Arquivo do extinto blogue Esferovite- a vida em pedaços (13-08-2003/ 4-01-2006)

domingo, outubro 30, 2005

sete da manhã e...

as insónias são azuis...

sábado, outubro 29, 2005

tantas portas

meu pequeno embrião - minha pequena tendência para fazer tudo errado - procuras no corpo do texto uma gralha, uma desordenação compulsiva da palavra digital. vais buscar um casaco à parte de cima do roupeiro e colocas os teus pés mesmo entre os meus camisolões. estava mesmo capaz de ir procurar o dia de hoje no calendário, festejá-lo sempre, todos os anos, a partir de aqui.

faço um risco no chão - tantas vezes fiz riscos na vida, riscos nos dias, na agenda - faço um risco no chão e continuo como dantes. os teus pés entre os meus camisolões, vais buscar um casaco. a minha pequena tendência natural para fazer sempre a escolha errada - aqueles minutos que passam, vagarosos, quando acordas e ficas pela cama a dizer: nunca mais faço isto, nunca mais faço aquilo.

é sempre mentira, não é? - digo isto para me sossegar, as moscas não me largam a vida. posso mudar a paginação do texto mas não posso mudar o meu passado - e algures entre uma coisa e outra existe ainda muito para dizer, sílabas, sílabas, em conjugação. faço um risco no chão - meu pequeno embrião, meu pequeno embrião, uma canção de embalar - faço um risco no chão.

código binário

escolha identidade usar os mecanismos de modernidade sobre as palavras - tentar feri-las; a manipulação. recorrer ao absurdo, por absurdo que pareça. fazer um peditório de palavras, assim, sem mais nem menos.

abro o jornal
suspiro cemitério projecto carrasco oficina restaurantes importância diferença filhos todo sistema tradição fundação inconsciente
assim reparo - de uma forma aleatória, é possível chegar ao encontro de palavras que não utilizamos nunca para dizer, uma lista de palavras efémeras no que se pode considerar obra. a minha pergunta é: o número de palavras cresce ou descresce com o aumento da obra?
abro o jornal (mais uma vez)
vou-me casar em abril. poderia ser uma frase fora do contexto, mas é um pouco mais, talvez eu lhe chamasse método experimental. em compensação, uma série de frases colocadas assim, à sorte, podem formar um discurso complexo e aceitável, para o leitor, mesmo quando são só reflexo de uma desorientação da mensagem.
fecho o jornal_______________________________fecho o jornal (reparo que abri duas vezes o jornal sem o fechar. repito o mesmo gesto improvável)
de resto, é uma questão de fazer tudo pausadamente.

espreitar pela vidraça - prólogo

era qualquer coisa como uma rua escura onde eu passava regularmente - oito senhores de capas compridas a entrar e a sair de uma porta grande, ladeada de uma vidraça onde, nunca por muito tempo, me deixavam parar e espreitar. era qualquer coisa como uma cidade um tanto desconhecida - com certeza grande - com fronteiras de lisboa até salamanca até ao porto até a nova iorque. era, ainda, qualquer coisa como um clube de senhores onde só se entrava fumando cachimbo.

era isso e a minha falta de jeito para contar histórias - por um lado, gaguejo sempre na narrativa, por outro, sou demasiado míope para aprofundar uma personagem. portanto, passava eu na rua escura, de jornal na mão, maço de cigarros contados no bolso, umas moedas para uma caneca de cerveja. imaginei que alguém me chamava do lado de dentro da porta e que, por uma vez, poderia entrar no clube, poderia ser recebido por aquele porteiro saído dos filmes de cinema. --muda de parágrafo ou muda de vida--

era isso e a minha escrita aos altos e baixos - calçada por calcetar - há quem diga que é dos carros que passam mais pesados do que antigamente. mas, ao mesmo tempo, a minha imaginação dormente entre os maços de jornais, um cigarro debaixo do braço, uma caneca de cerveja num clube onde não há canecas nem cerveja, um barman saído dos filmes, tudo e mais alguma coisa assim, aqui, onde eu passo regularmente, a espreitar pela vidraça.

