou. chego a ti, tu abres a porta. tens um casaco de lã. sim, é de lã. eu olho-te, de olhos no chão. não sei se sorris, a tua voz é serena e apagada.

eu sento-me no sofá, ao canto. tu sentas-te na cadeira, ao meio. há uma televisão ligada, uma janela aberta, um cheiro de sopa acabada de fazer no ar. há um cão que ladra lá fora, uma galinha a passear no quintal, um gato que, dizes tu, nunca sai do teu quarto. há as curvas perigosas entre a tua e a minha casa.

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