Arquivo do extinto blogue Esferovite- a vida em pedaços (13-08-2003/ 4-01-2006)

terça-feira, maio 31, 2005

filme francês

t'es morte, toi? a sala de cinema estava escura e o filme era a preto e branco. cá fora estava um vento muito quente e eu pensava em cowboys, em pó do deserto. t'es morte, toi? mas de que filme é que eu tirei isto, pergunto-me ainda. a sala estava escura, o filme a preto e branco, entrei sem olhar os cartazes. pedi um bilhete para a sala um, a sala um, paguei e entrei. o filme era a preto e branco. os rapazes e as raparigas falavam francês.

et après, havia intervalo. algumas pessoas a sair, outras sentadas a olhar a tela em branco só. tudo em volta a cores. uma cortina de veludo, avermelhada, camisolas de todas as cores. alguém atrás de mim fala em primavera. eu saio para o intervalo, lá fora. acendo um cigarro como fazem os rapazes do filme. olho perdido a parede do lado de lá do hall. entre mim e a parede, rapazes e raparigas. finjo que sou do filme. e eles fingem que estão no intervalo.

segunda parte. martine s'en allait, par la gare, et didier a resté en lisant le journal, il était presque minuit quand il est retourné chez lui. acho que choro devagarinho, faço assim de mim nos filmes. mas o didier é crescido e tem um casaco. sinto o maço de cigarros no bolso quando o meu coração bate mais forte. há quem saia antes do filme acabar. pela hora imagino que terei que ir a pé para casa. nesta cidade, os autocarros morrem cedo.

casalinho

imagino o que seria, a nossa casa. a luta pelas paredes em que um ia querer colocar quadros de tipos e tipas que só fazem riscos, o outro a colocar desenhos monumentais de águias imperiais. imagino o que seria, um canto só com artefactos futebolísticos, em que o verde e o vermelho lutavam por se destacar. imagino a cozinha um pouco desleixada, sem folhos nas janelas e sempre com um pão duro sobre a mesa.

seria até estranho dizer a nossa casa. tu ias deixar de trazer alguns dos teus amigos idiotas porque eu não gosto dele, eu ia evitar ler poesia em voz alta, para não te chatear. seria esse o nosso contracto para termos um lar feliz. a minha mãe ia adorar e a tua mãe não poderia saber. a maior parte das pessoas não iria estranhar, porque sempre nos viu juntos. o monte de idiotas com quem bebemos uns copos iam ficar parvos. e depois continuar a beber.

íamos fazer passeios de sábado à tarde, de carro, a dizer as mesmas parvoíces que dizemos agora. tu ias insistir em adoptar um tipo qualquer grande e chorão, que ia aparecer cá em casa de vez em quando para dizer baboseiras e ver o ciclismo na tv cabo. eu fazia o jantar e tu aspiravas a sala. eu lavava a loiça e tu depois arrumava-la no armário. cada um com o seu quarto, para não ter que ouvir o outro a ressonar. e os vizinhos a perguntar, mas eles são um casalinho?

segunda-feira, maio 30, 2005

eu não sei como é

agora fiquei a pensar como será quando uma mulher toma banho sozinha dentro de uma banheira. porque eu, eu não sei como é. ter-se um corpo de mulher e ficar a sentir a água a escorrer-nos pelo peito, pela barriga lisa, pelo sexo. agora fico a pensar nisso, a pensar num corpo, dentro de uma banheira. um corpo de mulher, os cabelos esticados e húmidos pelas costas. fico a pensar no que pensará, no que sentirá. porque eu, eu não sei como é.

porque eu, eu não sei o que é ter um corpo leve e perfumado. eu não sei o que é ser frágil e poder dançar ballet. eu não sei o que é ter mulheres que nos invejam os movimentos. eu não sei o que é escolher vestidos. eu não sei o que é sair-se da banheira e levar uma toalha enrolada na cabeça, a pingar água pelo corredor. eu não sei o que é ser limpo e bonito. eu não sei como é.

agora fiquei a pensar como será quando uma mulher toma banho sozinha dentro de uma banheira. como será quando uma mulher deixa cair a toalha, as toalhas, em cima da cama do quarto e olha, de frente, para o espelho no roupeiro. agora fiquei a pensar nas milhentas coisas que passam pela cabeça da mulher, e de como sendo mulher, todas essas milhentas coisas se transformam em outras tantas. porque eu, eu não sei como é.

Um editorial recusado que se salvou do lixo

Não, este não é um novo começo. Não se está aqui a começar nada. Apenas nos encontramos neste sítio, um dos imensos lugares onde poderíamos estar (e estamos) ao mesmo tempo. Não, aqui não se faz nada de especial, nada de novo, nada de estimulante. São só pessoas a fazer da arte uma forma de vida. Algo tão estranho como outra coisa qualquer.

Não, isto não é uma revista. Não, isto não é um projecto. Antes fosse um projéctil, uma arma de fogo, uma revolução. Antes fosse a resolução de todas as nossas dúvidas. Não, isto não é um começo. Estamos sempre a começar coisas que nunca acabamos, a acabar coisas que nunca começamos. Isto é o que é. Algo tão estranho como outra coisa qualquer.

Não, isto não é sequer um editorial. Isto não é um texto. Isto não é um editor. Isto não é uma decisão. Isto não é, sobretudo, uma teologia, uma teoria. Não, não me perguntem, nem me respondam a nada. Têm aí as páginas, peguem nelas e escrevam. Mais nada. Isto não é nada do que se possa pensar, nada daquilo que vamos estar a imaginar daqui a pouco. Algo tão estranho como outra coisa qualquer.

férias de mim

continuo com uma enorme vontade de tirar férias de mim, de mim e de todas as coisas em que me meto. qualquer coisa como colocar uma banda gástrica em volta do cérebro. não consigo viver nada por completo. os tempos bons, gasto-os a pensar nos maus. os tempos maus, ocupo-os a pensar nas formas em que como tudo se transformará numa sábado à tarde a olhar para o mar. mando uma mensagem numa garrafa, não me digas tudo mas não te cales assim. sou sensível como uma folha de uma flor. se não me tratam bem, transformo-me em pedra.

tirar férias de mim, tirar férias de mim, tirar férias de mim. há alguns anos atrás disse isto a dois colegas meus. riram-se para não chorar. eles sabiam, eles sabem muito bem aquilo que eu queria dizer. depois acho que voltei a repetir isto a alguém que não percebeu nada do que eu disse e pensou que eu me ia matar. talvez eu seja muito bonito, muito agradável de se ver por fora, mas por dentro estou todo podre, como a moby dick do joão garcia miguel. fico-me assim a pensar em peças de teatro e em pó de carpintaria. ambas as coisas me fazem espirrar.

férias de mim. telefonar para uma agência de viagens e pedir para falar com o psicólogo de serviço. há alguém que vive dentro de filmes e alguém que vive a favor das ilusões que se vai criando, a cada dia que passa. em ambos os casos, as costas doem. as costas, os ossos, os ossos todinhos. penso em acidentes de automóvel, em ossos que se vão partindo aos pedacinhos, mais depressa que uma chuvada tropical. a pessoa vem, a pessoa vai e tudo fica normal como dantes. fica tudo normal como dantes. fica tudo normal como dantes. há certas frases que eu não acreditava possíveis.

trata-me por senhor

é impossível ter saudades do que nunca existiu. eu acho que posso dizer isso. é impossível ter boas recordações quando, simplesmente, não existem nenhumas recordações. não posso falar das ruelas da minha aldeia, nem do grupo de bons rapazes com quem me sentava a olhar os carros à beira da estrada. é isso que eu acho que posso dizer. e talvez um dia eu me case e acabe enforcado sobre a mesa da sala. como um candeeiro que não se acende.

é impossível ter vontade de voltar aos lugares onde nunca se esteve. faz-me falta um fato justo, faz-me falta uma camisa engomada. faz-me falta o maço de cigarros sobre a mesa, a máquina de escrever. faz-me falta ter ido à guerra e faz-me falta ter ido às putas. eu sento-me aqui como quem se senta a olhar para o mundo, mas não há nada para ver. posso fazer todos os projectos da vida que tudo se acaba por resumir em poucas, pouquíssimas palavras. e alguém já transformou isso num blues.

é impossível conseguir mudar o que não tem mudança. eu tomo banho todos os dias, eu faço a barba todos os dias, eu escrevo todos os dias, eu como todos os dias, eu cago todos os dias. sim, e depois? falta sempre qualquer coisa, não é? eu não posso ter certeza de nada, mas também não tenho dúvidas que tudo se há de resolver pelo pior. talvez eu continue a correr, talvez eu continue a não ter tempo, talvez eu continue a querer ter um passado, ao mesmo tempo que o construo e o abomino. e talvez acabe como um candeeiro que não se acende.

de repente, eu

custa-me, custa-me a respirar. acordar de manhã com o barulho de um telemóvel que nos puxa para a rua quando a vontade é deixar-nos ficar a morrer devagarinho, morrer devagarinho. mas como morrer quando toda esta inquietação, toda esta energia que se mete em constante contradição, como morrer quando a nossa cabeça tem mais pensamentos que cabelos, mais recordações do que ilusões, como morrer quando nada em nós está parado, excepto este corpo que mente para fora, o que não consegue impedir por dentro.

custa-me, custa-me a respirar. tenho tosse, tenho vontade de voar, tenho medo de ficar aqui para sempre com vontade de não ficar aqui para sempre, deixo-me ficar, sento-me no chão, algures em minha casa devia haver uma cadeira de baloiço e uma paisagem para observar, mas eu fecho-me, não permito que a luz me toque e o tempo fica assim a passar depressa, depressa, depressa, como se morrer fosse impossível, mas não houvesse também possibilidade de nos deixarmos ficar vivos. alguém pode vir espreitar, ora, está sempre assim, ele, mas é mentira. não percebem nada.

custa-me, custa-me a respirar. querem ligar-me à máquina mas eu recuso, recuso qualquer iniciativa para me normalizarem numa parede, me fazerem vomitar só o previsto e a horas marcadas. eu queria ser mais alto, que queria ser mais magro, eu queria ser mais moreno, eu queria ser mais qualquer coisa e, sobretudo, menos muita coisa daquilo que sou. mas não posso morrer, eu sei que não posso morrer. e então procuro um carro de fraco motor, que me leve devagarinho. eu sei, sou novo aqui, tenho que aprender. mas custa-me a respirar, sim, sim, custa-me a respirar e a aprender.

domingo, maio 29, 2005

os poemas estão escritos em francês

um poema é qualquer coisa que se começa com um gesto. espera-se que o vento nos ajude, que empurre os cabelos de uma menina para a frente dos seus olhos. tentamos, distraídos, tirar-lhe os cabelos para trás da orelha, de novo. com esse gesto se toca uma pele, uma pele que se deseja tocar. assim, devagar, subtilmente. com um gesto se começa qualquer coisa como um poema.

depois, é preciso encontrar o tamanho concreto dos versos. quase que ia dizendo o tamanho certo, mas fico incerto quanto às certezas da poesia. um aglomerado de gente, junto a uma banca de livros, e a nossa mão enconsta-se às costas do casaco da menina. talvez preferisse usar o verbo em brasileiro. se encosta. demora mais tempo, denota o gesto. e o tamanho do verso faz-se por si mesmo, sem regras.

um poema, nunca acabando, tem que deixar a palavra certa para o fim. aproveitar tudo ao mesmo tempo, o vento, a solidão de dois corpos, o carinho todo que se sente. pode ser um sorriso, sim, é certamente um sorriso, que logo se desencadeia num abraço. um abraço, um abraço, que boa forma de acabar um poema. e depois ficar a pensar em livros que falam de fuga e de amor, ver o poema a correr, pela gare, a entrar no comboio.