sinal

de repente:

eu sou daqueles que escreve para ser citado
e o meu texto todo a desaparecer pela rede - uma falha de sinal telefónico, um servidor cansado. o meu texto todo sobre o poder da citação e a ausência de propriedade sobre as palavras que uso.
uma maldade.

sexta-feira, outubro 28, 2005

cinema

há um tempo em que somos fotografias de filmes de cinema ______ deixamos um certo espaço entre as palavras e os sons e paramos a história num olhar, num gesto - a mulher mais bonita, a explosão mais aterradora. sentados no sofá da sala entre quatro paredes quantas janelas de um lado e de outro - uma certa que luz que entra, uma certa luz que cega - fotografias de filmes de cinema, alguma coisa poderia começar a partir daí.

em primeiro lugar, os actores conhecidos - os grandes filmes - embora exista, nisso, uma certa perversidade de movimentos, porque é que somos levados a fixar uma imagem tão repetida nas mentes de toda a gente, tão movimentada por isso mesmo. os grandes filmes - essas histórias mal contadas dos espíritos que vagueiam na cabeça de homens que não tomam pequeno-almoço. havia, entretanto, qualquer coisa para dizer sobre os actores mas, sinceramente, já não me lembro bem do que se trata.

há um tempo em que somos fotografias de filmes de cinema ___________________________ um enorme espaço em branco onde podes assinar o teu nome ou deitar-te a fingir que também irás caber na fotografia que alguém colará na parede do quarto. são essas histórias de vidas relativamente pequenas que fazem o maior sucesso. uma vida que dura entre noventa e cinto e cinquenta minutos e pode ser consumida ao mesmo tempo que se comem pipocas. depois disso, uma entrevista e duas críticas mais ou menos laterais sobre o teu trabalho. um tem a sorte de estar no clube certo, outro alegra-se por ficar no clube errado. em suma, nenhum clube é bom para os que ficam de fora.

há também um tempo em que nos levamos a resumir tudo em frases pequenas - aquela rua - aquela estrada. há uma maneira de dizer amo-te que é muito melhor compreendida por toda a gente i love you em grande, na tela - i love you - nada a ver com uma declaração de amor, simplesmente uma maneira de ser percebido, mesmo que mal percebido, por mais olhos mastigantes. outra coisa completamente diferente é não dizer nada : o silêncio do teu olhar quando a camera te encontra a ensaiar. provavelmente é aí que, mais do que em qualquer outro lugar, os filmes de cinema se transformam em fotografias.

mudança da hora

cinquenta maneiras de dizer - um estabelecimento em rede de algumas das nossas emoções para com o próximo. entre cá e lá, o infinito de acordar e adormecer todos os dias, mais ou menos à mesma hora.

nota: relembrar que o trabalho não é a coisa mais importante da vida - vida para além das horas de expediente - não tens que estar, sequer, bom para trabalhar, será muito mais importante que estejas bom para sonhar. relembrar isto na mesa de um café, junto à estação. lá fora, chove.

deixar crescer o cabelo, uma opção de vida e de shampoo - se as pontas secam como a terra no alentejo, se o cabelo se desalinha como o vento na nossa cara - deixar crescer o cabelo pode ainda ser uma maneira de inventar palavras com consoante dupla. a mais que isto, toda a história da cozinha, milhões de mulheres todos os anos com os dedos insensíveis ao calor dos tachos. alguma vez pensaste no seu olhar?

queria também ainda deixar expresso que, entre uma sexta-feira e outro dia qualquer, existem pequenas diferenças de importância. à sexta-feira o transeunte está mais sorridente, preparado para comprar uma boa promoção na montra da loja. fora disso, é tudo uma grande monotonia. os comerciantes usam os casacos para se aquecerem no frio escuro dos balcões, poetas entram e saem pedindo moedas para um café.

