Arquivo do extinto blogue Esferovite- a vida em pedaços (13-08-2003/ 4-01-2006)

quinta-feira, abril 29, 2004

agarro a tua mão na minha

faz um herbário no meu coração, enquanto eu falo baixinho deitado no chão, esperando que a noite caia mais calma do que o dia-rio que não se entravou na corrente. faz um herbário, com os teus dedos macios e os teus sonhos de gatos, onde nunca antes alguém, nem nunca antes alguma coisa. como se pode ter um coração tão seco, perguntas, e eu sei que tu vês a lava que salta lá de dentro, com as tuas lentes que te fazem ver mais dentro de mim, mais dentro do que aquilo que alguma vez alguém conseguiu ver. faz um herbário e deita a tua cabeça no meu colo.

deixa a tua porta aberta esta noite, apetece-me entrar. não como se tivesse algo para conquistar, apetece-me fazer parte, ser como o ar que se respira no teu peito, ser como as ideias que confundem na tua cabeça. depois, com as minhas mãos, cubro-te os pés gelados e faço ron-ron, para disfarçar. deixa a tua porta aberta, não tenhas medo de fechar os olhos, o teu ninho está feito e o teu anjo da guarda segura-te mesmo quando tu não vês. deita-te com o descanso de quem acorda a sorrir. deixa a tua porta aberta.

não deixes de fazer as tuas malas para a felicidade. eu sou uma das estações, nunca a final, talvez aquela onde se pode ficar sossegado a dormir. não digo que não haja vento nem frio. não digo que não haja chatices. e sim, vais continuar-te a zangar com as coisas mal feitas que são feitas aqui, como no país. não deixes de fazer as tuas malas, traz os teus sacos também, os teus livros, os teus desenhos, as tuas palavras difíceis que eu não entendo e procuro, fechado, no dicionário. e podes vir sem bilhete. o teu anjo da guarda tapa os olhos dos revisores e podes voar, como se fosses invisível, como se isso fosse possível. não deixes de fazer as tuas malas para a felicidade.

branco

tudo o que eu pensava se poderia dizer numa enorme página em branco...




















mas como se faz uma página numa coisa que nem sequer tem linhas...

nem limites...

nem saídas?

tudo aquilo que eu pensava, naquela página vazia.



























como imaginação.