talvez uma crónica de domingo

queria escrever uma crónica de domingo, talvez para contar alguma coisa de sábado. passei o dia todo a pensar nisso até. pensei em trocar um almoço de família por um início de tarde sentado ao computador, a escrever. acabei por sair de casa e ir ler o "anjo pornográfico" para o sofá da mamã. queria escrever uma crónica de domingo, tinha até pensado no título "crónica de domingo", qualquer coisa assim controlada e distante, com um sentido poético dos termos em volta. e acabei por não o fazer.

queria escrever uma crónica de domingo, mas acho que hoje estou dividido. estou contente e estou triste. talvez só porque seja domingo, talvez porque não saiba bem porquê. ontem passei a noite toda a olhar para umas cartas que caíam em cima de uma mesa como estacas que vão rasgando a pele. hesito em acreditar no que não me parece verdadeiro, mas, no fundo, o que aparece ali são as coisas de que eu tenho medo. tenho medo conscientemente. e estou dividido. entre as cartas e os livros de psicologia.

queria escrever uma crónica de domingo, mas talvez os domingos não sejam bons dias para escrever. desligo a televisão e digo para mim, em voz baixa, que se lixe a constituição europeia. devia ir consultar todos os meus cadernos passados, criar uma qualquer teoria que demonstrasse que aos domingos não se escreve nada de jeito. não sei, mas nem força para isso tenho. ponho a tocar um cd de standard's americanos. apetece-me estar com alguém sem ter que estar aqui sentado, a mexer os dedos sobre teclas. a música é triste. e hoje é domingo.

oriente-se a oriente

e logo a mim que sempre me tive tão seguro de tudo o que faço, que faço sempre tudo bem. logo a mim, logo a mim, que me apresento dentro dos padrões, que me movo sem dar muito nas vistas. sim, isso, logo a mim, aqui perdido dentro destas paredes de betão. podia alguém chegar e dizer: é poeta, é mesmo assim. mas não, não, logo a mim.

ainda dentro do carro, a andar às voltas e às voltas da mesma praça, sem saber como o parar. depois subir e descer escadas, em superfícies vidradas, em vozes de altifalante que não se sabe o que nos quer dizer. hoje tudo se decidiu avariar. e logo a mim, isto me foi acontecer. andar de um lado para o outro a querer procurar qualquer coisa que não se sabe como encontrar.

e logo a mim, e logo hoje, e logo agora, andar de um lado para o outro com o talão do estacionamento preso na boca, um monte de betão a fingir paredes de todos os lados, portas que não se sabe para onde dão e portas que não dão para lado nenhum. e logo a mim, logo a mim, que sempre ando tão seguro, ficar assim perdido no parque de estacionamento. a sorte é que o meu carro é alto.

quarta-feira, maio 25, 2005

para saberes da minha verdade

existem uns poemas meus dos meus cinco, seis anos, em que um qualquer avaliador a posteriori poderia encontrar já uma grande parte daquilo que é a minha escrita: uma mistura entre coisas sérias e menos sérias, uma conjugação de um erudito (na altura imperceptível, quase) e um rapaz qualquer. algures entre essa idade e esta, vinte anos passaram, e algo me prende indiscutivelmente a essa dualidade. acho que nessa altura já me prendia a magia do papel em branco, mas normalmente atacava-o com mais afinco para fazer listas de jogadores de futebol de todas as proveniências. não guardo em outro lugar que não seja a memória cadernos e cadernos cheios de nomes, equipas, jogos inventados. nisso, eu era um menino como os outros.

comecei a escrever com alguma consistência (cof cof) quando tinha quinze anos. foi a lírica de camões. não que tenha ficado espantado com a poesia, nem que a métrica me tenha levado ao encontro do ritmo. gostava, gostava daquilo. dava vontade de ir escrever alguma coisa. e por isso os meus primórdios de escrita são adolescentemente amorosos, românticos. dado que, pela mesma altura, comprei um cd com músicas do zeca afonso, em versões mais arrocalhadas, entrou por aquilo que eu escrevia um certo cepticismo lírico. desde cedo que não me apeteceu usar palavras difíceis e ainda hoje afirmo que toda a gente percebe aquilo que eu escrevo mesmo quando ninguém pesca nada. há que compreender que há um lado da minha personalidade muito ciente das minhas qualidades e pouco interessado com as qualidades dos outros. mas isso é de outra história.

posso pensar que entre os meus quinze e os meus dezoito anos não houve grande evolução. é claro que muitas influências apareceram aí, o kundera na prosa, o rimbaud na poesia, os doors na música. também apareceram algumas namoradas, mas foram sobretudos as paixões falhadas que alimentaram a minha escrita. via uma miúda a passar pelo corredor do liceu e lá ia eu logo esscrever poemas para casa. nenhuma delas os leu, que me lembre. mas tenho a agradecer-lhes a força que me deram para escrever. provavelmente só quando fui para a faculdade é que comecei a escrever alguma coisa de jeito. acho que uma boa parte disso é culpa de um mês e tal que eu passei cá por torres, antes das aulas começarem. passava o dia no café com dois amigos meus a falar de política e poesia. isto com muito tabaco e muita cerveja. depois fui para o meu quarto de lisboa escrever e pronto.

a coisa de que me lembro a seguir, foi um ano depois. eu tinha umas páginas impressas, uns poemas meus, que andaram de um lado para o outro. aí sim, já havia alguma coisa para ler. mas também aí já tinha aparecido uma cassete de mário viegas, já tinham aparecido alguns colegas de faculdade que sabiam muito de coisas que eu queria saber muito, já tinham aparecido as noites a olhar pela janela do meu quarto a ver as putas do técnico cá em baixo. nesse ano fartei-me de crescer e escrevi alguns poemas bem bons. e depois fiz um ano de pousio. um ano em que, se bem me lembro, não saiu nada. andei pela faculdade farto daquilo, não gostava de ninguém, escrevia sem interesse. até que chegou o verão outra vez, eu tinha vinte e um anos, estava de rastos, completamente de rastos, e comecei a escrever contos. fiquei espantado até por os conseguir escrever. no final do verão, estava a publicá-los num jornal regional. os primeiros textos que saíram lançaram alguma confusão porque eu escrevia, e se calhar ainda escrevo sempre na primeira pessoa, e as pessoas que os liam pensavam que era eu a falar de mim. se calhar agora ainda pensam. se calhar, entre cá e lá, em vários casos têm razão. mas não assim tanta.

não assim tanta porque nós nunca conseguimos falar de nós, muito menos escrever sobre nós. o que nos acontece é trazer para o papel qualquer coisa que nos tem prendido a atenção nos últimos dias, nas últimas horas, nos últimos minutos, mas depois também há a técnica, também há a forma, também há outras coisas de outras pessoas que nos apetece juntar porque fica bonito, também há um certo transe que eu transporto para a escrita e me faz, alguma vezes, escrever sem estar a pensar no que está a sair. talvez seja por isso que eu raramente me lembro do que escrevi ontem, antes de ontem, ou talvez seja só eu que tenha uma fraca memória. agora sou isto que estás aqui a ver. continuo a fazer planos de leitura, quero ler toda a poesia que há em língua portuguesa, quero ler tudo, para saber tudo, para misturar tudo. agora sou isto que estás aqui a ver. continuo a pensar que tem tudo a ver com trabalho, tem tudo a ver com pensamento, tem tudo a ver com leitura, tem tudo a ver com entrega. agora sou isto que estás aqui a ver. e, mantendo-se o padrão, não me vou nunca zangar com a escrita, talvez nunca arrumar a caneta e os papéis com sensação de definitivo. porque faz parte de mim e já não se usam mutilações, nesta idade e neste estado da terapia. e depois porque há sempre um verso a pedir arranjo.

visionária

os espíritos estão convocados. agora, é fechar os olhos e começar a ver, a vê-los chegar. os espíritos estão convidados. eu arrumo a mesa e disponho as cadeiras. apago a luz, queimo o incenso. venham. agora, fechar os olhos, vê-los. os meus milhares de espíritos sentados à mesa.

o mestre está convocado, convidado a chegar-se de perto, a falar. pergunto, pergunto-lhe coisas. o mestre olha-me nos olhos e transforma-se infinitamente em personagens, um desdobramento do meu cérebro, de todo o meu ser. o mestre está convidado e vem, também ele vem.

as minhas visões, as minhas sensações, tudo aquilo que me rodeia e mais ninguém vê, tudo aquilo que todos vêem e eu vejo de maneira diferente, tudo, todos convocados, convidados. não importa tanto como se mexe com as palavras. é vir, é vir. todos. os meus milhares de caminhos sentados à mesa.

a zanga do poeta que tem razão

e no final inclino-me a dar razão ao poeta. einstein inventou demasiadas teorias para poder estar certo acerca do mundo. eu prefiro acreditar que agora estou neste ponto e que posso chegar onde quero, independentemente do funcionamento de tudo o que me rodeia. na verdade, a vida não tem explicação. são coisas que acontecem, umas a seguir às outras, só porque sim. mais nada.

sobretudo, a vida não é uma coisa bonita. deito assim abaixo uma série de estudos estéticos e opiniões cheias de substantivações que, a mim, não me aquecem nem arrefecem. no final de um ensaio, o que eu posso dizer é que é giro ou não. que sim, já tinha pensado nisso, que não, a minha vida não é assim. mas sobretudo, a vida é como ela é. e é por isso que eu me inclino a dar razão ao poeta.

o que eu posso mesmo dizer é que para perceber uma pequena parte daquilo que einstein pensou tive que estar duas horas a adormecer numa sala. para compreender o poeta bastou folhear um livro, um livro que eu posso levar para qualquer lado, abrir e fechar quando me apetecer. e por isso, em detrimento do cientista, eu volto a postular o verso de nicanor parra, esse chileno cheio de à vontade com as palavras. "a vida é o que é, não o que um filho da puta chamado einstein diz que é".

terça-feira, maio 24, 2005

encontro

telefona-me quando estiveres pronta, eu fico aqui sentado o olhar o mar da tua varanda. podes demorar o tempo que quiseres, esta casa é-me estranha, esta paisagem, este cheiro, agrada-me todo o tempo que passo sozinho a olhar, a estudar, a guardar para mim. telefona-me quando estiveres pronta, diz-me onde queres que te encontre, e depois deixa-me ir sozinho à tua procura, pode ser que eu me perca, eu gosto tanto de me encontrar.

dá-me duas ou três indicações, não tens que ser muito precisa, não tens que detalhar o que seja, basta que me dês duas ou três indicações, eu depois lá chego, eu depois lá vou, mais tarde ou mais cedo hei-de te encontrar, depois de me perder e de me encontrar também. eu gosto de ficar aqui a olhar este mar, este mar que tu tens na varanda, e enquanto olho passo as mãos pela cabeça peluda deste cão filósofo que tu deixaste a guardar-me a mim e à casa.

telefona-me quando estiveres pronta, pode ser quando tu quiseres, eu gosto desta solidão pensada, destes momentos em que se fica sem nada para fazer, porque assim consigo parar, pensar, fazer qualquer coisa, assim consigo ter ideias, contar palavras e ver a paisagem, sentir o cheiro deste mar, os pelos deste cão filósofo que se deixa adormecer. telefona-me quando estiveres pronta e depois começamos tudo de novo, exactamente como se deve sempre fazer.

segunda-feira, maio 23, 2005

voz

gostava de te dizer que estou contente por estares contente, mas tantas vezes me custa a falar quando estou contigo, assim, cara a cara. fico sem saber o que fazer, não sei bem porquê, há certas coisas que sempre foram assim, de qualquer maneira. gostava de te dizer que o que me faz sorrir é esse teu sorriso, recortado com um cheiro de pescadores. mas não sou capaz de dizer. falta-me a voz.