seria tudo isto a história da pobreza à face da terra, poetas de dedos amarelecidos à cata de uma moeda. mas também existem poetas-revisores - luzes sobre a mesa, trazer sempre uma caneta no bolso para uma ocasião especial, rasgar páginas de livros só porque, na verdade, esse livro não tem interesse nenhum. nada é uma experiência pessoal de sentimento - um livro não é um filho - um livro é uma produção industrial de cultura [avesso às regras do capitalismo, sim] - um livro é um bem como outro qualquer - e sim, mesmo que não acredites, muitas vezes se mata a sede com um livro, mata-se muito mais a sede com um livro do que com garrafas de água do luso.

nota: poderá, algures, haver um final de história. se houver, o que eu espero, é que o possas encontrar.

quinta-feira, outubro 27, 2005

auto-conhecimento

uma mão lavada - a maçã - sete rubricas deitadas sobre um papel, uma senha arrumada a um canto da sala - dezasseis encontros por marcar/aquelas faltas constantes de que nunca se deu conta - uma lista para se fazer de manhã, a horas certas, um pedaço do nosso corpo dado ao desbarato durante a noite.

assim mesmo, eu continuo assim mesmo : gosto de dizer baixinho que voei e, asseguro, há um certo prazer ritual neste balanço de corpo que tu percebes, que tu entendes e que tu saboreias nesse silêncio de olhos atrevidos. sei tantas vezes do teu nome que me apanho a s-o-l-e-t-r-a-r, sem me aperceber, essas quantas letras que me deste no dia em que te conheci.

para quê esta fórmula a que me prendo, estes sempre três parágrafos - uma promessa, uma ausência - como se ao me sentar para escrever usasse uma tabela [pois, no fundo, eu sou do tempo em que até já as tabelas são coisa da literatura, eu já vi um lugar onde] - arrumar as minhas botas, limpas, debaixo de uma cadeira, buscar um maço de cigarros no bolso da camisa, dizer, eu não fumo.

haverá ainda assim uma explicação mais fácil para tudo isto, uma qualquer maneira de responder às minhas próprias dúvidas - porque, queiras ou não queiras, neste tempo de se ser sempre tão complexo/complicado connosco e com os outros, só nos sobra algum tempo para tentar simplificar os nossos argumentos; mesmo que se feche o entendimento a uma insistente falta de qualidade.

talvez na próxima carta eu use cores, um azul, um amarelo, um vermelho, talvez eu recorra aos diferentes tamanhos da língua neste beijo recortado de uma revista velha -aquelas coisas que se encontram sobre as mesas. estava capaz de jurar que, sem que nada eu tenha feito, o parágrafo deste texto se alterou. existe, certamente, uma vontade própria em todos os parágrafos. mas como em tudo na vida, não se percebe bem, a quem pertence essa vontade.

uma série de coisas sem sentido

era a mania dos calções, mesmo quando chovia a potes e os homens compravam casacos compridos nas lojas que eram todas de senhores bem postos e respeitados na vila. era a mania dos calções, rapaz que é rapaz, usa calções, vai à escola de calções, aprendiz de mercearia de calções. os sapatos faziam todos toc-toc-toc nas calçadas e os mariolas fumavam barbas de milho à porta dos cafés. era.

entretanto começou a usar-se, cada vez mais, um certo respeito pelas formas de outrém e, ainda sempre mais, umas quantas roupas de cores diferentes, costumes desalinhados com a respeitabilidade da vila, um ou outro tipo que, de cabelo desgrenhado, não usava a brilhantina exigida. olhavam-no por cima do ombro e nem toda a gente lhe dava os bons dias. mas era sempre o filho de ou o neto de e, por isso, aceite.entretanto.

mas agora já ninguém se conhece, a verdade é esta. a polícia já deixou de perguntar "és filho de quem" porque, assim como assim, já ninguém é mesmo filho de uma pessoa qualquer. começou-se por se ser da rua e agora é-se sempre de um outro conceito, mais ou menos reconhecível, salvo extremas ocasiões. agora já se anda na rua sem se ligar aos olhos em cima dos ombros. mas.

quarta-feira, outubro 26, 2005

aniversário de casamento

eu dizia as cores muito devagar enquanto ficava a olhar para o écrã do computador a contar vírus com os dedos. palavras que se perderam por aquelas tardes em que fomos levados a acreditar em tudo. era isso, eu a conversar sobre ti com a tua prima, tu a ouvires a conversa toda, a controlar.

