Arquivo do extinto blogue Esferovite- a vida em pedaços (13-08-2003/ 4-01-2006)

domingo, fevereiro 29, 2004

rede

quando há um mundo onde se pode ficar a pensar em americano quando se liga a televisão, eu gosto de poder encontrar um canto onde esteja frio para puxar o casaco para o pescoço e olhar o escuro. sento-me no banco de trás do carro e não consigo esticar as pernas. existem barulhos estranhos dentro da minha cabeça, naqueles lugares onde já estiveste milhares de vezes mas nunca, nunca, pensaste olhar com olhos de ver. olhos de filósofo, dizia a minha tia. pois, acenava eu com a cabeça, enfadado. agora já sei.

arrumo as coisas todas que tenho no meu quarto mas tudo parece sempre tão desarrumado. gosto de ficar sentado em cadeiras de plástico e que me apareçam à frente pessoas que não vejo há muitos anos (mas só quando estou sozinho e me apetece distrair). depois, sorrio. depois, fico a ouvir. ou talvez não oiça nada, talvez eu fique só a imaginar, e só consiga ver aquilo que imagino e construo dentro de mim e nada disso tenha seja o que fôr a ver com a realidade que me apareceu inesperadamente. nestes dias, gostava de pensar em americano. mas isso eu ainda não sei como se faz.

na sala há alguém com vontade de rebolar sobre a mesa, mas há também outro alguém que não quer que nada disso aconteça. no écran vão passando imagens de canais diferentes, coisas que não estão nada relacionadas umas com as outras. na rua, alguém grita, mas nada disso parece ser muito importante. o que nos marca a sério é poder ter os sapatos sujos de lama quando se acorda de manhã. não que eu tenha especial gosto em caminhar pelo meio das poças, é só uma forma de poder crescer com alguém. em cima da mesa havia uma rodela de pão, cortada circularmente. na rádio, uma conversa de treta, estúpida. eu sei que não gosto de vocês, porque raio volto sempre a experimentar? querer ser tudo aquilo que já se sabe que se é.

sábado, fevereiro 28, 2004

para o mal do bem comum

Bob senta-se na mesma mesa em que, há mais de quarenta anos, se senta todos os dias para escrever. a mesma velha mesa que comprou numa feira de artigos em segunda mão que se realizava à porta do mercado num domingo de cada mês.naqueles domingos em que se era novo e não se pensava em mais nada do que na grande vida que se teria para sempre, ao lado da nossa mulher linda e cheirosa, entre os nossos livros que não deixariam de crescer em todos os armários e recantos lá de casa. Naquela mesa já se fez de tudo. desde livros de poesia que nunca ninguém teve vontade de publicar até romances premiados pelos melhores críticos estrangeiros. desde bebedeiras monumentais até um filho. tudo.

Bob senta-se à mesa e abre o jornal. Tem sessenta e dois anos e uma enorme vontade de deixar de escrever. no entanto, em cada página de jornal, encontra mais uma frase que lhe apetece roubar. não uma frase qualquer. mas coisas cheias de novidades, coisas cheias de pujança, coisas que ele sabe que já não consegue retirar de si mesmo. mesmo que insista em fazer-se um jovem para todas as meninas que vai conhecendo aqui e ali. mesmo que mande boquinhas foleiras à sua jovem editora quando ela lhe telefona. mesmo que faça charme de sala para as amigas dos filhos. o problema é que a vida não vem nas saias das meninas. nunca veio. coloca a rodar um cd que roubou do quarto do filho mais novo e ouve o refrão. " she's not so special so look what you have done".

como é que numa conversa de café, numa simples conversa de café, pensa Bob, se pode, às vezes, fazer renascer ou enterrar um homem, um homem inteiro com toda a sua vida? Como? Bob folheia o jornal e come amendoins de um pacote esquecido de outras noites. onde antes estiveram papéis soltos e mata-borrão, hoje brilha um computador. ali, dentro daquela caixa, uma vida inteira. uma vida inteira de mentiras. Bob pensa em deixar de escrever mas, aos sessenta e dois anos, já não há muito mais que se possa fazer. Mesmo que tenha que acontecer alguma coisa na nossa vida, só aquilo que se conhece bem é que devia acontecer. Mesmo que não se aguente mais, ainda há a mesma mesa de sempre, onde se podem ter os mesmos pensamentos de sempre, fazer as mesmas coisas de sempre. como uma paragem automática, disparando a cada sobressalto. para o mal do bem comum.