também me apetecia pegar-te pela mão e levar-te a passear à beira do rio, que aqui é quase mar, e depois contar-te segredos ao ouvido, daqueles segredos que nos custa a contar seja a quem for. tu ias gostar de ouvir. mas eu não sou capaz. deixo-me ficar a tarde inteira, de joelhos colados um no outro, na mesa da esplanada. todos os rapazes olham para ti, até o empregado se mete contigo, por seres tão bonita. a mim, falta-me a voz.

mais à noite podia telefonar-te. há tantas coisas bonitas que se podem dizer a alguém como tu. até andei a ler poemas, poemas de amor, para te dizer quando te telefonasse. também cheguei a pedir a um amigo meu que escrevesse qualquer coisa. mas depois ligo a televisão, fico com o telefone na mão, a olhar para o visor, para as teclas, a pensar em ti, no que poderás estar a fazer ao mesmo tempo que eu ali.eu ali. onde me falta a voz.

triste américa

é uma imagem amarelecida, quase queimada pelo sol. outras vezes é demasiado clara. desconfio que se eu fosse até lá, as coisas tivessem exactamente as cores que têm por cá. será um problema de sistemas de televisão, acho eu. é uma imagem assim, queimada, estão pessoas sentadas à porta de casas, à espera que o tempo passe. acho que o tempo lá passa muito devagar.

nunca fui lá, mas fico assim a olhar as imagens que chegam. as pessoas que esperam que o tempo passe, como se em certos casos fosse possível que o tempo trouxesse algo de bom. muitas vezes as notícias são tristes. existem homens que estão perdidos, ali. bebem demais, magoam demais, gritam demais. existem homens que ainda têm idade de crianças. crianças que fazem exactamente o mesmo que os homens.

as mães esperam sentadas, nas portas das casas. os filhos, as filhas, deixaram-nos ir, para a escola, para o centro da cidade, uns para os outros. não sabem ao certo quantos deles vão voltar. porque há quem se fira, há quem se mate. as mães esperam sentadas e eu vejo-as nas imagens amarelecidas. se eu fosse até lá, talvez me sentasse também, como se fosse possível que o tempo trouxesse algo de bom. muitas vezes, só nos resta mesmo esperar.

domingo, maio 22, 2005

surdez

não te podendo ouvir a dizer isso aqui ao meu lado, leio-te nos jornais, nas páginas dos livros, uma qualquer cena de compensação da ausência, qualquer coisa que poderão dizer no futuro, não procurava as mulheres, abastecia-se de sensualidade nas páginas dos livros, era um tipo fechado. não te podendo ouvir a dizer isso aqui ao meu lado, leio-te.

folheio os livros, à procura de qualquer coisa que me apareça assim aos olhos, assim como os teus versos, "quando eu pedir me bata", assim como os teus olhos, que eu não conheço mas imagino, que eu não mereço mas mesmo assim não esqueço, e no futuro poderão dizer qualquer coisa como, era um tipo solitário, muitas vezes encontrava-se num café a beber, sem que nada de interesse se passasse.

mas isso são as coisas que as pessoas do futuro pensam, das pessoas que não sabem vêem. estão cegas, talvez. tu mesma, "não quero dizer nada disso mas vão dizer que eu disse". mesmo a mim, ainda me sorriem e pedem coisas que eu não sei do que estão a falar. as pessoas estão fracas, frágeis nos seus pedestais demasiado baixinhos. eu estou amargo, eu sei, mas não te podendo ouvir dizer ao meu ouvido as coisas que tu poderias dizer, fico assim, a sensualizar nos livros.

*citações da poeta Ana Elisa Ribeiro.

cama

estava ali deitado na cama a pensar no que escrever. é este o tipo de coisas que um gajo como eu pensa, quando acorda ao domingo. aos domingos acorda-se devagar, com um saborzinho amargo da cerveja de ontem à noite na boca. fica-se na cama, sozinho, a tentar ouvir os barulhos da rua. quase não se ouve nada. há um carro que chega ao pátio do prédio. há um jogo qualquer no pavilhão, logo ali ao lado.

estava ali deitado na cama, e depois comecei a pensar que tinha roupa para pôr a lavar, tinha umas camisas para pendurar no roupeiro. e fiquei na dúvida, vou escrever ou vou tratar da roupa. isso deu-me mais uns minutos de cama, a balançar-me de um lado para o outro, a bexiga a pedir-me para me levantar, a cabeça a pedir para ficar, o corpo sem dizer nada, só a balançar-se, pronto.

estava ali deitado na cama, sozinho, a pensar no que é que podia fazer hoje, depois de arrumar a roupa, depois de escrever um bocado, talvez comer qualquer coisa, talvez ver a fórmula um, talvez sair de casa, tomar um café, dar uma volta de carro, comprar o jornal, olhar para o mar, ouvir rádio, essas coisas, quem sabe, mandar-te uma mensagem, ficar depois quieto à espera de uma resposta, de um sinal qualquer, ou nada. estava ali deitado na cama, a pensar no que fazer.

sábado, maio 21, 2005

copos

esta é uma mesa, uma mesa redonda. podíamos jogar as cartas, mas não sobra espaço, por causa dos copos, do cinzeiro, dos pratos com tremoços e amendoins. Um de nós gosta de misturar tremoços e amendoins na boca. outro explica que no estrangeiro não se mistura a comida. é verdade. em itália servem-nos tudo à vez. alface, massa, bife, banana. esta é uma mesa, uma mesa redonda. porque na televisão não dá nada de jeito, diz um de nós. outro explica que tendo tv cabo e comprando a revista da programação, podemos só ligar a tv quando está a dar algo de realmente interessante. só dão coisas boas na televisão.

esta é uma mesa, uma mesa de um bar. há outros bares, noutros lugares, onde acontecem concertos e teatros. mas não são bares, são associações de voluntários culturais. um de nós diz que os professores não devem cobrar dinheiro pelas palestras que fazem porque já recebem um ordenado. outro explica que podíamos fazer o mesmo com o canalizador, convidando-o para vir a nossa casa, apertar uma torneira, e no final dar-lhe uma palmada nas costas no lugar de pagar. Há qualquer coisa que falha, neste sistema. a mim chateiam-me textos onde se leia a palavra capitalismo.

esta é uma mesa, uma mesa de homens casados, todos eles abandonados pelas esposas. um pensa sossegadamente no divórcio, outro fugiu do porto para poder beber uns copos em paz. explica-me que todas as peças musicais que escreve são sobre mulheres nuas. discute-se a dificuldade de se fazer música erótica. só funciona por associação. outro explica que a mulher, que hoje foi ficar fora, deixou um pacote de manteiga rançosa em cima da mesa, mas que ainda sobra presunto. a mulher conta-lhe, aos finais de tarde, as histórias de amor que acontecem no escritório. outro ainda interessa-se. eu prefiro os morangos com açucar. estou solteiro.

guilhotina

senta-te, senta-te no chão, sim, a cabeça no buraco do pano, a primeira fila. senta-te, senta-te no chão, sim, as pernas cruzadas debaixo do pano, de ti, só uma cabeça, à tua volta, só cabeças, cabeças, cabeças, prontas para o papel na porta, sim, o papel na porta, senta-te, senta-te no chão, o papel na porta que dizia guilhotina.

podemos viver intensamente cada momento que vivemos, podemos, mas não podemos começar a história por, filhos da puta, podemos ser bonitas e inteligentes e poderosas, com as facas e os óculos na mão, mas não podemos começar a história por, filhos da puta, podemos estar apaixonadas e ser lindas, assim, em roupa interior, mas não.

eu dou-te tudo o que tu precisares, basta que me olhes assim nos olhos. eu dou-te tudo, basta que cortes essas amarras de teus pulsos. eu dou-te tudo o que precisares, desde que não me grites aos ouvidos ou me peças em casamento. e depois eu espero do lado de fora da porta, com os outros homens, e sento-me, sento-me, e tu vais-te embora, porque é de noite.

sexta-feira, maio 20, 2005

gesso

os meus pés brancos, brancos do gesso em pó espalhado pelo chão, os meus pés brancos, as minhas ideias, uma poeira fininha que me sobe pelo corpo, que me sobe pelo peito até à boca, os meus pés brancos, o gesso, o chão frio, o chão frio acabado de varrer, o pó que me sobe, e eu, eu ali, eu ali inteiro, eu ali por inteiro, inerte, esquecido, frágil e oferecido, os meus pés brancos.

os meus pés brancos, as minhas mãos, caído de joelhos sobre o chão, chão frio, as minhas mãos brancas, o meu corpo, o pó que me sobe, o peito, a boca, o nariz, o pó que me toca e envolve, eu, o chão frio, os meus pés brancos, os meus joelhos brancos, as minhas mãos brancas, eu, frágil, abstraído, sozinho, teu, eu, ali, branco, o pó no meu nariz, oferecido.

os meus pés brancos, o gesso, o pó, eu, as minhas mãos brancas, o meu peito branco, o meu cabelo branco, o chão frio, eu, ali, oferecido, oferecido, o meu corpo, frágil, eu, o gesso em pó espalhado pelo chão, eu, teu, oferecido, o chão, frio, o chão frio acabado de varrer, eu, teu, oferecido, frágil, distraído, porquê, não sei, os meus pés brancos, brancos os meus cabelos, pó que esvoaça a um toque teu.

remistura

os trabalhadores têm medo. estão todos juntos, à porta da fábrica. lá dentro, as máquinas paradas, alguns trabalhos deixados a meio, por fazer. os trabalhadores têm medo. primeiro não ouviam o que lhes dizia o sindicato, agora não compreendem. têm medo. à porta da fábrica, com cartazes feitos na sede do sindicato, distribuídos de dentro de um renault 4L que só conhece o caminho da sede para a fábrica e da fábrica para a sede do sindicato.

a polícia vai fechar as ruas em volta da fábrica. adivinham-se confrontos, tensões. algures do outro lado da cidade, grupos de pessoas preparam-se para atacar os trabalhadores. não existem razões aparentes. quando éramos um país de brandos costumes podiamos ficar todos em casa, a dormir a sesta. agora organizam-se grupos. a polícia vai fechar a rua. os trabalhadores têm medo de perder o emprego. não têm medo das pessoas.

o patrão vai embora para o estrangeiro. são os jornais que o dizem. recebeu outras propostas, está mal visto por aqui. não gostam dele. o advogado dele fala na televisão. diz que ele não quer fugir. que é boa pessoa. que passou de bestial a besta. que nada disto o afecta. que existem convites, sim. mas nada mais. que é só uma coisa de gastar tinta, esses malditos jornais. o patrão vai embora para o estrangeiro, percebe-se bem. mas quer sair em grande.

pensamento da noite

sexta-feira...