eu dizia que andava a estudar as plantas e tu acreditavas. tinhas os olhos muito grandes e uns cabelos soltos pelos ombros. depois enviaste-me uma fotografia pelo correio, em poses sensuais. coisas dos livros, antigos. eu sorri a olhar para a foto e pû-la de lado logo a seguir. sabia que mais cedo ou mais tarde acabaria por casar contigo.

agora tenho a barriga muito cheia de coisas que nunca comi. a minha cabeça continua igual mas eu deixei de acreditar em muitas outras coisas. acho que já casaste. dias antes de me enviares a fotografia, um rapaz do teu escritório convidou-te para irem tomar café. eu tenho os braços cheios de jornais. não sei bem que dia é hoje.

sábado, outubro 22, 2005

segredos

o segredo da minha página está na saliva com que molho as minhas feridas. assim deixo, a sombreado, minhas marcas de sangue. procuro um casaco entre os mais velhos e envolvo-me com o cachecol. asseguro-me do maço de cigarros dentro do bolso da camisa e saio à rua. todos os homens fumam, na tua cabeça. na minha cabeça, eu fumo também.

o segredo do meu poema por terminar é esta insegurança no acordar todos os dias. encarar como um milagre a manutenção dos pés e das mãos no mesmo lugar. aperceber-me constantemente de como tudo poderia virar de rumo, se eu quisesse. querer e não querer as mesmas coisas, ao mesmo tempo. fazer da sensação de morte, uma sensação de vida e saber que, sempre que tocam à campaínha, é engano.

o segredo deste meu toque na tua pele são as noites inteiras sozinho. anos inteiros de não estar, não fazer, não ser sequer. o que há no meu toque falta em todos os outros contactos, serve assim de fronteira para o que nunca haverá além. eu sou daqueles que se entregam pouco, já sabes, e por isso segues a tua estrada, deixando-me isolado no meio do caminho. é mesmo assim, eu sei. e enquanto te vejo ir, eu não digo nada.

dois mais dois

Poderia dizer I love you, te amo,
Je t'aime como o moço...
Como o moço da T.V.
É tudo cliché meu bem
Eu só sei que dois mais dois são quatro
e o óbvio acontecerá

"Dois mais Dois" - Danae in Condição de Louco

poderia dizer que não ia voltar aqui. aliás, teria sido ontem ou um destes dias, as costas cansadas a doer ainda mais no momento de um espirro, a chuva a cair sobre os meus ombros tanto mais humidade como este inverno que chega verde pelas paredes e se derrete, terra e tinta, no chão onde tento, e não consigo, repousar meus pés. poderia dizer que não ia voltar aqui, mas o óbvio acontecerá.

nem sequer aquela sensação marítima de ir e vir, nem sequer aquela inconstância de barcos que cruzam tempestades. uma porta aberta e o frio que entra, devagar. a cabeça cheia, a cabeça sempre cheia, o eu estar-me sempre, constantemente, a repetir. nem aquele cheiro da maresia, nem a violência de uma palmada na minha face com a barba por fazer. ficar aqui sentado a saber que o óbvio acontecerá.

poderia dizer que a partir de hoje tudo seria ausência. mas poderia tê-lo dito por todos os dias do passado e continuá-lo a dizer pelo futuro. agora só aquela interjeição corporal de saber que não vale a pena, nada vale a pena quando sabemos que a repetição faz parte já do ser-se mesmo assim. repete então baixinho, eu sou mesmo assim, eu sou mesmo assim. a chuva continua a cair pela cidade. o óbvio, como sempre, acontecerá.

segunda-feira, outubro 17, 2005

mote

tens saudades minhas? certamente não tens saudades minhas.
saudades não são este silêncio tumular
nem esta ausência, este não saber o que fazer das palavras.