segunda-feira, abril 26, 2004

astronauta

Deixa-me uma manhã livre na agenda para que eu possa respirar esta semana, uma manhã livre para que eu possa sair e ir ver talvez o mar, talvez o campo, uma paisagem, uma coisa qualquer. Estamos aqui fechados sem ter por onde sair, aqui fechados sem saber bem para onde vamos e tu, nesse estado floral de quem está em todo o lado e em lado nenhum ao mesmo tempo, começas a irritar-me, a irritar-me profundamente.
Quis ser um astronauta quando era criança. Chegava junto dos adultos e dizia, quero ser astronauta. Eles riam-se, acenavam com as cabeças enormes, de óculos gigantes e bigodes que lhes dividiam a cara, riam-se, quero ser astronauta. Um dia, íamos de viagem para férias na praia, durante a noite, fui o caminho todo a olhar a lua pela janela do carro, a lua com os seus desenhos que eu tentava descobrir sem perceber. Queria ser astronauta, ir de carro até à lua, não à praia, à lua, porque lá em cima também havia sol, porque lá em cima havia desenhos no chão e o chão era todo branco até ao fim do mundo, ou melhor, até ao fim da lua.
Uma amiga minha veio dizer-me ao ouvido que a lua talvez não fosse um bom sítio para se viver, porque era longe da escola e lá em cima, ao que parece, não havia desenhos animados na televisão. Eu parei um pouco para pensar e ela aproveitou a minha ida às nuvens naquele instante(quando penso vou às nuvens) para me beijar a boca. Percebi que além de desenhos animados e escolas, na lua talvez não houvesse daqueles beijos molhados que nos deixam a cabeça a andar a roda. Foi a primeira vez que recebi assim um beijo molhado, um beijo de que gostei de tão diferente dos outros beijos todos de óculos gigantes. Fui ter com um adulto, puxei-lhe pelas calças e disse-lhe, já não quero ser astronauta. Ele não deve ter compreendido a minha alteração de planos visto que, passados uns dias, no meu aniversário, ofereceu-me na mesma uma nave espacial do Ulisses 31.
Acabadas as idas à lua e as tonturas dos beijos, fechei-me dentro de casa como numa caixa. Convidava os meus colegas da escola para distrair os meus irmãos e aproveitava para ficar fechado na casa de banho a olhar para a banheira a encher-se de água. Estava sentado na sanita, que parecia um farol com vista para um mar imenso, a maré a encher na banheira. Tudo isto deve ter começado depois de uma ida a Peniche, num passeio da escola. Lembro-me de ter entrado no forte e ter fechado os olhos junto ao parlatório dos presos. Tive medo de não encontrar a saída daquela outra caixa. No entanto, ver o mar do jardim da prisão era agradável. Senti uma qualquer vocação marítima mas não corri para junto de ninguém a dizer que queria ser marinheiro( a idade aconselhava prudência). Um farol pareceu-me um poiso bem mais interessante. Um farol onde pudesse olhar o mar e ver os desenhos animados, onde a minha amiga me pudesse dizer coisas que me levassem à lua enquanto aproveitava para me molhar os lábios.
Entretanto, a banheira transbordou e o relógio digital comprado na feira a dizer water proof deixou de funcionar porque ficou todo embaciado por dentro. Fiz a barba e comprei cigarros a caminho da escola. Sentei-me no banco do liceu a olhar uma árvore. Não quis ser jardineiro, nem pastor. Quando está frio na rua, o fumo do cigarro confunde-se com o vapor da minha respiração. Nesses dias assusto-me. Parece que enchi os pulmões de fumo e ele não acaba de sair, numa sensação de todo eu, por dentro, ser uma nuvem de fumo. Tenho as recordações todas misturadas. O mar cheio de presos, os desenhos animados com beijos na boca.
Deixa-me uma manhã livre na agenda para poder fugir daqui, de ti. Talvez possa voltar a Peniche, talvez queira ir ver o mar ou o campo, os desenhos animados, um jogador de futebol. Deixa-me uma manhã livre para eu poder respirar e talvez fique fechado numa caixa a ouvir as vozes dos meus irmãos e dos meus colegas da escola a conversar na sala ao lado. Talvez procure uns óculos gigantes ou deixe crescer um bigode que me divida a cara. Não vou dizer a ninguém que quero ser astronauta. Mas talvez me encontre no sótão, no meio de caixotes poeirentos, à procura da nave espacial do Ulisses 31.

fechadura

faço riscos no bloco grande que tenho em cima da cama, como se tentasse refazer a minha vida em escalas geométricas, inventar o círculo nas paredes da rua, desejar o lacrimejar de uma goteira na porta da frente, em pleno verão, refresco. faço riscos, sem conseguir sorrir. este aqui sou eu a fingir-me arquitecto ou outra coisa qualquer. como se faz na escola, quando se é pequeno. este aqui sou eu, a não saber ser alto.

confundo, propositadamente, os vocábulos que utiliso no meu dia após dia azarento, como se dislexia, outra patologia, a cabeça a doer nos cantos, a bola a ser chutada para fora, os riscos no caderno e na colcha de renda feita pela bisavó. há já tanto tempo que eu estou aqui e ainda não sei dizer, ainda não sei dizer que a melhor maneira de apagar a luz é usando uma borracha verde, daquelas que não são nem muito moles nem muito duras, uma borracha daquelas. este aqui sou eu, a não saber ser verde.