00:00

como é boa a minha cidade quando estamos a meio da semana e é meia-noite. eu venho a passear pela rua, ensaio uns passos de dança, ninguém me vê. esta rua vazia que se enche de mim e das músicas que eu assobio, tanto podia ser hoje como há cinquenta ou quinhentos anos, era igual, esta minha cidade, como é boa assim de noite, silenciosa comigo dentro.

como é boa a minha cidade e eu a dançar nela, a pensar numa velha irlandesa que me aparecesse à soleira de uma porta para me dizer que life ain't easy when we're dead, e eu a seguir e a sorrir, com uma música na cabeça e o silêncio nos ouvidos, a olhar para o céu e a ver as estrelas, as estrelas e a lua, que sempre estiveram no mesmo lugar.

como é boa a minha cidade quando eu estou bom da cabeça e ando por lugares que me fazem pensar e oiço pessoas que me contam histórias bonitas e antigas. como é bom receber mensagens a dizer olá luís e pensar que levo alguém pelo braço, pelo meio do silêncio, a dançar-me os mesmos passos e a dizer, como é boa a minha cidade quando estamos a meio da semana e é meia-noite.

quarta-feira, maio 18, 2005

frases

tinhas as frases arrumadas como uma criança que colhe azedas num campo que se estende da beira da estrada até a um moinho alto. tinhas as frases com sumo por dentro e eu sonhava com telefonemas teus a meio da noite. nesses telefonemas tu dizias: "tu o dia todo aí e eu o dia todo aqui. estamos sozinhos". tinhas as frases limadas e as tuas unhas, se passavam pelo meu braço, não arranhavam, arrastavam carícias.

tinhas as frases arrumadas como uma mulher que desliza sobre a calçada de face levantada e olhos escondidos em lentes escuras. havia uma música calma a soar nos nossos ouvidos e nos nossos corpos. tudo acontecia muito devagar. tinhas as frases arrumadas e as saias esvoaçantes abaixo do joelho. eu estava a uma esquina da cidade, com as mãos nos bolsos e um chapéu a cair pela testa. tu vinhas e sorrias e passavas.

tinhas as frases arrumadas como uma estudante que se sente desviada do seu caminho pelas ordens idiotas de alguns professores que nunca vão saber o que é ser-se uma jovem estudante com frases arrumadas. falavas alto na esplanada e choravas baixinho quando chegavas perto da almofada rosa do teu quarto. tinhas as frases arrumadas e eu sonhava com elas. sonhava assim: "vou estar a tarde toda sozinha em casa. vou". e depois tu arrumavas as tuas frases dentro de cadernos e eu virava-me para o outro lado da cama, a olhar a janela, mal acabado de acordar.

lisboa

pelas ruas está calor, ouvi dizer na televisão, pelas ruas, como se cada pedaço de rua, cada pessoa que passa, não fossem nada mais do que uma generalização abstracta pronta a ser introduzida numa frase. pelas ruas está calor, entendi, e há sportinguistas e russos pelas ruas de lisboa.

pelas ruas está calor, ouvi dizer na televisão, e muitas pessoas não se importam de fazer figuras num canal nacional só porque pintaram a cara de verde e branco, só porque não estão nada preocupados com o resultado de logo à noite, apenas querem festa, festa, festa, na praça da alegria ou na praça dos restauradores, tanto faz.

pelas ruas está calor, ouvi dizer na televisão, e as raparigas saíram todas com mini-saias, e os rapazes foram todos encostar as costas ao balcão do bar, e os senhores das roulotes ligaram as televisões, com aquelas antenas que transmitem uma imagem toda riscada sempre que passa uma mota. foi mesmo assim.

terça-feira, maio 17, 2005

previsão do tempo

agora faço as previsões do tempo pelo que imagino das tuas costas.
sei que tens os pés no chão e que te custa a comer. sei que te dói por dentro aquele cão que morreu quase nas tuas mãos. sei que não sei nada, que me custa a perceber muito do que se passa comigo e à minha volta. sei que tenho um buraco na agenda para tu preencheres. sei que vou ter que esperar até que as tuas asas cresçam.
agora faço assim as previsões do tempo.
sei que existem janelas que se abriram há muito pouco tempo. sei que há muito pó para cá e para lá da nossa existência. sei que te sentas a ler, no papel, coisas que eu escrevo. sei que eu me sento a olhar as coisas que tu roubas, aqui e ali. olho para a rapariga que salta de um rochedo, para o abismo, à procura que faça sol algures. sei que as asas crescem.
agora faço assim as previsões do tempo.
conto com os ventos favoráveis e com a ajuda das correntes do mar. levo um mapa para me orientar pela desarrumação prometida. levo as tuas mãos desenhadas nas minhas para que tu saibas onde as pousar. levo a boca cheia de palavras que eu nunca te diria. nunca te diria antes da janela se abrir. sei que vou ter que esperar até que as tuas asas cresçam. sei que elas vão crescer.

anotações sobre o real dos meus olhos

moro aqui há mais de sete meses. na direcção de minha vista, qualquer que seja a janela por onde eu olhe, há uma varanda que, até hoje, esteve sempre vazia, deserta. hoje, eu almoçava. a porta da varanda abre-se e, uma mulher de camisa azul, faz o jogo da macaca. primeira impressão: uma mãe que ensina a alguém esse antigo jogo. mas não. não está lá mais ninguém. a mulher, é mulher ou rapariga? mais uma vez, o jogo da macaca. vejo-lhe a cara. tens vinte ou mais anos. sai pela porta da varanda e desaparece. a varanda volta a ser deserta. eu vi isto ou não?

rinite alérgica

os olhos choram, mas não é tristeza. é uma corrente que não seca pela face abaixo. queres olhar mas não consegues. qualquer luz é como se fosse um sol intenso a queimar-te a retina. tentas olhar, mas a retina derretida. não se vê nada, não.

o nariz pinga e tentas explicar a toda a gente que não apanhaste frio nas costas, não estás constipado. também não andaste por lugares especialmente poeirentos. é o pó, é a chuva, é a primavera (porque é que a primavera não nos manda antes namoradas?).

enfim, tomas o comprimido salvador. seca-te os olhos, o pingo do nariz e também o pensamento. ficas lento, lento como um avião que parece parado lá no alto do céu. continuas sem conseguir fazer seja o que for. tens um capacete no lugar da cabeça. um capacete vazio.

ofício de escrita

todos nós temos grandes opiniões sobre o que se escreve ou o que se diz nos livros. todos nós lemos os melhores escritores do mundo, todos nós lemos o que é preciso ser lido, os livros das nossas vidas. todos nós damos ouvidos aos escritores que amamos e todos nós admiramos as frases feitas que eles debitam nos jornais, quinzenalmente. todos nós temos grandes opiniões sobre o assunto, não é?

todos nós somos de esquerda e todos nós somos de direita. todos nós achamos que existem certos escritores não deviam poder ser vendidos em lugares por onde passam pessoas que lêem como nós, todos nós achamos que é vergonhoso proibir-se alguns escritores de escreverem o que lhes apetecer. todos nós criticamos o comércio e todos nós achamos que sem o comércio também não chegamos lá.

todos nós faríamos a mais bela escolha de livros para uma prateleira de gente inteligente, todos nós sabemos que há certas coisas que nunca vamos querer ler. todos nós sabemos que, quando tivermos tempo, vamos poder ler aqueles livros que sempre quisemos ler, todos nós sabemos que aqueles livros que sempre quisemos ler são os livros que nunca nos apeteceu ler. todos nós escrevemos poemas, um dia, todos nós vamos fazer uma rima, todos nós vamos acabar por dizer duas frases em verso. todos nós já começamos, ou ainda vamos começar, uma frase com "como diria o poeta"...

no começo era o verbo

escrevo enquanto posso. um dia a vontade vai-me passar. vou acordar despenteado e com a barba por fazer e vou começar a procurar um outro emprego. final dos sonhos, direi eu de peito feito, ao mesmo tempo que avançarei de novo, triunfante, para uma entrevista de emprego numa qualquer transportadora. sim, fazer entregas, andar por aí o dia inteiro de carro, para um lado e para o outro. com o rádio ligado e sem nada em que pensar.

escrevo enquanto posso. enquanto ainda me vêm palavras à cabeça de cada vez que dou um passo, de cada vez que inspiro. um dia, as palavras vão-me desaparecer entre os dedos, depois de um longo bocejo. vou abrir a boca, incapaz, e ver as palavras a fugirem de dentro de mim. há coisas que se têm que aceitar tal como elas são, dir-me-ia o terapeuta. eu finjo que percebo tudo muito bem e compro três pares de calças de ganga elástica. são as melhores para conduzir.

escrevo enquanto posso. provavelmente um dia deixarei de ter tempo. ou talvez acabe por encontrar uma mulher que seja mais forte do que eu e me faça dedicar a outras coisas mais importantes. vou deixar uns livros escritos por aí, os quais olharei sem grande orgulho. na verdade, não retiro o mínimo prazer de me vangloriar de coisas do passado. são filmes que terminaram. e assim terminará o filme da escrita. num dia desses, um dia qualquer.

fala comigo

dizem que acontece todos os dias, conhecer-se pessoas por aí. eu danço como se estivesse num cabaré parisiense, num sapateado lento. dizem que acontece todos os dias, descobrir uma página na net, entornar um café em cima de um desconhecido, partilhar um elevador. agora é tudo fácil. as pessoas podem dizer que sim aos pedidos de outras ou sorrir numa sala cheia de gente sem que isso seja especialmente notado por aqueles a quem não destinamos as nossas graças. os telemóveis, os e-mails, seja o que for.

dizem que acontece todos os dias, encontrar quem nos queira bem. eu canto à chuva, no terraço que sobra das janelas da vizinhança. dizem que acontece todos os dias, alguém deixar passar à frente na fila do supermercado, um sorriso do lado de fora de uma montra, uma mão mais carinhosa do empregado do restaurante. agora já não se leva a mal. as pessoas estão sorridentes porque é primavera, porque o governo não nos chateia, porque a nossa equipa ganha os jogos de futebol.

dizem que acontece todos os dias, falar com a pessoa que há tanto queremos falar. afinal eu estou aqui, tenho o meu contacto à mostra, podem ligar. dizem que acontece todos os dias, uma carta no correio vinda de longe cheia de coisas que nos sabem bem. eu escrevo palavras e palavras que me esqueço como se ligam e elas acabam dentro de cadernos à distância, debaixo de livros de ruy belo. agora podemos fazer tudo o que nos apetecer. os pássaros voam lá em cima e eu sigo a pé, pelo meu caminho. a sorrir.

segunda-feira, maio 16, 2005

a pior parte de um coração partido

a pior parte de um coração partido ficou ali sentado, meio corpo sobre a mesa, outro meio caído para uma cadeira que parece ceder. a pior parte de um coração partido, um cigarro mal apagado num cinzeiro sujo e umas últimas palavras que, no café quase ninguém ouviu, mas que ele nunca vai esquecer. a pior parte de um coração partido, ali, a chorar.

a pior parte de um coração partido ficou, a outra partiu. depositou demasiadas esperanças naquela mentira, hão de dizer. deixou tudo e agora isto. mas não é nisso que o coração pensa. o coração não pensa sequer. e agora, a pior parte de um coração partido deixa-se escorregar pela mesa até ao chão, sem ouvir alguém que o chama lá de fora.

a pior parte de um coração partido, não se pode dizer que tenha memória ou recordações. fica para sempre a viver o mesmo momento, o único momento a que pertence. sem reagir ao copo meio de cerveja que tem à frente, sem vontade de sair de casa e sem perceber que o café há-de fechar, mais minuto menos minuto. a pior parte de um coração ficou ali partido ficou ali sentado.

encontro virtual

e no momento seguinte, eu explodia-te nos pulmões, com aquele meu sorriso de vingança que tu dizes não conhecer. seria mesmo assim. no momento seguinte.

vesti-me como se vestem os meninos. roupa de domingo. bonito. penteado. vesti-me como se vestem os meninos. perfumado. arrumado. como os meninos que têm ideias bonitas e cheirosas. vesti-me. sim. já não me vestia há muito tempo. vesti-me. como os meninos. saí de casa e andei pela beirinha do passeio. saí de casa e apanhei o autocarro. saí de casa e lá fui eu, na primeira fila do autocarro, a ver as casas. e estava tudo tão mudado.