sinto cada minuto que passa como uma mão que rouba algo do meu bolso. sinto os meus passos molhados pela chuva e uma estranha quietude na cidade, agora que é inverno e nada pode negar que as coisas começam a andar ainda mais lentas. talvez sejam os meus dedos, ou qualquer coisa dentro da minha cabeça, que me faz escrever menos, pensar menos, desejar menos. o meu corpo prepara-se para hibernar. só não hiberna a constante necessidade de ser satisfeito.

mais tarde, durante o dia, haverei de contradizer todas as coisas que digo, haverei de anunciar os contrários e o seu regresso à primeira figura. para estas curvas, nada terás a dizer que se consiga ouvir. os minutos não param de se repetir, eu não paro de me repetir, nada nada pára de se repetir. chega a ser cansativo, isto, é certamente cansativo, esta inconstância tão constante. e depois oiço aquela mesma música de outros dias e deito-me a pensar se terás saudades minhas.

oiço as notícias e penso para que me serve ouvir as notícias. se saio de casa, chove-me o mundo em cima. se fico, este adormecimento de facas sobre as minhas costas. oiço música e penso para que me serve ouvir música. nenhuma arte no mundo, é o que eu sinto, nenhuma satisfação. todo se corrói lentamente à minha volta e o meu mundo, o meu vasto vasto mundo, é cada vez mais uma pequena ilha onde só falésias me levam ao mar, ao mar e à morte, nem sempre pela mesma ordem.

sábado, outubro 15, 2005

"o homem sem qualidades"

tive uma namorada que me lia excertos de "o homem sem qualidades" enquanto passeávamos por Lisboa. posso fazer um esforço para me tentar lembrar de algumas dessas páginas mas, nessa altura, eu tentava decifrar a abragência do mundo em livros de psicologia. passeávamos pelos jardins da gulbenkian tendo como banda sonora musil, jorge de sena e os pombos. eventualmente, isto poderia tratar-se de uma cena de um filme.

entretanto, a mesma namorada puxou-me a ler "a perna esquerda de paris", que eu, insistentemente, lia páris, imaginando uma qualquer história de antiguidade clássica, nada que eu estranhasse na obra de gonçalo m. tavares que conhecia de outros cadernos mas, mesmo assim, insuficientemente atraente aos meus olhos. mais pela ideia das tabelas literárias do que pela transformação do jovem grego em cidade-luz, lá acabei por comprar o livro.

e foi mesmo dentro das tabelas que redescobri, ou descobri, o prazer das palavras de musil. sim, o mesmo "homem sem qualidades" dos passeios pela gulbenkian, agora ali vivo e a tocar-me no ombro, por dentro e por fora. e, no dia seguinte, o primeiro passo de uma larga caminhada: ir até à biblioteca municipal procurar por um volume que seja de tal obra. nada, o vazio. agora procuro-o pela internet e disponho-me a ir onde for para o encontrar. eventualmente, isto poderia tratar-se de uma cena de um romance.

sexta-feira, outubro 14, 2005

7

quantas palavras posso guardar no meu bolso? agora eu sei que tenho de estudar, tenho muito que estudar, para que algum dia chegue a saber escrever, dizer, falar de alguma coisa. quantas palavras? umas três ou quatro, talvez. um milhão delas, possivelmente. ter um milhão de palavras e não saber o que fazer com elas. são assim as letras: misturadas.

pensei plantá-las mas não resulta, como também não resulta ficar à espera de inspiração ou de instruções divinas para se fazer soar alguma coisa. as palavras soam, os escritores suam. uma aparente harmonia nas coisas, mas não. é tudo desiquilibrio e falta de tino, falta de organização. agora eu sei que tenho de estudar, tenho muito que estudar.

quantas palavras guardadas no bolso, afinal? que uso posso fazer delas? se no bolso de nada me servem, as minhas mãos que não estão limpas, os meus olhos que lacrimejam, sempre alguém atrás do meu ouvido a querer dizer qualquer coisa que não se ouve. e depois de tudo, porque tudo acontece ao mesmo tempo, acabar sem nada para dizer e de bolsos vazios.

quarta-feira, outubro 12, 2005

aprender a citar

"Nobody can be exactly like me. Even I have trouble doing it."

"I'll come and make love to you at five o'clock. If I'm late, start without me."