e depois fecho os olhos com muita força e finjo que não vejo nada, como se fosse noite numa casa desconhecida, como se fizesse frio e me tivessem gelado as pestanas, tão pesada que está a água, tão cara, tento-me a dizer sei lá, mas eu sei, lá e cá, des- , desorganizar, desorganizo as palavras, como se faz. ter este tempo todo para fazer riscos, quando, se me pedes letras, eu digo não, não escrevo, riscos, a ver na televisão que está desligada, a fechar a porta, a porta, a porta. este aqui sou eu, sem fechadura.

sexta-feira, abril 23, 2004

adeus ps!

depois de todos terem fumado o seu cigarro, sentámo-nos em volta da mesa, e eu pedi desculpa por ter tudo tão desarrumado. esta casa não é minha, é só a minha maneira de vos expressar o meu amor pela vida. começam a gravar o meu monólogo engasgado, tipo "eu sei que isto vos parece normal, a mim, não". enquanto falo penso que me vou perder no momento seguinte da frase. como se as frases tivessem momentos. penso linguisticamente. que azar o meu.

nós somos giros, não somos. quase a imagem invertida um do outro, como se andássemos de pernas para o ar. ele a fingir que é novo aqui e que é preciso amá-lo, como se ama de coração alguém que nunca se viu antes. eu a fazer-me diplomático e a olhar para o tampo da mesa na hora das fotografias. gosto de aparecer como se não estivesse ali. tipo homem invisível, estão a ver. calado, penso em revoluções armadas.

e depois sempre aquela mania de fazer perguntas, sei lá, vocês são assim desde pequeninas? puxam-me pela língua, é o que é, eu finjo-me de parvo, e conto tudo, como se conta à mãmã depois de se fazer uma asneira quando se é pequeno. e pronto, lá disse mal de alguém, como se não fosse comigo, como se não aparecesse a minha fotografia no jornal de amanhã. no final toda a gente se ri. menos eu. como se não tivesse gracinha nenhuma.

quarta-feira, abril 21, 2004

cantiga de amigo

uso óculos escuros para esconder o tamanho dos meus olhos e o sangue que me salta pelas pestanas. caminho pela calçada com sapatos de sola dura que fazem tac tac como o relógio do fundo da noite antes de adormecer. ando direito, por entre as frases das pessoas que passam distraídas, tão direito que julgo até que não me vêem. sou insuspeito, repito-me a cada passo. canso-me. ando direito.

quero meter um pauzinho na engrenagem.

sento no fundo do café, nas mesas da sombra, talvez com medo das correntes de ar, talvez querendo soprar forte como o adamastor de cada vez que se abre a porta, corrente de ar a rebentar. vejo-os que falam distraídos, vejo-os que pagam cafés. senhoras a comer bolos, crianças, as crianças, talvez se elas, talvez. também a mim já me cuspiram na cara e já me arrastaram pelo chão. uso óculos escuros.

quero meter um pauzinho na engrenagem.

se volto a casa, sim, se volto a casa, mas se volto a casa. pode-se chamar casa ao lugar onde estivemos sempre, onde ninguém nos conhece. abro a porta e o meu pai a adormecer na mesa da cozinha, os cabelos a despentearem-se para dentro do prato da sopa. minha mãe a chorar junto à janela, a olhar a vizinha da frente, que fuma, que ri, na janela dela. meus irmãos que dormem, sempre estiveram adormecidos, desde que nasceram, mesmo que eu fale, mesmo que eu. trancado no quarto. se volto a casa.

um pauzinho, pequeno que seja, na engrenagem.

terça-feira, abril 20, 2004

jardim do campo grande

este barulho que ouves, quando dormes, sou eu a nadar de costas, na piscina isolada no monte, onde, em criança, tu corrias com os cabelos soltos e te deixavas cair pelas escadas abaixo. este barulho de água que ouves nos sonhos, sou eu a chegar aos teus pés, e tu ainda criança a chorar a um canto da sala, porque ninguém te queria dar beijinhos, porque ninguém te segurava a mão. esse barulho que ouves, quando dormes encostada aos sonhos que julgas não ter, sou eu a abrir a porta do quarto com os sapatos na mão e a despentear o meu cabelo com a camisa que se descola do meu peito suado. é de madrugada e já não chove. esse barulho que ouves, é o barulho que fazes, a adormecer.