no momento seguinte, quando disseste bom dia, eu aproximei-me de ti e sorri. sorri com o meu riso desdentado. tu não me conhecias e, por dentro, pensaste. que horror.

a minha mãe sempre me disse que existem coisas que não podemos mudar. nunca. coisas que não podemos mudar. nunca. a minha mãe. a minha mãe. desde pequenino que eu me lembro. lembro. não podemos. não podemos. eu vesti-me como se vestem os meninos. lembro-me. a minha mãe a falar sozinha na sala e o meu pai que nunca aparecia. lembro-me. vesti-me como se vestem os meninos. sim. a primeira fila do autocarro.

no momento seguinte, havia pessoas a correr em todas as direcções. tu pensaste, que horror, ou disseste. não me lembro bem já. talvez tenhas dito.pessoas.

cheguei a horas. eu chego sempre a horas. sempre a horas. eu nunca vou a lado nenhum, eu chego sempre a horas. sempre a horas. como um menino. eu chego. cheguei. a horas. tu não estavas lá. eu vesti-me como os meninos, perfumados, arrumados. sim. e depois vinhas tu, ao longe, e depois estavas tu, tão perto, sentiste o meu cheiro, perfumado, olhaste a minha roupa, arrumada, e eu sorri. que horror. que horror, pensaste. disseste.

a minha pistola dentro do casaco.

domingo, maio 15, 2005

nava-lha

brutalmente assassinado. brutalmente assassinado no seu apartamento. apartamento. brutalmente assassinado. brutal. brutalmente.

leio isto sentado num sofá pouco confortável, numa sala quente, cheia de desconhecidos. entrei sem olhar, sentei-me. agora faço as contas pelos dedos. havia um rapaz quase que deitado numa superficie de madeira. saiu quando eu entrei. há uma senhora com cerca de quarenta anos à minha frente. lê paulo coelho e, se pudesse, iria para a cama comigo. ao seu lado há uma rapariga, com vinte e tal anos, que lê sem olhar para nada.

brutalmente assassinado, no seu apartamento.

depois, outra superfície de madeira, um tipo baixinho, moreno. do lado de lá, um velho que respira como se ressonasse. não consigo perceber o que lê cada um deles. ao fundo, do lado de lá, ainda, um negro, que entra e sai à procura de dicionários. talvez escreva poemas, talvez traduza alguma coisa. ponho a hipíotese da maior parte das pessoas não terem onde ficar durante o dia e virem para aqui, ler. eu, faria, faço a mesma coisa. podia estar na praia, penso.

no seu apartamente em Bruxelas. brutalmente.

há mais uns morenos, estrangeiros. entram e saem. a senhora de quarenta anos sai. entra uma mulher de trintas, com um anel grande, a ler um livro sobre turismo em espanha. eu podia estar na praia. mas aqui também está muito calor. está mesmo muito calor. se estivesse em casa, não seria capaz de ler, penso. estamos na cidade, na cidade grande demais. e eu leio o poeta que fala do dia em que voltou a Viseu.

brutalmente.

teoria da repetição

estaciono o carro a pensar porque é que há tantos lugares no parque. não seria normal, um parque livre. tranco-o, não sou do tempo nem dos lugares onde se deixa o carro aberto. vou pelo passeio, como em várias outras histórias. passam pessoas estrangeiras, há um tipo sentado no chão, a pedir. eu diria que estas ruas estão desertas. há pessoas pobres a passar. eu diria que aqui ninguém passeia. por alguma estranha razão, toda a gente vai para algum lado.

a meio do caminho percebo o parque vazio. afinal estou longe demais. longe demais de um sítio para ir. as ruas, desertas, de pessoas e de lojas, de lugares onde se parar. longe demais, como em várias outras histórias. mesmo assim, há quem trabalhe, em algumas esquinas. também há quem espere, junto a portas fechadas. há um tipo em pé, junto a uma fila de carros estacionados a pedir. eu diria que estas ruas, estas ruas têm algumas pessoas. mas mesmo assim.

subo, na rua que conheço, que fiz e desfiz vezes sem conta. há uma rapariga que sobe à minha frente, muito mais depressa que eu. há um restaurante espanhol que eu descubro que aos domingos está fechado. pudera, não há ninguém. olho as escadinhas que tiveram uma história que durou muitos meses. estou quase a chegar, penso, como em várias outras histórias. casais de velhotes a atravessar a estrada e uma menina que quase se diria estava ali à minha espera.

sábado, maio 14, 2005

vou deixar de fazer perguntas retóricas

quando um dia a vida morre, a morte morre também. oiço isto e algo mexe cá dentro. devagar, devagarinho. quando um dia a vida morre. sim. como é que fica o mundo? como é que fica a minha sala? penso nisto e vou à procura de a surpreender, surpreender a minha própria morte. gostava que fosse possível. gostava que tanta coisa fosse possível.

às vezes consigo sair do meu corpo e ficar a olhar-me de fora. vejo a minha cara, as minhas mãos, o meu peito, assim fora de mim. às vezes consigo voar por cima de cidades inteiras. se eu morresse e saísse, assim, de mim, o que é que eu poderia ver? será que não vem alguém e apaga a luz? fico a pensar nisto. a sair do meu corpo.

a morte morre também, a morte morre também. isto dito assim deveria tirar-me as esperanças. pode-se experienciar uma coisa morta? havia um tipo, na aldeia do meu pai, que diziam que escavava campas para amar os corpos dos mortos. isso é experienciar uma coisa morta? não sei. não sei. se eu saísse mesmo do meu corpo e me deixassem voar. mas também, quem é que deixa?pois.

a catorze de maio

está a ficar escuro outra vez. não sei se é o meu sol a fugir da janela se são nuvens que se mudam para cima do meu prédio. eu continuo fechado na sala, fechado na sala e sem ouvir nada do que se passa lá fora. tenho a música no máximo, a altos berros, para não conseguir sair de mim. qualquer coisa como o meu eu interior ter medo de música alta. ponho mais alto ainda. está a ficar escuro. outra vez.

ah é só um sábado, um sábado, um sábado normal. pois. eu sei que tu dizes isso mas aqui em casa não se ouve nada. talvez não seja só da música. talvez seja porque tu falas baixinho ou porque tens pouca rede no telemóvel. talvez. está a ficar escuro outra vez, mas custa-me levantar da cadeira para acender a luz. um sábado, um sábado, um sábado. pois. como se eu fosse acreditar nisso.

se eu estivesse em casa da minha mãe, alguém me iria perguntar se eu não quereria almoçar ou comer ou uma coisa dessas. vai tomar banho rapaz. mas não, estou aqui, com o pijama suado e as paredes escuras. para te dizer a verdade, nem é mau nem é bom. é como eu estou. tento não pensar muito no assunto, para dizer a verdade. mas também não consigo pensar noutra coisa. alguém me iria perguntar se eu não quereria almoçar. só isso.

sexta-feira, maio 13, 2005

Carta a Inês de Castro

olha, nunca pensei que depois de teres andado a cheirar florzinhas por coimbra e de teres sido apunhalada pelas costas ( e pela frente), ainda te desses ao trabalho de concluir a licenciatura em medicina com especialização e tudo. tinhas os putos para criar e não podias andar propriamente a mostrar-te a meia cidade, isto quando a cidade ainda era tão pequenina e as mulheres a dias tinham que ficar a dormir lá por casa.

também nunca pensei que depois de teres sido coroada e tudo, te fosse dar para isso. bem, é claro que uma rainha cadáver não deve ser coisa bonita de se ver e, pois, tinhas que fazer alguma coisa. mas podias ter feito só a cirurgia, não precisavas de tirar o curso. ou então, e isto sou só eu agora a pensar, não tiraste o curso mas criaste uma forma de plástica para uso caseiro. não, não, deves ter mesmo tirado o curso.

mas pronto, fiquei agora a saber, agora que o livro da andrea chegou a este lado do oceano, que estás no brasil, provavelmente de boa saúde e bom aspecto (e isso deverá ser o mais importante, não?). e também fiquei a saber que escreves, e não só escreves como deves ter estudado muito para isso, já que escrever um guia de cirurgia plástica não é para qualquer um. achei bonito. sim, achei. mas não estava à espera.

p.s. ao leitor desapercebido: o livro chama-se "O guia da cirurgia plástica", é de autoria de Inês de Castro e tem a chancela da O Nome da Rosa Editora, de São Paulo, Brasil. dão-se alvíssaras a quem descobrir se a autora é a mesma que já foi Rainha de Portugal. por via das dúvidas, escrevi logo esta carta.

a treze de maio

eu sento-me à mesa de um restaurante urban-chic e fico à espera que me tragam uma àgua mineral com gelo. do lado de fora da montra passam as pessoas do costume. mas cá dentro existe uma espécie de passagem de modelos, uma disputa entre funcionárias de escritórios de advogados. a um canto, uma mesa de meninas do liceu olha-me e troca segredinhos. há coisas que me começam a acontecer que eu não sei se gosto.

sou apanhado no meio de uma conversa de sobrinhos e afilhados e brinco com a carica da coca-cola. lembro-me de muitas vezes ser apanhado no meio destas conversas, cada vez menos. há bocados em que oiço e bocados em que não. sonho com alguém que me olhe nos olhos e me fale da poesia do ruy belo. também penso no resultado do benfica-sporting de amanhã e se vou ou não beber copos hoje à noite.

pagamos as contas a meias como devem fazer os amigos que se conhecem mas só mais ou menos. andamos pela rua e espero que a conversa de amigos e noivados páre de olhar para uma montra. quase nunca espero por quem fica a olhar montras. quase nunca vou às compras. andamos pelas lojas e cafés urban-chic, apesar de não haver suficiente gente chique para encher estes lugares. por isso mesmo, um grupo de velhotas do clube de bingo fala alto enquanto bebe chá.

quinta-feira, maio 12, 2005

[ a casa das mil portas ]

A partir de hoje, participo num novo projecto internáutico. A Casa das Mil Portas é um projecto com centenas de microcontos escritos por bloggers brasileiros e portugueses. Um microconto é, ao menos na nossa definição, uma história em prosa contada em cinquenta letras ou menos. Se parece pouco é porque é realmente pouco. Fazer um microconto é um desafio literário, uma tentativa extremamente económica de contar ou sugerir uma história inteira. Um microconto exemplar, e possivelmente o mais famoso de todos, é do escritor guatemalteco Augusto Monterroso: "Quando acordou, o dinossauro ainda estava lá."

Devem ir visitar o site, cujo link está ali ao lado, mas deixo aqui os dez microcontos que escrevi para o projecto.