Miss Tallulah Bankhead

Há mais em:
http://www.livejournal.com/users/triciclofeliz/86014.html

papel amachucado em cima da mesa da cozinha

agora não vou mais fazer contas de cabeça para saber a que horas chegas de viagem. esta foi a frase que eu inventei para dizer que não espero mais por ti. o assunto está arrumado numa pasta preta, guardada a um canto da minha casa. e acabar por te comunicar este assunto é quase a mesma coisa que aceitar a minha morte. mas é para isso que estamos aqui.

não sei se é da humidade mas os meus dedos estão presos e custa-me, agora, muito muito a escrever. a minha cabeça voa por outros lados das palavras, das comunicações. e é impossível pedir que me concentre se a minha própria maneira de ser é desconcentrado. tento ligar para longe e, de lá, ninguém me atende. em vez de decidir entre o álcool e os calmantes, eu só apago a luz.

mesmo que a música me pareça estar alta demais, eu não me vou mexer daqui. fico a sofrer as consequências dos meus actos, se for só uma dor de cabeça, tudo bem. olhos para as histórias de homens que conheço e é tudo pequenino e sem jeito. toda a gente a pensar que a simpatia é o mais importante e a lixar os outros pelas costas. eu estou cansado, é isso que te posso dizer. agora não vou mais fazer contas de cabeça para saber a que horas chegas de viagem.

terça-feira, outubro 11, 2005

chuva

alguma luminosidade pela estrada, o alcatrão que brilha, suponho, enquanto a terra acumulada nas estradas vai escorrendo para as bermas, e das bermas para os regueiros, e dos regueiros para dentro da própria terra. alguma luminosidade, faróis acesos nesta manhã quase noite, o corpo tem mais sono, está mais quente debaixo das mantas de inverno, é mais difícil a rua.

alguma luminosidade, algum acerto, algum aperto, provavelmente no coração, o cinto do carro contra o meu pescoço, o meu peito, os meus olhos bem abertos contra o pára-brisas cheio de água, o não haver nada para ver para além deste vidro cada vez menos transparente. e depois que horas são quando alguém nos toca no braço, quando alguém nos sorri? aqui dentro de casa, eu e o meu carro.

alguma luminosidade nas histórias de amor que rasgo mal acabo de as escrever. alguma perícia nos dedos e muita saudade de ter a sala cheia de risos. mas para mim é sempre a estrada, sempre uma cortina fechada para dentro de mim. podias dizer de um engano ou podias dizer de um suspiro. abraçar esta manhã e engolir as palavras todas que acabo de dizer. porque eu, eu estou sempre calado.

segunda-feira, outubro 10, 2005

livro

tenho planos para começar a escrever um outro livro nos próximos dias. um livro sério e consequente, com qualquer coisa para dizer a alguém que o leia. tenho planos de começar a pesquisar, a procurar, tantos temas de romances que me foram aparecendo pela vida inteira, e agora tenho que pensar tanto nisso, tanto porque me esqueci de os anotar.

tenho planos para começar a escrever um novo livro, planos para me sentar na mesa da sala em frente a livros abertos em páginas marcadas, tenho planos para procurar livros na biblioteca, ler uma literatura que me diga qualquer coisa enquanto chove, sim, porque chove, e eu acho que isso é um excelente contributo para o meu livro. vai nascer de uma árvore, como as cerejas.

porque eu venho de um lugar onde as coisas nascem, nascem devagar como as flores, eu venho desse lugar onde nascem os livros, vão caíndo sementes dos outros dentro de mim quando leio, vão caíndo gestos e inovações dentro da minha maneira de falar e pensar com as palavras, e agora tenho planos para começar a escrever um novo livro, um livro sobre alguma coisa, para que depois se lhe tire a casca e se coma, deliciosamente.

tu

agora vou-te ensinar como se escreve um texto a correr: terei uns dois ou três minutos, ligo o computador, começo a passear as mãos pelo teclado, alguma coisa há-de sair, isto não é uma aula de escrita criativa, as minhas regras sou eu que as faço e por isso escrevo, escrevo como penso, como respiro, automaticamente, talvez, tudo ao mesmo tempo, de certeza.

