Arquivo do extinto blogue Esferovite- a vida em pedaços (13-08-2003/ 4-01-2006)

quinta-feira, julho 29, 2004

menina melancolia

o hoje ser dia de sol e praia pouco me diz. o hoje ser dia em que está mais fresco lá fora, não me interessa. e sim, pensei que isso já te fosse claro há muito muito tempo. mas surpreendo-me de cada vez que demonstras não perceber o que ficou aqui escrito nos meus olhos. afinal já há tanto tempo que olhas para eles. surpreendo-me, é a palavra certa, não me enganei. porque agora já não dói nada. não se trata de tentar recuperar nada daquilo que foi, supostamente, ficando pelo caminho. não há nada que se possa fazer.

eu fico sentado no sofá. fico sentado no sofá grande parte dos meus dias. ou então saio de casa e vou sentar-me noutro lado qualquer. sempre distante, sempre com os olhos perdidos num ponto qualquer que não está ao teu alcance identificar. mas não, não é um problema teu. é um problema meu. sou eu que quero estar assim, sentado na mesa de um café, num sofá, a olhar para o horizonte perdido. e não, também não estou distraído. e não, também não te estou a prestar atenção. estou como sempre nos habituámos a estar, aqui em casa. estou só para mim. e é bonito.

experimento-me e sou capaz de escrever estas coisas sem chorar. finjo que não estou a falar de mim e assim consigo escrever esta carta sem destinatário certo. talvez a deixe dentro de uma qualquer caixa de correio, para ver se alguém a lê. também sei que esse é o meio de nunca ter uma resposta directa, mas eu não procuro uma resposta directa. sim, não há nada para rectificar. há uma, ou melhor, existem centenas, milhares de vida para serem vividas. e eu simplesmente decidi que quero viver a minha o melhor que possa. simplesmente, é a palavra que devia estar sublinhada.

mesmo quando uma lágrima ameaça, eu recosto-me mais um pouco na cadeira, faço ninho no sofé, respiro fundo. estou como uma folhinha de árvore, apetece-me dizer. já corri a lista telefónica do telemóvel umas duas ou três vezes, mas é-me difícil escolher a quem o dizer. eu sei, na contacto verdadeiro que agora tenho comigo, que afastei todos aqueles que o poderiam ouvir. mas também desconfio que os afastei porque soube, mesmo que inconscientemente, que eles não iam saber ouvir. foi sempre assim. e eu acho que é bonito.

terça-feira, julho 27, 2004

hoje o dia vai chegar

deixa-me descer para poder encontrar o teu pescoço descoberto e inútil, arena cheia de areia da praia, bancadas feitas de fitinhas de muitas cores, rosário esperançoso de uma piscina longínqua e desfeita de arvoredos, onde eu, um dia antes de ter nascido, fechei os olhos pela última vez, salgado, pela primeira vez, sabedor do que viria depois de mim, depois de fechadas todas as portas. pensava eu, segurança, amor, segurança, amor, pensava eu, como nunca soube que poderia estar errado.

e então sou eu, eu com um corpo obscurecido, descendente fio de pólvora seca, armadilha na hora de jantar, sestas dormidas no sofá, repetidamente, sesta atrás de sesta, como se anulasse o dia e fizesse de mim uma ópera de sono, os olhos fechados, o eu antes de ter um eu com as portas fechadas. na coluna da música ele repete, eu estou bem, eu estou bem, eu estou bem, e quando eu penso em sossego penso sempre em inexistente, e quando eu penso em relaxado penso sempre em impossível, conto os dias até ao próximo encontro, nunca estou lá bem, mas quero sempre mais.

e se fosse eu o culpado, pergunto-me, e se tiver sido só eu a fechar as portas, sem haver ninguém nem perigo algum, como, aliás, é o que me parece que acontece todos os dias que tenho medo, perigo algum para me atacar. páro. recomeço. corro em direcção às pessoas, mas é só uma ilusão que me crio. na verdade, todo este movimento sou eu a fugir, a fugir para muito longe, como as lágrimas fogem dos olhos e vão cair, descendentes, no teu pescoço algures, onde eu nunca o encontrei.