onde não houver um minuto restante de silêncio, podes estalar os teus pés e dizer baixinho que o sono te chega como as coisas doces. fazes o teu ninho no meu corpo e sabes que podes ficar em sossego. porque eu sou como os pássaros velhos, voo sempre em círculos e tenho perfeita consciência do sítio onde vou ficar para os meus dias. a ti, que a penumbra dos desesperos louros inquieta, resta-te respirar muito depressa e sentires o coração aos saltos que te vai sair pela boca sempre que dizes alguma coisa e eu faço cara de cão com pulgas. tu sabes que tudo tem um lugar. e que esse lugar sou eu deitado numa cama que está longe, mas onde tu estás a meu lado a passear a tua mão quente sobre o meu umbigo.

entretanto, mergulho-me nas águas frias e nado de costas entre os limiares da luz nocturna do nosso quintal. tu estás lá em cima, no vigésimo sexto andar, e ouves-me baixinho, como um rádio que começa a ficar sem pilhas. eu subo e desço no elevador que não me leva a lado nenhum. eu faço os mil passos pelos diversos corredores do edifício. e tu sabes que quando abrires de novo os olhos e eu vou estar lá de olhos abertos para ti. porque a luz do quarto é pouca e é bom ter um pouco de castanho a fazer de candeeiro. onde não restar silêncio, tu sabes, restará uma palavra. e onde não houver mais nenhuma palavra, um som tomará o seu lugar. é assim que se arrumam as coisas. no seu lugar do universo.

segunda-feira, abril 19, 2004

não apostes, manel

ele apareceu com o jornal na mão, o olhar desvairado, a boca espumante, meio a cambalear. o que queriam que eu lhe fizesse? fiquei assustado, foi isso. e depois, a primeira coisa que me veio à cabeça foi perguntar, más notícias, hein? o gajo abriu-me aqueles olhos azuis do tamanho de dois galeões e atirou-se a mim como a armada espanhola. restava-me fugir ou morrer. e eu nunca tive muito jeito para essas coisas de se ser mártir ou revolucionário.

a mulher dele, a própria mulher, na primeira página do 24 horas, o meu marido bate-me. depois de o ver a correr assim atrás de mim, acredito nela. o gajo estava doente, e a cada pessoa que comentava o assunto, ele dava mais uma razão para se ter pena da pobre senhora. então você anda a bater na sua esposa, meu cabrão?, disse um gajo novo que passava de mota. e o galeão espanhol desfez-se em lágrimas.

que não passava de uma aposta estúpida. ele, benfiquista, sempre a gozar com a mulher, portista. há mais de trinta anos, esta coisa. e ele prometeu-lhe que se o benfica ganhasse dez campeonatos seguidos ia às putas, só para a chatear. a promessa dela, que se o benfica ficasse dez anos sem ganhar o campeonato (coisa impensável), o haveria de o tramar. antes me pusesse os cornos, antes os cornos, que vergonha. mandei vir mais umas imperiais. e o galeão espanhol foi ao fundo, num mar amarelo.

sábado, abril 17, 2004

e de repente

e de repente esqueço-me de tudo o quanto foi feito por todas aquelas pessoas que aqui estiveram antes de mim e desato a gritar o meu desejo de originalidade, como se fosse possível ser original quando se é jovem e se tem o mundo inteiro por descobrir. sim, eu sei, já é meu hábito vestir-me de heresias. mas, no final das contas, sou sempre eu quem tem que puxar pela carteira para pagar as contas. brinco com as moedas, entre a mão direita e a esquerda, a pensar no café de amanhã. deixa estar.