depois era ontem à noite e em vez de escrever ao mundo apeteceu-me escrever-te a ti, também não queria estar com o mundo em minha casa, queria-te a ti, também não queria ter ido tomar café com o mundo, gostei de ter ido tomar café contigo, e assim vão as coisas, mais pequenas, mais devagar, eu a sorrir enquanto olho para a parede.

depois é o meu corpo a lutar com as sensações, seja eu grande ou pequeno, seja segunda ou sexta-feira, sou eu a lutar com as coisas que sinto e com as coisas que penso, sou eu durante a noite a ter pesadelos e a acordar cheio de dores de garganta, sou eu a querer dizer-te qualquer coisa que te toque bem lá dentro, eu a ficar quietinho, como quem espera, uma palavra ou um sinal de ti.

sexta-feira, outubro 07, 2005

n ó s

lembro-me do dia em que chegaste devagar a casa, com os pés a soletrarem passos por cima da carpete, os olhos muito abertos para ver no escuro, e eu sentado no sofá da sala, acabado de acordar com o rodar da chave na porta da rua. lembro-me desse dia como se fosse agora mesmo que estivesses a chegar. eu, a sorrir.

lembro-me do teu sussurro de boa noite, da minha mão a acender o candeeiro, de ficarmos ambos confiscados perante aquela luz. lembro-me de caíres de cansada sobre o sofá e deitares a tua cabeça ao meu lado. e depois a minha voz recuperada, vamos para a cama. vivia-se na cidade, nesses tempos. nada nos podia enganar.

lembro-me de nos ser muito difícil despir, lembro-me do teu cão a passear-se pelo corredor, talvez a pensar que era já dia. e depois a cama, fria fria como uma noite sozinho. as minhas mãos a procurar as tuas, os nossos corpos abraçados. lembro-me de já não haver força sequer para um boa noite. um só beijo que se nos apagava. nós, era uma forma de conjugação.

texto

agora sei o significado de nuvens altas. saí de casa e senti um fresco a tocar-me no rosto. fechei os olhos e depois olhei lá para cima. sim, lá estavam: nuvens, altas. pensei: agora podia voar lá em cima e sentir uma manta de fresco às costas. agora podia ter asas. agora podia. pensei: agora sei o significado de nuvens altas.

podia ser uma outra mensagem qualquer. assim: chegar a casa e olhar para dentro das coisas. ligar a televisão e ficar sem nada para dizer. ter umas quantas histórias para contar e, mesmo assim, não sair nada. podia ser uma outra mensagem qualquer. escolher quatro palavras e usá-las sempre, em todas as frases, de modos diferentes.

escrevo ainda mais devagar. parado. ainda mais devagar. lento. penso em cada frase, em cada palavra, em cada letra. tento ouvir-lhes os segredos, o som da matéria a integrar-se no texto. sim, as palavras fazem barulho. sim, as letras também. experimentem colocar uma letra fora do seu lugar e vão ouvir a gritaria que é. eu, eu escrevo mais devagar.

quarta-feira, outubro 05, 2005

medo

ou gosto de ti ou gosto de ti. não sei quantas coisas que vão ficar por dizer. arrumar as palavras por prateleiras, ter que atender toda a gente que me chama. fingir ausência e escapar ileso, nada disso é possível. e pronto, mais uma vez, é de noite. mete medo.

ou gosto de ti ou gosto. a cabeça e os braços, a tremer. qualquer coisa vai chegar ao fim, eu sei. de qualquer modo não ia querer ficar muito tempo a ver. uma vida calma, calma e preenchida com um abraço. mas o jardim vazio e é de noite. mete medo.

ou gosto de ti ou. qualquer coisa que eu já nem sei dizer. podemos combinar um café mas eu vou estar a fugir. os meus pés e a minha vontade de estar sozinho. ser capaz de referir, a alguém, algo, uma coisa pequena que seja. e quando chega a noite, medo.