1) Era um dia complicado, ainda que visto em perspectiva

2) Tirou o casaco e sentou-se na mesa do canto

3) Pede sempre factura, mesmo quando não paga

4) Uma mulher muito pequena abriu a porta e ele assustou-se

5) Ninguém o conhecia ainda no novo prédio

6) Atrás da porta, os vultos, os seus amigos de sempre

7) Fosse para roubar um caderno, fosse para devolver uma caneta

8) Um carro passava, cabisbaixo

9) A menina sorria nervosa, do lado de lá do patrão

10) Desistiu quando percebeu que iria ser aceite

quantas vezes

quantas vezes são os dias nossos assim, tão nossos que nos podemos a eles abraçar e deixar-nos levar pelas ruas pequenas até que encontremos uma porta escura onde entramos e nos sentimos em casa. quantas vezes são as cidades do nosso tamanho, para que possamos entrar e sair das lojas e dos cafés, olhar as pessoas com o sentimento de pertença a casa e encontrarmos e falarmos com pessoas que gostam de nós como gostamos delas.

deixa entrar o vento pela tua janela, deixa-o entrar, ele vem do mar, e do mar também vêm as gaivotas e os peixes, as notícias de longe e o embalo da noite. deixa entrar o vento porque com ele vem tudo aquilo que te fará despir o pijama e encontrar um vestido primaveril no guarda-fato, e depois te empurrará para a porta e te fará respirar na areia. ou tudo isso ou então só uma boa companhia para o teu muso.

quantas vezes são os dias assim de vento, em que de janelas abertas nos deixamos ficar à espera que algo ou alguém nos venha sorrir ou apenas, em nos deixamos embalar, não pelo mar, mas por um qualquer australiano rouco, que nos promete compreensão nos outros dias em que nem sequer falamos baixinho connosco próprios. quantas vezes são os dias assim de vento, em que de janelas abertas, pedimos baixinho a alguém com poderes divinos, que, quem sabe, alguém de longe, encomende a uma gaivota um sorriso para nós.

quarta-feira, maio 11, 2005

marcas

cultivo em silêncio as marcas do meu corpo. fecho a luz e deixo que os dedos se passeiem pelos meus braços cheios de pelos, pelas minhas ancas demasiado largas, demasiado fortes. cultivo no escuro este corpo, esta ausência de mim por tanto tempo, os dias contados em que não me reconhecia assim. deixo que os dedos caiam sobre mim, me pressionem, me sintam. cultivo estas marcas em silêncio, sem luz.

cultivo dia após dia as marcas que tenho dentro de mim. fico sentado no sofá, com todos os aparelhos desligados e respiro cada vez mais devagar. tudo acontece tão devagar que já só me restam as marcas à consciência. os dias contados da infância, tantas vezes repetidos, os dias contados da adolescência, tantas vezes repetidos, os dias que se sucedem uns aos outros, em crise, tantas vezes repetidas.

cultivo-me assim. sem demoras e sem pressas. cultivo-me nos dias em que chove muito pela tarde, depois de um sol intenso ter furado entre as nuvens durante toda a manhã. respiro. as marcas, as de dentro, as de fora, sobressaem múltiplas, em desamparo. cultivo-me na repetição e na ausência dela. eu sou eu, mas também sou outras tantas pessoas. outros tantos eus em permanente ebulição. fecho a luz, deixo-me ficar a um canto. as mãos em mim. cultivo assim as marcas do meu corpo.

nórdico deprimido

sentado na sala de chat, falo com andrea del fuego sobre o planeamento das nossas vidas. ela está feliz. deixou a vida passada de lado e dedicou-se só à escrita. tem que cuidar da casa, mas gosta de cuidar da casa. sentado na sala de chat, enquanto completo pesquisas nas janelas ao lado, os trabalhos do costume. andrea del fuego fala comigo. ao fundo, o marido dela, com uma camera de filmar.

sentado na sala de chat, com o fabuloso livro dela entre nós, a voar, sobre o oceano, eu estico as pernas para baixo da mesa. o livro chama-se "minto enquanto posso" e eu poderei lê-lo dentro de dias. sentado na sala de chat, falamos das vidas passadas e futuras, como quem discorre sobre o jogo de futebol da noite passada. eu daqui e ela de lá, os dois tão perto que não nos vemos nem ouvimos.

sentado na sala de chat, ela a dizer-me que os brasileiros nunca planeiam o futuro, apenas se deixam viver. cá por mim, tenho o meu futuro planeado. agora, é uma questão de sobreviver até chegar a ele. penso nisto e sinto-me um nórdico, um nórdico deprimido, mas um nórdico. rimos muito os dois e pomo-nos, cada um para o seu lado, a introduzir esta ideia nas nossas obras completas. ao fundo, o barulho das filmagens.

a aprender como se faz

lembro-me de ter uns onze ou doze anos e de ter ido para o Cascais Shopping andar sobre o gelo. éramos quatro rapazes. três deles sabiam andar de patins, eu não. eu passei a hora toda com as mãos na barra, para não cair. nem aprendi a andar de patins sobre o gelo, nem caí. aliás, fui o único dos quatro que não caiu. passei uma hora às voltas, mão na barra. mas não aprendi a andar de patins.

lembro-me de ter uns catorze anos e de ter ficado apaixonado. fiquei apaixonado pela rapariga mais bonita da escola. talvez mais ninguém reparasse nela, mas fiquei apaixonado. a rapariga mais bonita da escola. ela sorria-me quando eu passava e eu sorria quando ela passava. fiquei apaixonado. demorei exactamente um ano e uns meses a conseguir dizer-lhe alguma coisa. a denunciar-lhe a minha paixão. dois dias depois de ela ter começado a namorar com outro rapaz.

hoje olho para a barra e largo-a. sim, apetece-me aprender. talvez já não seja a pista de gelo do Cascais Shopping, talvez seja um café qualquer, uma pousada, o mar de Espinho. largo a barra e deixo-me ir. sei que uns dias vou cair e noutros me levantar. mas também não vou voltar a chegar dois dias atrasado. não vou voltar a ficar calado, a falar baixinho só para mim. vou andar. e talvez isso assuste quem esteja do outro lado. mas sou só eu a aprender como se faz.

terça-feira, maio 10, 2005

dedos

tenho os dedos longos, longos como as manhãs depois do álcool que não me deixa dormir. porque eu bebo cerveja, porque eu bebo vinho, e fico acordado noites inteiras, fico acordado noites inteiras, como os artistas. tenho os dedos longos, longos como as manhãs pela cama sem saber por onde sair. se os estico, consigo tocar o tecto do quarto, consigo abrir as janelas, fechar as portas. chego a todo lado, tão longos os dedos, as manhãs.

tenho os dedos sujos, sujos como os lençóis da cama onde eu acordo ou nem sequer durmo, só deito. porque eu sujo os dedos no meu corpo, no meu querer, porque eu sujo os dedos pelas noites, retiro pedacinhos escuros do céu e das paredes, procuro restos de comida debaixo da cama. tenho os dedos sujos, sujos como os olhos que não se fecham e vêem tudo, tudo a acontecer ao mesmo tempo, sem timidez ou vergonha.

tenho os dedos inacabados, inacabados como as histórias de amor que imagino no tempo todo em que não durmo. eu não durmo porque bebo, pelas noites longas, como os artistas ou como os mendigos, com um cão a passear pela rua, na minha sombra, os dedos inacabados e segurando um canivete, com que corto os pedacinhos do céu e do tecto e das portas e de mim, sim, inacabados ou cortados, os meus dedos, que eu tenho.

asas cortadas voam melhor

ai o que me custa ser misterioso, ser capaz de dizer as coisas só pela metade, para que a outra pessoa fique ansiosa ou curiosa por algo que eu lhe ando a preparar. ai o que me custa dizer, logo vês, ai o que me custa dizer, temos tempo, eu que ando sempre a correr para todo o lado, a querer dizer todas as coisas, ai o que me custa, ai o que me custa.

porque todos me dizem, é mesmo assim, porque todos me dizem, faz as coisas com calma, porque todos me dizem, um bocadinho de mistério é sempre bom, porque todos me dizem, pois, mas o que me dizem a mim é como o que eu digo aos outros, bom de pensar, difícil de seguir. por isso, tu não sabes, tu, que ficas curiosa, não sabes, mas ai, ai o que me custa ser misterioso.

ai o que me custa ser misterioso, quando a minha vontade era telefonar, voar, gritar, as coisas boas todas que tenho para te dizer, mas não, digo, temos tempo, tenho calma, ai o que me custa, por poucas palavras numa sms, calar a boca de uma maneira que até o corpo convulsa, ai o que me custa, sabes, o que me custa, dizer as coisas assim, num prato pequeno, quando tenho o mundo todo para voar.

o espaço em volta

ainda vamos ficar sentados de costas nas costas do outro, a pensar nas horas que vão passando por cima e por baixo de nós, a fazer cócegas em todas as partes dos nossos corpos, ainda vamos ficar assim, a contar nêsperas de uma árvores e a ver as nossas camisas claras a ficar manchadas pelos frutos que caem quando os pássaros os bicam. ainda vamos, e talvez mesmo já.

ainda vamos escrever histórias sentados à mesma mesa e acabar por inserir pedaços de texto nos trabalhos do outro, porque as folhas acabam por se misturar ou porque o sono ou as ideias tontas nos vão ganhar à razão muitas vezes. ainda vamos ficar assim a rir, quando os nosso livros estiverem publicados e em prateleiras diferentes de uma livraria. também já não falta muito.

ainda vamos sair de casa a meio da tarde para dar um passeio pelas aldeias em volta, de carro, muito devagarinho, janelas abertas a sentir o vento e as moscas a entrar, e depois tu a fechares a janela e a dizeres, vou a pé, malditas moscas. ainda vamos acabar a parar numa tasca velha para beber um vinho e acalmar a respiração. ou então, podemos começar agora.

segunda-feira, maio 09, 2005

a vida devia ser como no championship manager

os dedos tremiam-lhe, verdes. estava assim desde de manhã cedo, muito cedo. que raio de dia, pensava ele enquanto dava voltas na cama para fazer com que a manhã passasse mais depressa. parece que não chove, lá fora, apesar das previsões. vai ser mais um dia de calor, mesmo. ele tenta recuperar a agenda de hoje, mentalmente. nada feito. os dedos, verdes, tremiam-lhe.

os dedos tremiam-lhe, como a cabeça que doía. levantou-se, para fazer tudo o que não tinha que fazer. ligou o computador, pôs roupa a lavar, ligou a televisão. a agenda, a agenda que se lixe. não se sentia capaz de fazer fosse que actividade fosse. nada de produtivo, pelo menos. andou às voltas pela casa, como tinha andado pela cama. os dedos, a cabeça, a tremer, a tremer de verde.

os dedos tremiam-lhe, como fazer o almoço? começou a correr, talvez fosse como os gagos, que falam bem ao cantar, talvez conseguisse fazer alguma coisa se fosse a correr. ligou a música, a altos berros. já não eram só os dedos, a cabeça. as pernas, os braços, o corpo todo. por dentro e por fora, tudo. já só pensava porque é que na vida não se pode carregar num botão e fazer tudo andar mais depressa, até que passe a tremideira. a verde.

miopia

é um prédio grande, muito grande, daqueles a que se sobe por muitas escadas até chegar ao último andar, daqueles que quando se chega ao último andar servem para ver como são feios os telhados dos outros prédios, como há antenas por todo o lado e como inventaram o mar para se pôr ao fundo, com riscos azuis e verdes e brancos, sempre em desalinho, pelo horizonte fora.

é um prédio grande, muito grande, daqueles onde nem se consegue chegar ao topo pelas escadas, há que usar o elevador, e lá em cima espreita-se pela janela, e há pessoas muito pequeninas em baixo, há carros muito pequeninos em baixo, há até casas pequeninas em baixo e, ao fundo, o mar, um mar que inventaram porque não era para ser assim, era para ser de outra cor, de outro cheiro, o mar.

é um prédio grande, muito grande, daqueles que, pensando bem, nem sequer existem, porque é impossível olhar para telhados feios e sobreviver, é impossível perceber as antenas, porque não existem pessoas pequeninas, nem carros pequeninos, nem casas pequeninas, porque, acima de tudo porque, não existe o mar, o mar que inventaram, não era para ser assim, não era para parecer assim, nada, o mar.

domingo, maio 08, 2005

ir dormir contente

Não ganhei o prémio, mas com o texto "22:45" fiquei entre os cinco primeiros dos Exercícios Urbanos deste mês, no Portal Literal ( http://portalliteral.terra.com.br ). E entre os primeiros também está a minha amiga carioca Ana Beatriz Guerra.