segunda-feira, julho 26, 2004

toque

olha o telefone a tocar, olha o telefone, aquele toque irritante, piriri piriri pi pi, o telefone, o telemóvel, olha o telefone a tocar, olha o telefone, aquele toque, aquele toque irritante, irritante de entre outros tantos todos tão irritantes quanto aquele, olha o telefone, o telefone, és capaz de parar esse barulho, és?, olha o telefone, luis, olha o telefone a tocar, e tu não atendes.

visores que nos fazem descobrir quem nos liga, ora aí está uma boa invenção, agora já não precisamos de pedir a outras pessoas, vê quem é e diz que eu não estou, já não precisamos de aconselhar, não te esqueças de perguntar quem é, diz que não estou, mas pergunta quem é, vê lá se fôr o João, vê lá se fôr a Guidinha, esses atendo, mais ninguém, e depois quase que encostar a cara na cara de quem nos secretaria, a fazer sinais, não estou, não estou, boa invenção, visores.

o telefone a tocar e, entre as nossas mãos, a fingir que não existe, mandado para dentro da mala, que porra, estou a jantar, que porra, são horas de dormir, que porra, já é tarde, que porra, não me apetece, oh pá!, estou de férias, o telefone a tocar, visores, a Joana, o Augusto, a Andreia, o Paulo, o telefone a tocar, que raio, já é a terceira vez que me liga, o telefone a tocar, que raio, hoje é sábado, o telefone a tocar, não tenho bateria, visores.

domingo, julho 25, 2004

mamã

Eu podia dizer, são os rapazes mamã, são os rapazes, mas não, não são. Enfim, os rapazes são uns chatos e eu tento fingir que não os oiço mandar-me as boquinhas que me mandam quando eu vou a entrar no portão do liceu. Eu podia dizer, são os rapazes mamã, e é por isso que eu visto estas saias curtas e as camisas de botões abertos até debaixo das mamas, os rapazes, mamã, mas os rapazes são uns anormais, tens quarenta e dois anos, já devias ter percebido isso.

Eu podia fingir, o Cláudio é meu namorado, eu podia dizer, vou sair com o Cláudio, tu gostas tanto do Cláudio mamã, tu gostas, e eu podia dizer o Cláudio e os amigos, a casa do Cláudio, os pais do Cláudio, depois tu e a mãe do Cláudio falavam ao telefone, tu e a mãe do Cláudio iam ao café, tu e o pai do Cláudio diziam bom dia e boa tarde, e eu saía com ele e os amigos, podia dizer, é meu namorado, podia entrar no liceu de mão dada com o Cláudio, os rapazes ficavam calados ou diziam Boa! Cláudio, e eu fingia que não ouvia porque eles são uns anormais.

Eu podia fazer tudo o que faço dentro das regras que tu me impões, mamã, eu podia ser aquilo que tu queres. Eu podia ser aquilo que tu sonhaste, os vestidos de folhos, o ballet, e passada esta fase da adolescência, vestia um fato de mulher grande e séria, advogada, tudo o que quisesses, o Cláudio, um doutor, um médico, o que tu quisesses, eu podia dizer, são os rapazes mamã, eu podia fingir, o meu namorado, mamã, mamã, e eu sei que não percebes, e por isso nunca digo nada, nunca digo nada, tu sabes porquê, mamã, tens quarenta e três anos.

areia

a questão é: eu deitado ao sol, a cabeça na areia. tu, sentada ao meu lado, pés quietos, muito juntos. os nossos olhares: distantes. a ver o mar. a-ver-o-mar. a situação é esta: sábado. sábado de tarde. a praia, cheia. as pessoas, aos gritos. lá longe, o mar. no mar, uns barcos, a maré baixa. o nadador-salvador, queito. eu deitado ao sol. a cabeça. a areia. a questão é esta.

há um falso pressuposto nesta situação. aqui ninguém gosta de ninguém. eu deitado, tu sentada. pouco importa, diria alguém, é só uma questão de se trocarem os verbos. ensaio então, eu sentado, tu deitada. a praia cheia de gente. os olhares: distantes. os nossos. porque nos investimos daquela sensação de ser o centro das atenções. ponto um: não pensar que se é o centro das atenções. toco-te ao de leve nas costas. um beijo.