e de repente peço para me servirem mais duas garrafas de cerveja e para trazerem um prato com salgadinhos, que os salgados sejam distribuídos pelo balcão!, há-de haver festa, e fantasia, e sorrisos e gritos e cantares, cantadas, como diziam os brasileiros, e eu fico sentado mesmo ao fundo do salão, quietinho, com a garrafa na mão, a aquecer, e o olhos regalados com o espectáculo, essa imensa vontade de se ser livre quando não se o é, e toda aquela bonomia de se saber que já não há nada a fazer, quando se atingiu a felicidade.

e de repente, recebo uma carta tua e desato a ler coisas de que já nem me lembrava, assim como quem se veste todo fino para a ópera e encontra um amigo de infância à entrada, assim como se desfaz um cenário se uma actriz escorrega nos saltos altos que não foram experimentados, leio leio leio e descubro, como é que eu me poderia ter esquecido, de que tu também fazes anos, e festejas o natal, e curtes o ano novo, como se eu agora fosse único no mundo, como se eu agora quisesse voltar a ser original.

sexta-feira, abril 16, 2004

número de telefone

na minha sala, a minha sala vazia de tudo o que é humano, resiste um telefone, daqueles antigos, cheio de dedadas de doce e de impressões digitais de chocolate. é ele que me acorda do meu silêncio, do meu entediante processo de cativação da existência. estou sentado no chão, no chão frio de tijoleira, só umas calças muito leves me separam do arrepio lento mas constante dos dez graus centígrados desta primavera de gelo. olho o tecto branco, com fissuras, e os meus dedos estão entrelaçados entre jornais. na minha sala vazia.

eu já não ando, já não ando, eu escorrego pelo chão desta sala, desta sala vazia. as minhas calças, que eram tão brancas, tão brilhantes, ganharam entretanto a tez dos berbéres, ficaram acastanhadas, avermelhadas, ficaram escuras, nocturnas, e eu já não ando, já não ando, apenas me deixo ficar, no tecto branco, já não as calças, as fissuras, por onde eu ainda vou fugir, quando adormecer, quando voar, quando me apetecer encontrar o céu.

quantas vezes eu me esqueço de que existem janelas, janelas que poderiam trazer uma outra luz a esta sala, tão vazia, vazia de tudo, esqueço-me de que as janelas e só o telefone, daqueles antigos, cheio de dedadas impressões digitais, tenho a impressão, que toca, ringa, tringa, e interrompe-me do silêncio como um assobio de vento, e eu que, já não ando, já não ando, os dedos salivados, os jornais, atendo, e, quantas vezes me esqueço, tu existes.

segunda-feira, abril 12, 2004

des-equilíbrio

mandaram-me dizer que, agora que chegou o sol, vamos todos usar camisas mais leves e frescas, como se fosse verão, ou como se estivesse um calor incondicional nesta nossa cidade. mandaram-me dizer, embora eu ache que não devia ser responsabilizado por isso, que agora já não seria possível usar casacos nem qualquer outro artifício que sirva para se proteger de ventos ou de ruas atacadas pela sombra. não, não me pergunte porque será assim. eu também não sei.

como vê, eu estou aqui mais para divulgar ordens do que para perceber ou entender qualquer tipo de pensamento. sou uma máquina de divulgação, mesmo que tenha uma aparência de pessoa normal, de ser humano, esse tipo de coisas. é por isso que eu lhe peço que não me faça muitas perguntas. muitas perguntas confundem-me a cabeça. pode-me avariar.

depois, quando desapareço, apesar de nunca ser por demasiado tempo, as pessoas não sentem a minha falta, tudo o que sentem é aquela necessidade de receberem as ordens, como se fosse eu que as desse. não deixa de ser engrançado, esta história de ser interpretado como a origem das ordens, quando eu só as transmito. mandaram-me dizer que, a partir deste momento, vou mesmo passar a ser eu o responsável pelas ordens emitidas, mesmo que não seja eu o seu produtor. sim, agradeço que não me faça perguntas.