terça-feira, outubro 04, 2005

o romeno

tem demasiada roupa para o tempo que está, mas talvez as noites ao relento lhe tenham esfriado de tal modo os ossos que agora só casacos e casacos debaixo deste calor lhe sirvam para aguentar os dias. também pode ser só uma forma de transporte, de alguma forma, um casaco vestido não cansa os braços, os braços que serão precisos, mais dia menos dia, para encontrar algo que comer.

tem um boné antigo, certamente resgatado de uma casa onde gente velha se desinteressa das coisas que têm marcado um passado. um boné antigo, em claro contraste com todas as novidades que agora nos oferecem na feira, nos mercados, em todas as ruas. mesmo assim, vai-se ficando pela sombra, vai-se ficando pelos cantos, espreia as montras da lojas e ensaia uma conversa, mesmo sem saber nada desta língua.

entra numa loja e, sem perceber nada da língua em que lhe tentam explicar que ainda estão fechados, olha os livros com um ar de encantado. uma conjugação de letras que não consegue entender, procura uma imagem familiar, algo que lhe diga respeito. perante a passividade de quem lhe aceita os modos tal como são, fala na sua língua que ninguém compreende, que lá na sua terra chove muito, que a água lhe passava do peito, que os filhos estão perdidos e ele não come. os braços descansados de estarem livres de um casaco, morrem mais um pouco quando estica a mão para uma moeda.

inquietação de josé mário branco

a contas com o bem que tu me fazes, abro a janela e vejo no quintal um pássaro que passa, despreocupado, seja com o sentido da vida seja com o andar do mundo. vejo um pássaro e espio-lhe os cuidados com o pousar dos pés sobre a terra, com o debicar emocionado com que vai recolhendo, aqui e ali, o seu alimento. volto para dentro e ligo a música.

a contas com o mal por que passei, estendo, uma de cada vez, as pernas sobre o sofá da sala. observo-me as formas, as curvas e os jeitos destas pernas feitas para andar e mais nada. parecem ser fortes, consistentes, o que não está nada de acordo com aquele sentir dos joelhos a tremer, no virar dos dias. algures no bolso de umas calças abandonadas, deixei o maço de cigarros.

por tantas guerras passei que hoje em dia já poderia dizer que tudo me parece normal. mais longe que isso, não sinto nada que me possa tocar fundo, fica tudo à flor da pele. à flor da pele o frio e o calor. à flor da pele as minhas mãos, quando as deixo repousar na água, antes de me lavar a cara. fecho os olhos e sinto uma onda que me leva. já é tarde.

já não sei fazer as pazes, nem contigo nem comigo, os meus dias sempre nesta inquietação de ter tudo o que fazer e, nisto tudo, haver sempre qualquer coisa que não dá bem para perceber, que me escapa, que me foge. é assim que eu sinto, um balão que se esvazia e, por não ter mais onde ir, lutar contra si próprio, sempre a querer deitar mais ar para fora. para fora, o que tenho e o que não tenho.

segunda-feira, outubro 03, 2005

bilhete postal

agarra-me ao chão, só mais desta vez. os pés ficam leves, leves e tudo o que eu oiço é uma voz limpa e quieta, sem nada que me abrace nestes dias de seca. ando pela rua e tudo o que vejo é o ponto onde saltar, para outro lado, para outra coisa qualquer. não vejo partidas nem chegadas: apenas esta maneira de estar sempre algures, onde tu não estás.

agarra-me ao chão. não como se agarram os navios ou os aviões. agarra-me como, não sei. de uma maneira que sintas próxima das linhas da tua mão. um abraço, um beijo, um sinal, só. o teu olhar. ou nada. não me tentes agarrar, talvez seja essa uma boa maneira de o fazeres. ou então, isto não vale nada. eu estou a dar-te as pistas erradas.

agarra-me ao chão, é isso que eu digo baixinho, porque sei que tu ouves. arrumo as minhas mãos nos bolsos e, mesmo assim, lá vou eu, a crescer para o céu ou qualquer coisa assim como isso, lá. os meus pés não correspondem ao meu pensamento, no fundo, eu sei que eles também não existem para isto. pois, agarra-me, agarra-me. como tu quiseres.