a questão é: não pensar. deixar que o sol nos queime as pernas, por debaixo dos calções. vestes um bikini muito pequeno. eu sorrio. beijo. onde existiam palavras agora existem lábios. como se uma coisa não tivesse nada com a outra. ponto um: (eu repito) não pensar que se é o centro das atenções. ainda assim, procurar abrigo.  não do sol. é verão e quatro paredes juntas fazem desaparecer bikinis. não. procurar abrigo, praias vazias.

porque depois é só. lábios, lábios, lábios. mãos junto de bikini, mãos junto de calções. e, enfim, não diria que é do calor dos corpos. talvez a areia a apegar-se demasiado ao meu peito cheio de pelos. talvez me seja difícil lavar os pés mais logo, quando voltar ao meu chuveiro. a prestação do carro. um poema de herberto helder. um livro qualquer. o jantar em casa da irmã. sim, há muito em que pensar. e a questão é: as palavras.

domingo, julho 18, 2004

ao desviar-se naquela curva

isto é um carro a andar sozinho, um carro a andar pela estrada que já lhe é conhecida, fazendo-a milimetricamente da mesma forma que sempre a faz, quieto, enconstado à berma, talvez só mais devagar, isto é um carro a andar sozinho, os carros andam sozinhos, sim, não é como nos filmes, aqui vê-se um condutor, não é magia, aqui está lá alguém a fingir que faz tudo como o resto das pessoas, mas isto é um carro a andar sozinho, um carro a andar sozinho.
 
podia-se dizer, faz como eu faço, podia-se dizer, faz como eu penso, podia-se dizer, faz, faz, faz, podia-se dizer, o caminho até chegarmos pode ser longo mas existem autocarros e comboios, boleia não, só nos filmes, anúncios nos jornais, só nos filmes, podia-se dizer, faz amor comigo, podia-se dizer, faz a cama, podia-se dizer, faz o jantar, alguém que diz sim junto ao altar, alguém que sai a correr de casa, mete os óculos escuros e não atende mais o telefone, podia-se dizer.
 
prova estes morangos, são bons, prova estas cerejas, são boas, prova estas ameixas, são sumarentas, prova esta melancia, water melon, como dizem os americanos, mas americanos só nos filmes, e agora, tiras a camisa, e agora, tiras as calças, e agora, tocas-me, tocas-me, tocas-me, ouves um piano a ecoar vindo lá da sala do fundo, como nos filmes, prova todas estas frutas, não são para ti, como nos filmes.

sexta-feira, julho 16, 2004

casamento

eu sei lá que horas são, não me voltes a perguntar as horas, é o que eu te peço. não que eu não tenha relógio, mas prefiro mesmo estar calado, bem caladinho, sem dizer nada. chega-te para lá, não gosto de ti. não gosto  que me abraces nem que te coles a mim. prefiro ficar assim um pouco distante, eu aqui e tu aí, assim, os dois separados. deixa que o ar passe entre nós. isso deixa-me sentir mais sossegado.
 
folheio este livro do fim para o princípio. sim, já lhe li as últimas frases. sim, já lhe sei as curvas. sim, já chorei para cima dele e támbém já lhe deixei cair em cima molho de caracóis. é um livro velho, gasto. digo-te mais, é um livro que não tem quase nada para dizer. eu folheio-o de trás para a frente. e mando-te calar. cala-te. mando-te ficar quieta. pára. mando em ti. mando em ti. mando em ti. e sim, podes pensar isso à vontade, mesmo que não o digas. há alguém que manda em mim, mesmo quando eu digo que não.
 
mais tarde ou mais cedo tu ficas quieta. mais tarde ou mais cedo tu ficas calada. e o tempo passa assim, sem ter bem para onde ir, mas sem qualquer razão para ficar. na rádio, oiço sempre as mesmas frases, sempre as mesmas músicas. deixámos de ver televisão, havia sempre um de nós que caía adormecido. e agora, quando saímos à rua, é sempre para não nos falarmos, para podermos olhar para algo que não nos faça lembrar um do outro. é simples. tão simples.

terça-feira, julho 13, 2004

horário de autocarro

tenho os punhos duridos, os punhos duridos de andar aos murros pelas paredes, os punhos duridos de ter agulhas espetadas, facas a passear ao lado das veias, dentadas de cão apanhadas na rua, tenho os punhos duridos, estendo-os em frente dos meus olhos e penso, tenho os punhos duridos e duas horas para fazer alguma coisa contigo, duas horas, depois o autocarro, duas horas, depois o meu marido, tenho os punhos duridos, tiro o relógio do pulso.