domingo, abril 11, 2004

poema de sábado

um francês canta baixinho na rádio enquanto se ouvem os barulhos da manhã fora do quarto. tu abraças-me e abres os olhos muito muito devagar. dizes baixinho o meu nome, como se dizem os segredos e eu sorrio-te um sorriso enorme com olheiras. no meio da cama os nossos cheiros cruzam-se, num calor crescente. sim, está calor. é a febre do sábado de manhã.

gosto de te ver levantar da cama enquanto eu fico mais um minuto deitado. é o minuto em que me delicio ao ver o teu corpo a despertar do sono, a deixar-se beijar pelo sol que entra agora pela janela. espreguiças-te e pedes para que eu me levante. faço ronha, como os gatos. tu voltas-te a deitar ao meu lado e beijas-me. gosto da tua pele. beijo-te e volto a fechar os olhos.

quando acordo uma vez mais estas abraçada a mim, dormindo de novo. deixo que a tua respiração se faça do perfume do meu peito. acaricio as tuas costas, sim, eu lembro-me de me dizeres como gostas tanto que o faça. ao abrires os olhos sinto as tuas pestanas nos meus mamilos e um pequeno arrepio invade a minha manhã. beijo-te a testa e desperto-te. é sábado de manhã. hora de sorrir.

sábado, abril 10, 2004

Sozinho no escuro, o rapazinho sussurrava

Tenho a sensação de ter assistido ao teu nascimento, lá longe onde ainda não havia nem luz nem sol mas onde os passarinhos começaram a desenhar existência entre os bicos. Tenho a sensação de ter começado assim também mas algures onde nada fazia tanto sentido como nesse mundo que inventas com os pequenos passos que dás.

Existe, algures por este cubo de gelo em ardente combustão, uma criança que se inaugura como corpo de mulher. Existe, algures neste campo nunca antes vindimado, uma séria indecisão quanto aos passos a dar. Mas, ainda assim, um arrepio toma os contornos corporais mais distantes. Porque essa criança não tem nada de vulgar. É uma criança-símbolo, um nascimento antes de o ser. É uma criança que já conhece o Verbo e os caminhos pelos quais se encontra o corpo dos homens.

Este frio queima como gelo, mulher. Este frio coze-nos a alma aos poucos, sem que seja perceptível a sensação dolorosa que só uma enorme tensão pode originar em nós. A tensão de se ver o nascimento e o crescimento de algo que vem para nos ferir. Não uma ferida de sangue, antes uma ferida de carne. Carne mostrada aos olhos, aos dedos, à boca, à língua, ao sexo. Carne que se escorrega pelo nosso pensamento. Como se fosse possível ser-se apenas uma vez. E sinto o ferro das bandarilhas a espetar-se em mim.

quarta-feira, abril 07, 2004

relato

Tinha eu seis anos, seis louros mudos anos,
a porta do quarto entreaberta, a luz acesa,
bonecos de pernas partidas espalhadas sobre a cama,
a voz de criança a sussurrar nomes
numa velocidade despropositada em direcção à parede.
a minha cabeça loura a ouvir risos
e toda a infatilidade de conter o primeiro insulto.
hoje gravo no meu corpo a primeira ocasião
do desarranjo ocasional do meu cérebro.
é familiar, ri, está atrás da porta, no corredor.

segunda-feira, abril 05, 2004

não ler

estou no meio da zona industrial, rodeado de armazéns onde homens grandes carregam coisas pesadas e conduzem carros de todos os tamanhos e funções. eu, eu só sou grande do lado de fora. os homens apertam-me a mão como se eu fosse grande como eles, falam-me como se eu pertencesse ao mundo deles. sou, em tudo, parecido com eles. mas sinto-me longe de mim. fico exausto com o pó fino que salta do chão sempre que passa um carro. está calor e eu tenho sede. os homens olham para mim e dizem boa tarde doutor. eu não sou daqui.