Boas maneiras de terminar o fim-de-semana.

sábado, maio 07, 2005

introdução a "auto-perfil"

não há como ter vinte anos e poder dizer "a minha posteridade sou eu mesma". fumar cigarros atrás de cigarros e ter um amor em cada rapaz que se conhece. não há como ter vinte anos e querer ler "a náusea". e depois fumar cigarros e cigarros e pôr um disco do zeca baleiro enquanto se pensa em fazer amor com o cantor.

não há como ter sonhos e a certeza deles serem a nossa futura desilusão. não há como marcar encontros com desconhecidos e faltar para ficar em casa a dormir. não há como fumar cigarros e cigarros enquanto se come chocolate a noite inteira. e na manhã seguinte acordar deprimida por se estar a engordar. não há como ter vinte anos e poder dizer "a minha posteridade sou eu mesma".

não há como ter vinte anos e achar-se chato a possibilidade de numa vida futura se nascer árvore. não há como viver segundo as leis da vida do orkut. não há como se poder sentir bonita mesmo quando se tem cara de actriz dos anos cinquenta. não há como fazer todas as juras de amor, mas só a pessoas que não amamos realmente. não há como não conseguir parar de responder. só para ter alguém a quem falar.

(o texto "F.Lopez entrevista F.Lopez" está em www.novatabacaria.blogger.com.br )

amor

não podes dizer ao amor para ter pressa. ele não te ouve.
não podes dizer ao amor para ser calmo. ele não te sabe.
não podes dizer ao amor para ser seguro. ele voa.
não podes dizer ao amor para ficar em casa. ele está em todos os lados.
não podes dizer ao amor para te escutar. ele é a voz e o ouvido ao mesmo tempo.
não podes dizer ao amor que não o amas. ele não se convence.

problemas de segurança

fazer só uma coisa de cada vez, só uma coisa de cada vez, só uma coisa de cada vez, e estar atento a todos todos todos os pormenores. fazer só uma coisa de cada vez, ler um livro de cada vez, ver um filme de cada vez, ouvir uma música de cada vez, só uma coisa, só uma coisa, só uma coisa, de cada vez estar atento a todos os pormenores. vês como as palavras dançam dentro de uma frase? pormenores.

conhecer só uma pessoa de cada vez, pensar só uma coisa de cada vez, ir a um lugar só de cada vez, atender um telefonema de cada vez, comer uma coisa de cada vez, sair de casa com tudo preparado, estar atento a todos todos todos os pormenores. fingir que se está calado para depois começar a dizer tudo tudo tudo ao mesmo tempo, rasgar um vestido que está ainda para ser feito. de cada vez.

esperar só uma coisa de cada vez, aguentar só uma revelação de cada vez, pedir que tudo venha devagar, de uma vez, e ficar sempre sentado, sempre parado, sempre quieto, com medo que tudo venha fora do momento que devia ter sido exacto, com medo que alguma coisa, algum pormenor, fique sem ser apercebido, os os os pormenores todos todos todos, com medo, sim, com medo, de um dia alguma coisa possa vir a ser diferente. ou uma coisa diferente de cada vez.

era depois da morte

era depois da morte, alexandra, quando nos voltassemos para trás a olhar o mar de espinho e nos subisse à cabeça aquele vento forte que derrota os homens do campo desde "os pescadores" do Raúl Brandão. eu ia andar com os olhos postos nos pés e tu ias andar com os pés prontos a voar. haveria, algures, uma laranjeira onde passar as mãos e um cão a correr por todas as histórias. haveria um bilhete para o comboio na minha mesa e um bilhete para o comboio na tua. e tu ias responder-me às minhas palavras sempre com um deixa-te de mariquices.

era depois da morte, depois de termos crescido muito e mirrado outro tanto, depois de nos termos perdido nas mãos um do outro e de nos termos reencontrado algumas dezenas de vezes. são assim as pessoas sozinhas, haveriam de dizer, e eu aparecia a chorar. tu ficavas calada, debaixo do lençol da cama, a dizer as coisas tão baixo que só tu as ouvias. era depois da morte e depois da sessão de cinema antigo aos sábados à tarde. depois de toda a infância que sempre reivindicamos para hoje, para um dia feliz.

era depois da morte, era, seguramente, depois da morte, da tua, alexandra, da minha e de outros tantos como nós, depois de livros que vão aparecer e desaparecer e de prateleiras que ganharão alguém para lhes limpar o pó mas ninguém para lhes acariciar os livros. era depois do mar e depois da terra, depois de todas as viagens. eu a conduzir, concentrado no horizonte, e tu com a cara fora da janela, a provares o vento nos teus cabelos despenteados. era depois da morte, alexandra.

balcão

peço baixinho ao "banduleta" para não me convidar para ir a um bar qualquer nas Caldas, como se fosse possível a um homem pedir, seja o que for, a outro homem baixinho, peço-lhe baixinho e ele talvez não oiça, porque a música está muito alta e há uma gritaria à nossa volta, ela a falar do bar das Caldas, a melhor noite de sexta-feira do Oeste, e eu pedir-lhe, não digas isso, é ladies night, insiste ele, e eu bebo mais uma cerveja a pensar se ele não estará a querer dizer que eu podia entrar à borla.

peço baixinho ao "banduleta" que ele me passe um cinzeiro e um isqueiro, e ele fala de jogadores de futebol antigos, que eram altos e fortes e marcavam muitos golos, que chutavam e cabeceavam, fosse de onde fosse, eu peço baixinho, como se ele ouvisse, um cinzeiro, um isqueiro, e ele fala de festas de porco no espeto e de um vinho tinto muito bom, pede mais tremoços, mais amendois, eu baixinho e ele a sorrir para as raparigas que entram, e eu a beber mais uma cerveja a pensar que a noite nem está a correr assim tão mal.

peço baixinho ao "banduleta" que me conte aquelas histórias dos cabeleireiros onde já só se vai porque as caras são conhecidas, porque se fala de alguma coisa enquanto se corta o cabelo, e ele olha para os rabos das miúdas e come tremoços, eu peço baixinho, como se fosse possível sequer ser baixinho sentado neste balcão, peço-lhe um conselho, um abraço, e ele sorri como sorriem as mães, compreende e come tremoços, e fala-me do bar das Caldas, eu peço-lhe , não, e depois bebo mais uma cerveja porque me faz falta ir para casa.

sexta-feira, maio 06, 2005

calor

agrada-me o calor seco de Évora. parece que os meus pés, as minhas pernas, reagem de uma forma diferente quando andam por estas ruas. são ruas estranhas, para mim, por isso adiciono-lhe o factor surpresa. a cidade é pequena e velha, cheia de travessas. aqui e ali aparecem estudantes, com aquele ar animado de caderno debaixo do braço. agrada-me o calor seco. e cai-me uma gota de suor pela testa abaixo.

entro na igreja da misericórdia, está fresco lá dentro. espalhados pelos bancos, várias caras que eu reconheço. estão sentadas nos bancos errados, diria eu. não tiro os óculos escuros, fico a olhar para os quadros enormes pintados há umas centenas de anos atrás. tento perceber o que chegou primeiro, se o quadro, se a talha dourada, se os azulejos pintados. a um canto, uma caveira pintada, ainda com pedaços de carne. assusto-me.

tento identificar-me com as figuras dos eremitas nas paredes. depois penso que com este calor seria impossível manter uma barba grande e um manto pela cabeça abaixo. saio da igreja e volto a sentir o calor colar-se na minha pele. momento a momento sinto uma brisa a correr, por algumas das travessas. agrada-me esta sensação de cidade estranha, as pessoas todas que eu nunca vi. todas nos lugares errados. bom.

quarta-feira, maio 04, 2005

[o título que tu quiseres]

sem dinheiro e sem ânimo, eu falo contigo da maneira como eu nunca falaria a mais ninguém se tivesse feito o que me apetecia fazer esta manhã. sem dinheiro e sem ânimo, com os sapatos sujos de ter andado a tarde toda a passear uma carrinha por estradas sem alcatrão. falo contigo. ao mesmo tempo, os nirvana cantam-me ao ouvido, pelas colunas do computador. se eu tivesse feito o que me apetecia fazer esta manhã.

sem dinheiro e sem ânimo, aconselhas-me a mudar para o brasil. e eu penso no mal que me fez esta manhã. com os sapatos sujos de ter andado a tarde toda, olho para as paredes da minha sala. parecem amarelas, com esta luz, com esta tarde. sem dinheiro e sem ânimo, com o cansaço todo de um trabalho por fazer. falo ao telefone e minto sobre e-mails que pensei em mandar mas não o fiz. um dia vão-me dizer, é assim que funcionam os negócios. sem dinheiro e sem ânimo, e sem jeito para o negócio.

sem dinheiro e sem ânimo, estou em quase tudo igual ao que estava antes de ser hoje de manhã mais aquilo que fiquei depois de ter passado a manhã de hoje. os nirvana cantam-me ao ouvido e alguém me vai dizer, mais logo, que não gosta de nirvana, não lhes acha graça. eu vou rir por fora e ficar triste por dentro, afinal é sempre assim, não é? falo contigo e tu dizes-me que tudo passa. em algum lugar da minha vida eu fiquei sincero e aberto e agora perco-te por isso. sem dinheiro e sem ânimo, tudo passa menos eu, que continuo aqui.

da verdade e da mentira em L.F.C.

da mentira, resta-me este ar perturbado de quem se passeia, perdido, pelos meandros das palavras dos outros, à procura de um sinal, de um respirar, carne viva ao passar dos dedos. da mentira, tenho todos os homens e todas as mulheres do mundo que me lêem e me amam e me adoram, e assustam os poucos homens e as poucas mulheres que me podiam tocar, a chegar sequer perto. da mentira, tenho os olhos bonitos e o sorriso caloroso.

da verdade, tenho as lágrimas na almofada. os dedos que, agora, prendo quando em ti penso. os movimentos desleixados e tristes da masturbação. o acordar sempre sem objectivos.

da mentira, tenho a alegria de estar vivo e de querer sempre mais. o peito inchado de uma camisa demasiado apertada que faz suspirar as mulheres de meia-idade que passam por mim na rua. o ar distante do jovem empresário. da mentira, tenho o sucesso todo que sempre desejei. a sorte de estar no sítio certo, na hora certa. o andar de carro por cidades que não conheço, só para fugir à minha.

da verdade, o peixe que descongela no lava-loiças. uma amiga que me espera sempre até se chatear com a minha ausência. um estudo que nunca ficará pronto. a casa cheia de pó e pensamentos inúteis.

da mentira, tenho uma certa coicidência discursiva que não é mais nada do que o não saber o que dizer. um ar de caçador que acaba sempre por ser caça. um ter a ilusão de que conheço, ou devia conhecer, todos aqueles que me lêem. o pensar que mais ninguém é como eu, que detesto conhecer aqueles que gosto de ler. o estar sempre em contacto com o mundo inteiro.

da verdade, não tenho nada que te possa mostrar em palavras. porque as palavras já as gastei com a mentira que fiz da minha vida. da verdade, tenho as minhas mãos lavadas e os meus olhos que te esperam. da verdade, só a triste impressão do nunca nunca te encontrar.

exercício sobre a solidão

estamos há demasiado tempo em casa, demasiado tempo acordados pela noite fora. estamos há demasiado tempo preocupados com todo o mal que nos vai acontecer, demasiado tempo com medo de sair do casulo que criámos para nos proteger. estamos há demasiado tempo a ver filmes, demasiado tempo com a televisão ligada. estamos há demasiado tempo perdidos nos nossos labirintos. estamos há demasiado tempo sozinhos.