chegaste, como sempre, a correr, entraste pela casa dentro, desapertaste os botões do teu vestido, lançaste a mala para cima do sofá, disseste, hoje depressa, lançaste a mala e abriste mais uns botões do teu vestido, quero-te, disseste, mas o autocarro, estou louca por ti, mas o meu marido, o jantar, os putos, ele hoje está em casa, quero-te, os botões desapertados, a mala caída, anda para os meus braços, dizias, meu querido, depressa hoje, quero-te, tiras-me a camisa, tiras-me as calças, depressa hoje, o autocarro, a correr, como sempre, depressa hoje, e mordeste-me o peito.

agarrei o teu cabelo com força e caíste de joelhos aos meus pés, cabrão, gritaste, caíste de joelhos aos meus pés e enfiei-te o meu pénis na tua boca, cabrão, obriguei-te a levares com ele até quase sufocares, até ficares com os olhos suplicantes muito abertos, até ficares com a face muito vermelha e depois muito branca, rasguei-te as roupas, atirei-te pelo chão, e comecei a enfiar os meus dedos pela tua vagina, a enfiar os meus dedos, sem te esfregar, a enfiar os meus dedos, cabrão, choraste, os dedos, os punhos, os punhos, os punhos, os punhos, choraste, ficaste caída pelo chão enquanto eu, dançando na imaginação perdida, brincava com facas e agulhas, os meus pulsos, choraste, e eu, duas horas, para ti, o autocarro, o marido, tenho os pulsos duridos.

domingo, julho 11, 2004

crescem roseiras na auto-estrada

vou de carro por auto-estradas e estradas principais, estradas grandes e largas, de óculos escuros, óculos com lentes bem escuras, levo as janelas abertas, pelas janelas do carro entra vento, eu vou por auto-estradas de óculos escuros, apito para os gajos que conduzem devagar e apito para os carrões que são guiados por miúdas giras, eu acelero, acelero, eu vou.

eu procuro prédios altos, prédios reconhecíveis entre outros prédios altos e menos altos, sete, oito, nove andares, eu procuro, prédios altos em bairros conhecidos, conhecidos os vizinhos, simpáticos de elevador, eu procuro prédios onde as estradas acabam e começam, procuro casas onde há mais gente do que quartos, eu e prédios altos, altos como as flores que tapam passeios, eu procuro, procuro e descubro, prédios.

eu passeio pelo quarto, passeio e olho o espelho, o espelho onde me reflicto, sem reflectir tiro-te o soutien, sem reflectir tiro a camisa, eu passeio pelo quarto, acelero, da janela a auto-estrada, do prédio alto a roseira, eu passeio pelo quarto, e está lá ela, no quarto abraçados aos beijos, no quarto ao lado entram e saem pela porta que abre e fecha, do quarto o lado cantam em português do brasil, eu passeio pelo quarto, tudo fechado, eu passeio pelo quarto, está lá ela, e caímos na cama, e caímos um no outro, e caímos, caíndo, do prédio alto, como a roseira, na auto-estrada.

sábado, julho 10, 2004

escritório

encosto a minha cara na porta do teu escritório. olho o relógio, já passa das oito da noite. já toda a gente foi para casa. toda a gente menos tu. oiço-te a remexer em papéis sobre a secretária. ficaste a acabar um projecto que já está atrasado. oiço-te. encosto a minha cara na porta do teu escritório. sinto os teus movimentos apressados. sinto o teu cheiro. o teu telefone que toca e tu que dizes que não vais jantar hoje. que pedes desculpa. que tens trabalho. e eu ali. a excitar-me contigo.

conheço-te há quanto tempo? seis, sete anos. foi quando vim trabalhar para aqui. nessa altura eras mais jovem, eras solteira e tinhas sempre um monte de namorados atrás de ti. nessa altura, não te achava graça nenhuma. tinhas sempre tantos homens atrás de ti que eu não suportava a ideia de concorrência entre ti e mim. ainda para mais, há seis, sete anos, eu leva-me demasiado a sério. pensava em coisas como sexo perfeito, namoro à luz de velas, casamento. agora casaste, tiveste dois filhos, já não páras o trânsito. agora eu já não penso em nada. gosto de brincar.