mesmo agora, quando já voltei para casa, sinto que o mesmo pó me rodeia. nestes dias não consigo limpar as lentes dos óculos como deveriam ser limpas. sento-me à mesa, como sempre, a minha querida querida mesa. olho os meus dedos limpos, as unhas lavadas. pego numa caneta, uma caneta cara, que foi do meu avô, e abro o caderno, o meu querido querido caderno, onde me tenho ocupado a anotar de tudo um pouco, desde planos de obras a contas de cabeça e moradas de desconhecidos. escrevo um poema longo, longuíssimo, do tamanho dos meus livros. e quando volto a fechar o caderno, sou homem crescido outra vez. mas ainda diferente.

abro o fecho das calças e estico as pernas debaixo da mesa.tenho os pés descalços e pela janela aberta entra uma brisa que anuncia o chegar da noite. no rádio tocam músicas antigas, desconhecidas aos meus ouvidos. eu fecho os olhos e penso que, muitas vezes, seria possível encarar os problemas que nos surgem de outra forma, ter uma atitude diferente perante as coisas que nos acontecem. abro um maço de cigarros acabadinho de comprar e tiro um. brinco com ele nas minhas mãos. no armário, ao lado da mesa, estão cinco, seis isqueiros. olho-os. deixo cair o maço no chão, ao cair faz um som seco, como se fosse um pequeno corpo a escorregar por uma parede. um pequeno eu.

domingo, abril 04, 2004

nunca, mas nunca, acabar com reticências

lembro-me de uma vez, no meio de muitos e variados copos, ter dito a uma velha negra, que nunca antes tinha visto, "i don't really exist, i'm just a shadow of someone who has been here someday". era uma noite triste, aquela, eu estava sentado numa mesa de desconhecidos, de origens várias, e na mesa havia uma jovem casada, belíssima, calada, que julgo não ter, em nenhuma oportunidade, colocado o olhar na minha direcção. quando chegou a hora em que cada um seguiria o seu caminho, eu abeirei-me da velha negra e disse-lhe aquilo. ela sorriu, com o leve sorriso de quem já ouviu muito bêbedo na vida. ao sair do bar gritei, "isto parece-me o gana!". e voltei, aos tombos, para o sítio que chamam casa. minha.

não sei muito bem porque é que isso me voltou agora ao espírito. ando a passear pelas ruas da cidade que parece morta. tenho um saco cheio de lágrimas guardadas, prontas a rebentar, à primeira palavra irreflectida. meço os meus passos, como se fosse um geógrafo à beira do precipício. tento ouvir o zumbido dos carros que passam com intervalos cada vez maiores. inconscientemente, tenho vontade de que esta noite passe depressa, assim uma esperança de chegar à cama e cair desmaiado, só acordando amanhã já muito tarde, sem ninguém em casa que me faça perguntas, sem ninguém no mundo que olhe para mim. sim, quero ficar invisível. porque, afinal, continuo a pensar que não existo realmente.

coloco um cd no leitor e, sei agora, serei incapaz de fechar os olhos. alguém canta num francês macarrónico, incompreensível até ao mais experimentado dos linguistas. gostava de saber dançar, sabias, ó leitor inventado a quem me dirijo nesta lamentável chuva de palavras. tenho os pés frios mas não sinto falta da manta quentinha. o que eu gostava mesmo de ter hoje era a mesma vontade de voar que me fez chegar aqui, a este lugar onde eu ainda não vivi. em cima da minha mesa de trabalho, acumulam-se livros e projectos e restos de almoços. pelo chão, a roupa de toda a semana que ainda não passou. tenho medo de não conseguir passar desta contagem descrescente de memórias. pressinto a finitude das minhas histórias e não sei onde me vou poder encostar, para viver tranquilo, no fim do fim da minha vida. ainda se tivesse o número de telefone daquela velha...