já não sabemos como se faz amor com alguém, não sabemos sequer como se diz amor a alguém. já não sabemos como se sai à rua e se respira fundo a brisa que vem do mar, não sabemos sequer que o mar, existindo, pode ser olhado por dois, de mãos dadas. já não sabemos ouvir uma voz ensonada a meio da noite, não sabemos sequer o que é puxarem-nos o lençol do outro lado da cama. já não sabemos como se sai daqui. já não sabemos deixar de estar sozinhos.

estamos há demasiado tempo a pensar no tempo que falta para estarmos ainda demasiado tempo assim. já não sabemos o que se deveria fazer e continuamos sem saber sequer como se tenta. estamos há demasiado tempo presos nas teias de aranha de deixamos que crescessem em volta dos nossos punhos. já não sabemos como podia ser fácil só um movimento, só um ligeiro querer. estamos há demasiado tempo, já nem sabemos como, sozinhos.

terça-feira, maio 03, 2005

simulação

o precipício inicia-se no recôndito das tuas mãos, as tuas mãos pequenas que se fecham sobre o colo, o teu ínfimo colo, doce como um pormenor numa noite de verão. o precipício, onde eu me concentro enquanto vou repetindo baixinho um poema do nava, onde eu conto as sílabas dos versos e me desoriento. porque aqui é de noite, dizes-me tu, e não há outro lugar como a nossa casa.

desapertas os teus dedos e passeias as unhas sobre os meus lábios murmurantes, como se me quisesses impôr o silêncio. balbucio palavras já fora dos lugares, versos desfeitos pela mutilação. cerro os olhos e penso em contextos como terrorismo. alguém do meu prédio que viveu no estrangeiro conhecia um homem que acabou por se imolar em frente de uma embaixada. tu não queres saber.

deixo a cair a cabeça, não são já sequer palavras, nem mutilações. letras, sons. ainda que eu tente pensar, um som, um som que me sai da boca, é uma parte de quê? os teus dedos passeiam-se, passeiam-se, a minha cara marcada, os meus olhos fechados. sons, sons. o precipício inicia-se no recôndito das tuas mãos, já só me resta uma sombra do que pensei no princípio dos tempos.

teoria da literatura - III

com que palavra vou começar esta história? num segundo só, três ou quatro palavras aparecem e desaparecem pelas ordens dos meus dedos no teclado. como se faz? como é que eu decido por que palavra começar? será aceitável usar tantas vezes um ponto de interrogação num só parágrafo? experimento, tento, hesito. ainda é de manhã. tenho tempo.

escolho as palavras. já um dia escrevi um poema em que dizia que faço listas de palavras. que eu me lembre, nunca fiz listas de palavras. qual seria o uso de uma lista de palavras? penso num dicionário, mas um dicionário não é uma lista. não, não me consigo decidir. lembro-me de ter saído de casa e de ter ficado a falar da vida a uma desconhecida. parece que não. mas tenho tempo.

as palavras, as palavras, as palavras. alguma delas certa? alguma delas errada? eu, a ligar o computador, a olhar as mensagens, a ver, para ti, a ver, ciúme, a ver que nem sempre me escreve que eu esperava que escrevesse. eu a pensar Lisboa e um email a dizer Coimbra. todo este silêncio das mensagens eróticas. mas apenas, só, palavras. que eu nem escolho. por causa do tempo.

de ganga...

porque eu fiquei fechado em casa, agarrado à barriga, centro da minha existência, em dores, em cores, a cores, como a televisão hoje ligada, fechado em casa, porque não fui capaz, não sou capaz, porque tinhamos tudo combinado, não era preciso sequer dizer nada, porque tinhamos tudo certo, eu apareço todos os dias à mesma hora, na mesma mesa, e tu chegas quando queres, nos dias que queres, para me ver,
e não era preciso dizer nada porque nós nunca dizemos nada, nós nunca falamos, e hoje, porque eu fiquei em casa, fechado, agarrado à barriga, e como é que eu explico, não, não era o estômago, não não eram os intestinos, como é que eu explico, ali fechado, na cama, a barriga é o centro da minha existência, agarro-me a ela por ser a última coisa que eu deixei fugir, a última coisa antes de ti, minha outra pessoa que me olha,
e não seria por mais nada, mas por agora ouvir-te dizer, "Hoje a mesa era vermelha. Hoje os candeeiros eram altos. E hoje a parede estava revestida de tijolos. Hoje as pessoas eram diferentes. Hoje a música era só minha. Hoje os bancos altos tinham um revestimento verde. Hoje não havia beatas no cinzeiro, que hoje era preto. E hoje os carros que passavam eram outros. Hoje o chão estava brilhante. Hoje sentei-me noutra cadeira, que hoje era de madeira. Hoje esperei por ti, e hoje não apareceste.",
ouvir-te dizer, não seria por mais nada, mesmo por mais nada, porque não era preciso dizer, não era preciso dizer, que eu sinto sempre a tua falta, como hoje sentiste a minha, eu agarrado à minha barriga, em casa, fechado.

(citação retirada de "Ab Imo Corde" (palavrasrubras.blogspot.com), no texto "Hoje as calças eram de ganga" de Bellatrix)

e um dia pensei

e um dia pensei, já não existem lugares assim, onde a verdura refresca o corpo como um todo, onde nos sentimos só um, de tão pequenos. e um dia pensei, já não existe esta fragilidade sincera de se poder chegar e sentar na cadeira de um alprende desconhecido, a desfiar palavras pelo chão que range no mesmo ritmo que a cadeira. e um dia pensei, agora vou deixar de pensar e aprender a respirar. ah, e ser o mágico dos sonhos de todas as raparigas.

e um dia pensei, posso pegar-te com as minhas mãos, mas elas tremem, como faço para me esquecer que tenho medo? e um dia pensei, já nunca mais tu, nem nunca mais eu, nem nunca mais nada daquilo que a nossa imaginação sonha quando temos a separar-nos a saudável fronteira da distância e assim, sozinhos, nos amamos como perdidos. e um dia eu pensei, vou escrever-te uma carta de amor. e depois ser o rei de um coração com asas.

e um dia pensei, se eu sair de casa a meio da madrugada e for tocar à tua porta, tu recebes-me com um beijo? e um dia pensei, tantos carros que passam debaixo da janela de um prédio, tantas cores claras nas paredes e o fumo que as vai tingindo, o fumo da cidade, se eu passar mesmo ao teu lado, ou do outro lado da rua, será que tu me vês, com todo este fumo nos teus olhos. e um dia pensei, inevitavelmente vamos ter que morrer. e dar uma gargalhada para a sorte.

segunda-feira, maio 02, 2005

wine

abro uma garrafa de vinho e deixo-a sobre a mesa da sala a apanhar o cheiro que exala do incenso. são onze horas da noite, onze horas de uma noite por despertar. as formas do meu corpo misturam-se com a manta demasiado grande, o meu suor com o calor, o tempo das coisas pequenas com o tempo das coisas grandes. uma garrafa de vinho, a respirar. e eu a ouvir uma música muito estendida. tão estendida como eu, no meio da manta.

este vinho que escorrega pela minha língua como se fosse parte de mim e os meus olhos que se vão fechando devagarinho. foi mais um dia, foi só mais um dia. tudo passava lento, há tão pouco tempo atrás, e tudo passa muito, muito depressa mesmo, agora. este vinho que balança no copo que tenho nas mãos e os meus olhos fechados. podia não me aperceber de nada, mas sinto o movimento, esse ínfimo movimento de mim. eu que dantes só fugia e fugia, agora, continuo a fugir. com muito mais calma e sobriedade, só isso.

a garrafa faz um barulho seco quando a poiso na mesa pela última vez, vazia. o meu corpo também faz um barulho seco, por dentro, talvez seja do vinho ao encontrar-se com alguma parte de mim mais sensível por dentro. um homem nunca pode estar certo, penso, enquanto a manta e os olhos se fecham. devagarinho. um homem nunca pode estar certo, como nunca está certa uma mulher. penso. o copo faz um barulho seco quando o poiso na mesa, pela última vez. vazio.

escreve

escreve-me um poema. porque é domingo, porque é segunda-feira, porque está sol. escreve-me um poema. pega na caneta, num desses papéis que tens caídos no chão, olha para os prédios em frente pela tua janela. escreve. não pode ser assim tão difícil. porque eu gosto de ti, porque tu gostas de mim, por uma razão qualquer. um poema.

escreve-me um poema. porque queres que eu chegue tarde, porque queres que eu chegue cedo, por razão nenhuma. um poema. mesmo que a caneta não escreva, mesmo que o papel não chegue, escreve com a tua voz. sobre a minha pele, sobre os meus seios, sobre o meu sono. porque não há mais nada que possamos fazer. escreve.

escreve-me um poema. porque ainda é dia, porque já é de noite, por uma coisa qualquer. escreve. com os dedos, com os teus cabelos, com a tua boca. escreve. porque tu existes, porque não existes, a caneta, o papel, os livros todos pelo chão. poema. porque eu vou-me embora, porque eu vou chegar, por tudo e por nada. para mim.

domingo, maio 01, 2005

será que alguém me ouve?

passar as manhãs de fim-de-semana a tocar os discos que se levou uma semana inteira a escolher. estar sentado numa sala escura, como num aquário sem luz, tipo peixinho que só anda a roda, a roda, numa cadeira com rodinhas, uns auscultadores presos na cabeça, a cabeça presa a um leitor de cd's, um leitor de cd's preso a máquinas grandes e complicadas. passar as manhãs de fim-de-semana a tocar os discos que se levou uma semana inteira a escolher.

passar aqui as manhãs de fim-de-semana. um homem escuro que passa aqui as noites abre-me a porta bem cedo. eu pouso as chaves em cima da mesa e olho as máquinas, as máquinas grandes. uma parede cheia de caixas de cd's e um relógio em cima da parede. um aquário a dar horas. depois o homem escuro faz-me um sinal, do lado de fora do aquário, e acende-se uma luz vermelha por cima da porta. no ar.

passar as manhãs de fim-de-semana, aqui, arrumado entre as cassetes com publicidades a cafés e lojas de cortinados. o homem escuro sai, leva um saco onde costuma ter sempre pão e vinho. eu fico, a tocar os discos que levei a semana inteira a escolher. quando comecei nisto até fazia listas em papéis de café. agora, trago os discos, vou à parede buscar outros, ponho-os a tocar. passar as manhãs de fim-de-semana a dizer, arrumado entre as músicas, a sua rádio local. no ar.

mesmo assim

haverá uma frase em francês que explica isto muito melhor do que eu e, mesmo assim, eu estou aqui sentado a colar os dedos no teclado do computador e a olhar humidamente para o ecrã. haverá uma frase em italiano, uma frase em espanhol, uma frase em alemão. provavelmente, uma frase em português. algumas centenas de pessoas repetem, neste preciso momento, as mesmas coisas que eu tento dizer aqui, calado e sozinho. mesmo assim.

se eu tivesse 16 anos podia pensar, estou triste e escrevo, quando estou triste, estou inspirado, se eu ficar sempre triste, cada vez mais triste, vou acabar por escrever melhor, cada vez melhor. quando eu digo que estou sozinho, as pessoas dizem que os escritores são assim, que ficam sozinhos, e têm vidas solitárias e fecham-se para o mundo e falam de uma maneira que ninguém percebe e não são bons homens de família. no entanto, esta tarde fui ao futebol e chamei nomes ao árbito.

enquanto estou aqui, nesta vontade imensa de nunca mais escrever, frases e frases em diversas línguas passam pela minha cabeça, assim como na roda da sorte, eu à espera da frase que me calha, para explicar isto. por entre a roda, invenções burocráticas e declarações de amor sem destinatária convivem alegremente com chávenas de chá. algumas centenas de pessoas fingem divertir-se enquanto eu estou aqui a fingir-me vivo. havemos todos de nos encontrar. mesmo assim.

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