acho que me ouviste. ou então paraste por qualquer outra razão. entretanto continuas a tratar dos teus papéis e eu volto a masturbar-me. agora é raro usares saias, é raro teres o cabelo solto, é raro sorrires a desconhecidos. agora tomas muitas vezes café comigo, no bar da empresa. falas-me dos teus filhos e do teu marido. o teu marido é um sucesso. aposto que tem amantes. ou aposto que não. aposto que é um marido perfeito. agora, mexes nos teus papéis, dentro do teu escritório, já passam das oito da noite. eu vou para casa a sorrir.

sexta-feira, julho 09, 2004

margaridas a voar paredes

vivo uma fantasia comigo mesmo, vivo dessa construção etérea de ter, constantemente, que me dividir em existências que satisfaçam os desejos ou efabulações dos outros. vivo uma fantasia comigo mesmo, cheio de ilusões e frustrações, cheia de avanços e recuos. vivo de me viver, de me constrangir permanentemente a liberdade, de me oferecer, sem condições, à loucura dos corpos e das visões ocultadas por portas entreabertas.

deixaste-me ficar sentado na tua sala quando ele entrou. disseste que não ia demorar nada. eu estava a beber um chá bem quente, apesar do calor lá fora. tu sorriste-me e saíste para o teu quarto. com ele. ele, que nem reparou que havia gente na sala. ou não quer saber ou excita-lhe mais o facto de ter uma ideia inconcreta dos habitantes da casa. se ele te perguntasse alguma coisa, dirias que eu era o teu amigo gay, um primo qualquer à procura de uma vida nova na cidade, essas coisas. ele acreditaria, acreditam todos em ti.

gritaste imenso com ele, gemeste como nunca te tinha ouvido gemer antes. sentei-me na soleira da porta da sala. encostei a cabeça na parede fria, na minha orelha conseguia sentir sa vibrações da cama no meu corpo. tu gritavas, gemias, e ele, calado, proseguia a sua função religiosa de se satisfazer com o teu espectáculo. eu baixei as calças, as cuecas e comecei a masturbar-me. já conhecia o teu sinal. havia um grito, o grito, como eu lhe chamava, que era o teu sinal de que a coisa estava a terminar. nesse momento eu tinha que acelerar o processo, vir-me e voltar a sentar-me no sofá da sala. depois de ele sair, abraçavas-me e lambias-me os dedos.

quinta-feira, julho 08, 2004

mãos sujas

faço de ti a minha coroa de espinhos, adriana, faço de ti a minha glória, o meu sangramento. sento-me no pequeno banco que tens nas traseiras, no pequeno quintal onde um dia já se plantaram alfaces e flores para pôr nas campas dos entes queridos. sento-me no pequeno banco e espero por ti. sais de casa embrulhada num lençol verde, um enorme lençol verde, saído de uma cama de casal, de cama dos teus pais, talvez. sais de casa, tens uma pequena navalha na mão. beijas-me antes de começares a desenhar-me espinhos de sangue na testa.

tenho as sobrancelhas pesadas, um sangue espesso cai-me pelas faces, pelos lábios, cai por mim, até à terra suja do teu quintal. abriste dois pequenos cortes na minha testa, debaixo da minha franja de caracóis. tento manter os olhos abertos para te ver, sorrir-te. sinto-me fraco, embriagado.ao fim de alguns minutos, sinto uma feroz vontade de te ver nua. afastas-te de mim e cortas a ponta do indicador esquerdo. depois pressionas as minhas feridas. eu urino-me pelo banco abaixo.

acordo deitado no chão. tenho a cara suja de sangue e terra, nas pernas o cheiro de urina. oiço-te rir, mas pareces-me longe. tento levantar-me, mas só sujo as mãos. remexo a terra, como que procurando um apoio para me içar desta sujidade onde me encontro. sinto-me frágil, muito frágil. ainda assim, tento não adormecer de novo, desmaiar de novo. quero ver o teu sorriso, adriana, quero ver o teu sorriso. pareces-me longe, muito longe. dói-me a cabeça. sei que não me conseguirei levantar daqui. tenho as mãos sujas. limpo-as dentro das cuecas.

