Arquivo do extinto blogue Esferovite- a vida em pedaços (13-08-2003/ 4-01-2006)

sábado, maio 07, 2005

era depois da morte

era depois da morte, alexandra, quando nos voltassemos para trás a olhar o mar de espinho e nos subisse à cabeça aquele vento forte que derrota os homens do campo desde "os pescadores" do Raúl Brandão. eu ia andar com os olhos postos nos pés e tu ias andar com os pés prontos a voar. haveria, algures, uma laranjeira onde passar as mãos e um cão a correr por todas as histórias. haveria um bilhete para o comboio na minha mesa e um bilhete para o comboio na tua. e tu ias responder-me às minhas palavras sempre com um deixa-te de mariquices.

era depois da morte, depois de termos crescido muito e mirrado outro tanto, depois de nos termos perdido nas mãos um do outro e de nos termos reencontrado algumas dezenas de vezes. são assim as pessoas sozinhas, haveriam de dizer, e eu aparecia a chorar. tu ficavas calada, debaixo do lençol da cama, a dizer as coisas tão baixo que só tu as ouvias. era depois da morte e depois da sessão de cinema antigo aos sábados à tarde. depois de toda a infância que sempre reivindicamos para hoje, para um dia feliz.

era depois da morte, era, seguramente, depois da morte, da tua, alexandra, da minha e de outros tantos como nós, depois de livros que vão aparecer e desaparecer e de prateleiras que ganharão alguém para lhes limpar o pó mas ninguém para lhes acariciar os livros. era depois do mar e depois da terra, depois de todas as viagens. eu a conduzir, concentrado no horizonte, e tu com a cara fora da janela, a provares o vento nos teus cabelos despenteados. era depois da morte, alexandra.

2 comentários:

Bellatrix disse...

tristemente lindo.. *

Anónimo disse...

ora...a morte nao existe
Catarina Taborda

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