quarta-feira, julho 07, 2004

après avoir écouté ton appel

entro na igreja e sento-me numa das filas da frente. está vazia, consigo ouvir o meu coração a bater. tento normalizar a respiração, acalmar-me. como que apagando o passo direito e apressado que deixei pelas ruas, de casa até aqui. sento-me, primeiro. olho à minha volta. ajoelho-me. respiro fundo. coloco as mãos bem junto da minha boca. dai-me, senhor, uma razão para te adorar.

era ainda de manhã. ouvi-a sair de casa e espreitei pelo buraco da fechadura. está de cara lavada, a sua pose séria. não sei para onde ia. olhei o relógio e eram sete e trinta da manhã. não estranhei que saísse tão cedo. estranhei sim que eu estivesse acordado, que estivesse alerta. sim, lembro-me. não conseguia dormir. não conseguia ficar quieto numa posição. sim, lembro-me. passei a noite inteira a masturbar-me.

lambeu-me o corte que me fez nas costas antes de se despedir. desapertou-me as cordas que me prendiam as mãos e as pernas. eu estava como que adormecido. a mistura de álcool, comprimidos e sangue esvaído deixara-me com tonturas. ela mordera as minhas pernas por inteiro. tinha os seus dentes marcados em todo lado, pequenas marcas de sangue pisado.tinha-me deitado sobre a mesa da cozinha. fez de mim uma refeição. uma oração.

(dedicado a Christophe Honoré)

terça-feira, julho 06, 2004

vidas. pescador.

lembrava-se ainda de um dia antigo, um dia em que saíra para o mar, triste e nu, como todos os outros dias. "fui pró mar, como ia todos os dias". lembrava-se também de várias outras coisas, do nascimento da filha, de um golo do Travassos, de uma rixa junto ao cais. "saltou um tipo com uma navalha". lembrava-se de muita coisa. sim, era o que ele dizia, horas antes de morrer.

a primeira vez que o vi, dizem, porque não me lembro, segurei-lhe o indicador com força e inaugurei um riso. ele chamou-me sacana e saiu para a cozinha, a acender um cigarro. sempre que ia a casa da filha, numa cidade longe do mar, gostava de se encostar à janela da cozinha, a fumar um cigarro. a mulher dizia que eram saudades do mar. ele, calado, via nas cores dos carros a mistura do arco-íris e das ondas. e, sei-o agora, nem um mínimo sentimento de saudade lhe tocava.

a sua vida foi sempre muito a mesma coisa. é estranho poder formular-se esta frase sobre a vida de um pescador. mas é verdade. aos nove anos começou a ir para o mar. não tardou muito a poder falar de dias antigos, no mar. tardou ainda menos para poder deixar de ter surpresas ou novidades. "no mar, acontece sempre tudo muito depressa". o primeiro susto, a primeira tempestade, a primeira morte. morreu aos setenta e oito anos, um mês depois da última vez que foi ao mar. demasiados anos depois da última novidade.

não há nada de aventuroso em ser-se pescador. "a maior emoção que me persegue é a pobreza", dizia ele. encontrei-o muitas vezes a fumar um cigarro. sentava-me ao seu lado, dava-lhe um beijo na face e ficava a vê-lo. ele parecia pouco importar-se com a minha presença. se é possível dizer-se algo sobre ele, dir-se-á, era calado. no entanto, tudo aquilo que ele me dizia continha algo muito importante para mim. não que me ensinasse. alertava-me.

no dia em que soube da sua morte, fui a casa da minha mãe, encostei-me à janela da cozinha e acendi um cigarro. quis perceber o que era estar ali. na minha cabeça repetia-se a voz dele, com as frases curtas que me sempre me despertaram. na minha cabeça os gestos dele, a voz dele. quando apaguei o cigarro, no parapeito da janela, senti-me pronto para o chorar. "é raro acontecer alguma coisa naquilo que vivemos todos os dias", dizia ele.

segunda-feira, julho 05, 2004

finalmente, futebol

levantei-me definitivamente do sofá quando vi o Zagorakis a cair de joelhos no relvado enquanto levantava os braços ao céu quente de lisboa como quem agradece aos deuses a chegada de volta a ítaca. procurei numa das prateleiras do meu quarto o meu cachecol português e saí de casa, olhos caídos, a querer saborear a hora de uma serenidade reconquistada, depois de tantos nervos suados pela testa abaixo. quando saí do elevador, nunca o silêncio foi tão profundo e doloroso, como o da minha cidade anoitecida.

tenho o cachecol embrulhado no meu pescoço. sim, apesar do calor, hoje para mim é inverno. no inverno, sinto-me bem por dentro. e a derrota faz-nos sentir muito bem connosco. afinal, é ela que nos faz estar de novo sozinhos, isolados do resto do mundo. com os olhos na calçada, voltei a pensar, calmamente. ainda que não consiga sorrir, tenho pensamentos positivos, agradáveis. a única coisa que ficou sem funcionar foi a ligação para o exterior. assim me resguardo. atrás de uma cara feia.

fico pelo bar até ao fecho. entretenho-me a servir imperiais e a limpar mesas. entretenho-me a fazer piadas com a malta que se senta do outro lado do balcão. entretenho-me à procura de um canal de televisão onde se fale de futebol. entretenho-me a beber cerveja, a comer amendoins, milho frito. entretenho-me. mas sempre que pisco os olhos, ainda vejo o Zagorakis a cair de joelhos no relvado, com os braços a apontar para o céu. volto a casa. esta é a noite em voltei a dormir sossegado.

sábado, julho 03, 2004

Não tentem isto. A Casa.

Amar é, ou ser ausente, dádiva de se estar calmo, lugar encontrado entre as pedras que ficaram dos meninos que passaram, corpos calcinados de uma ausência silenciosa e irreparável. Acordar tarde e as más horas, sair sem beber café, o cabelo mal penteado, os olhos meio fechados, alguém que resmunga dentro da casa de banho, um adeus até logo murmurado entre dentes e a casa estava vazia. Se nunca repararam nisto, eu digo-vos: ao sábado de manhã, ninguém conduz bem; sessão de soluços fora da auto-estrada. Quanto a mim, sigo na minha via. Na minha via. Tem piada. Estas coisas que dizemos sem pensar no resto do mundo. Repito: minha via minha via minha via. Afinal, tenho-a.

Procuro sempre outra forma de fazer a mesma estrada. Por defeito de imaginação, acho eu. Quantas maneiras existem para se chegar a Roma? E a Benfica? Procuro sempre outra estrada, outro caminho. Faço variantes dentro dos mesmos percursos. Como se houvesse um imprevisível medo de reencontrar alguém no mesmo caminho que nós. Volto à minha via. Para que seja só minha. Invento a fórmula para deixarem de existir caminhos habituais. Eu nunca regresso pelo mesmo caminho, eu nem sempre desço a pradaria. Acertaram. Eu também não sou o Lucky Luke.

Não digo nada à vizinha que desconheço. Tenho por hábito não falar a desconhecidos, como também tenho o mesmo hábito para os conhecidos. Puxo o elevador, olho-me no espelho enquanto troco de óculos. Não sorris quando abres a porta e me vês. Não tens uma palavra bonita. Eu dou um passo atrás, fico a ouvir. Se estivesses mais atenta, pronto estás a fugir. Afinal estás mais preocupada em não te aproximar. Não entro, não quero voltar a entrar. Desço de novo, venho ler os editais da junta. Desço de novo, escondo-me debaixo da árvore do jardim. Penso coisas que não são transmissíveis. Engulo em seco. Tu apareces e desapareces. Arrancamos no carro. Tu estás a ralhar. E eu prefiro não ouvir. Afinal, não tenho nenhuma vontade de falar.

Eu gosto de desaparecer, gosto mesmo de desaparecer. E nós os dois só nos damos bem quando não pensamos em mais nada. Quando é possível ficarmos sem pensar em nada. Isso acontece muito poucas vezes. E nunca quando estamos longe um do outro. Logo, nós quase nunca nos damos bem. Está escrito. Apesar disso, eu gosto de ti. Mas também isso não nos leva mais longe do que onde estamos. Sim, provavelmente, desgraçadamente, é aqui que vamos ficar. E se procuras uma explicação para o caso, eu digo-te. Porque sim. Porque sim. Simplesmente porque sim. Logo eu, que gosto tanto de explicar o inexplicável.

E depois volto àquilo de que fugi ao acordar. Volto ao mesmo suplício. Ao mesmo igual. Sempre igual. Volto e faço um esforço do caraças para não rebentar ali, na boca de cena, em frente de todo o público. Finjo. Fujo de novo. Fujo de novo. Fujo de novo. É o ficar calado ou falar de uma coisa completamente diferente. Mas depois não dá, não se aguenta. Como ao pedir um café receber uma imperial. Como se nos apagassem constantemente a luz quando queremos ler. Fico a pensar. Fico a pensar. Estou a olhar para o nada. Estou a olhar para o nada. Reparo, quando dou uma volta sobre mim próprio, que me observam. Saio sem dizer nada. Quando atravesso a rua, já estou a chorar.

Conto as palavras no fim do texto, como se me tentasse assegurar de uma produção mínima exigível. Conto as palavras no fim do texto, sempre sem chegar a nenhuma conclusão. Procuro discos antigos no armário. Volto ao termo. Música triste. Música triste. Re-volto ao termo. Música para chorar. Música para chorar. Soa bem, não soa. Ando a escrever mal, murmuro. Ando a escrever mal. E peço a alguém que traga um letreiro, onde se possa ler a palavra fim.

pequena contribuição para a história do medo

onde eu me sentei dava para ver todo o espaço da sala. era amplo, sem nada que impedisse a vista de conjunto. tinha lá pouca coisa. há uns tempos, a arrumação-desarrumação era constante. depois, os móveis ficaram quietos. a apanhar pó. sim, nem o pó lhes limpavam.

o meu costume era espreitar pela janela. espreitar. com aquele sossego de quem sabe que a sala está vazia. que ninguém nos virá apontar o dedo na cara, pedir explicações. costumava espreitar. e só via o pó. o pó a crescer sobre os móveis antigos.

agora, a surpresa de me terem chamado para lá voltar, para voltar a espreitar, como de costume e ver a sala arrumada, as coisas a voltarem aos seus lugares, um quadro novo, brilhante, a insultar-me. a insultar todo o meu costume de ali estar sozinho. e sentei-me, onde dava para ver o espaço todo da sala, vergado, ao peso do estar ali.

sexta-feira, julho 02, 2004

apenas literatura

bebia calmamente o chá, sentado ao balcão do café, ao mesmo tempo que via a sua imagem reflectida no espelho, a sua barba já com dias a mais, o seu cabelo crescente, fora do lugar, despenteado, as suas mãos a brincarem com a colher, a chávena, o bule, os olhos a passear, espelho, televisão, porta da rua, havia barulho, outras mesas, outras pessoas, palmadinhas nas costas, e a grécia?, e a bola?, enquanto o chá, quente, a ser bebido, calmamente, muito mais calmamente se queria bebido.

o que pensava era uma cara que sorri enquanto ele olha desesperadamente para a janela, para o cimo dos prédios vizinhos daquela sala fria de aspecto, mas quente, demasiado quente para uma manhã de verão, a janela fechada, e o que pensava, uma cara que sorri e faz perguntas, uma cara que quer saber tudo o que há para ser dito, e o que pensava era ter que voltar lá atrás, onde as coisas estão em prateleiras, agora a serem vistas como numa televisão, como se fosse fácil, como se fosse possível mudar alguma coisa.

entretanto, a milhares de quilómetros de distância, alguém faz o mesmo percurso, pensa os mesmos problemas, tem pessoas do outro lado do corpo a dizerem o mesmo, então sozinho, e esse alguém encolhe os ombros, sorri, e continua pelos mesmo corredores daqui, onde se encontra com outras pessoas em tudo semelhantes às daqui, onde se sorri e se pensa o mesmo daqui, o que, enfim, não dá mais nem menos valor ao que vivemos, não altera mesmo nada daquilo que somos, enfim, restringe-se tudo a apenas literatura.

quinta-feira, julho 01, 2004

o que eu sei

o que eu sei é que
fazia calor
e mesmo assim tu insististe em sair para a rua, para ver o que havia de ser
a minha
a tua
a nossa desgraça
um primeiro passo dado e logo aquele bafo
aquele bafo quente do verão de lisboa
vem, vem à procura
de um lugar mais fresco
dizias tu
e eu
encharcado em todo o meu ser que se desfazia
a acenar negativamente a cabeça
a guardar para dentro as palavras que nunca te direi
vem, vem à procura
e quanto mais procurávamos menos encontrávamos
porque está tudo demasiado longe
porque é tudo demasiado falso
porque se reside além da capacidade de acreditar.