quarta-feira, fevereiro 25, 2004

alterações ao dicionário

onde se lê "palavras de uso lírico instântaneo", faça-se o favor de ler "ironias".

onde se lê "gosto de ti mais ou menos", faça-se o favor de ler "eu não estou aqui".

onde se lê "fode-me", faça-se o favor de ler "desta vez".

onde se lê "onde vais estar na próxima noite?", faça-se o favor de ler "eu não vou estar".

onde se lê "vip", faça-se o favor de ler "telefona-me esta noite".

onde se lê " cara de sacana", continue-se a ler "cara de sacana".

sonho nº 1

o anúncio diz "não vale chorar". o meu corpo permanece sentado, hirto, com os olhos fixos nas letras vermelhas pintadas na parede. oiço gritos.

um homem fardado, a sair de uma porta verde, muito grande. os meus pés não chegam ao chão. o anúncio diz. faço cara de mau.

os meus dedos são pequenos. há cor de limão espalhada pela minha roupa. chamam-me, mas eu não oiço, eu nunca oiço. confundo, confundo tudo.

é de manhã. passeio-me por entre ruas desertas. ao fundo, apitos. e ao chegar a casa, ao fechar-me no quarto, ao fechar os olhos, percebo que

era uma vez na infância

e, nos olhos fechados, hoje, outra vez, há um anúncio que diz " não vale chorar".

segunda-feira, fevereiro 23, 2004

andamento em dó menor

e quando menos se espera, é carnaval. recupera-se um monte de roupas velhas que tinham ficado esquecidas no armário do sótão, rapa-se a barba, corta-se o cabelo e sai-se à rua, onde chove, chove muito, mas nada parece mais importante do que levantar os pés ao som do sambinha mixuruca que passa em todas as casas que têm portas abertas para a rua. a máscara, que já não era boa, ficava toda encharcada, o que nos resta do cabelo é mais próximo de um pinto do que outra coisa qualquer, sempre que se passa por uma rua mais ventosa, sentem-se facas a entrar pelo nosso corpo dentro. e quando menos se espera, é carnaval.

ainda assim, há um homem que me observa como se conseguisse estar distante de toda a loucura que escorre dos copos de plástico. copos de plástico a valer um euro e trinta. moedas, moedinhas a saírem da carteira, a noite inteira. sorrisos desfocados pelos olhos mal pintados, olheiras com contorno de bebedeiras. dizem que usava chapéu e que construía sambinhas de dor de cotovelo, histórias de homens e mulheres que acabavam sempre mal. eu, sentado na sala, a olhar a televisão. ou fechado num carro a enumerar nomes de fadistas que são mesmo fadistas (nada de gajas que se chamam só mariza, nada de gajas que assinam cátia com K).ainda assim, há um homem que me observa.

do nariz escorre o frio que invadiu a noite passada. gasto lenços de papel em catadupa e sinto um arrepio estranho pela altura da coluna. telefonas-me de manhã para me dizeres que me amas. eu estou embrulhado nos cobertores e digo que farei amor contigo, farei amor contigo. telefonas-me de manhã e dizes que me queres. eu fecho os olhos e viajo. auto-estradas onde chove a noite inteira, com um rádio ligado na emissora nacional, passando música ligeira em diferentes línguas europeias, como se os noctívagos gostassem de música para dormir. perto do final da história, lembro-me de um homem de barbas, olhos muito abertos, como quem está triste. espero por uma janela onde possa saltar. do nariz escorre o frio que invadiu a noite passada.

sexta-feira, fevereiro 20, 2004

era isto, mariana

abro a luz. tenho a porta engolida pela existência da casa. oiço barulhos cheios de perspectivas enganadas, moedas caídas sobre os seios de uma voz sem corpo e sem cabeça que se ergue pelo ar irrespirável. abro a luz, meia noite, meio da noite perdida. não descanso com os números a gastarem-se no quadro do despertador. mudo milhares de vezes de posição, o corpo inquieto, rebolado. se me pouso sobre o lado direito é a luz passando sob a frincha da porta. se me repouso sobre o lado esquerdo é a dor nos ombros, no coração, na desdita da noite em que não páro de pensar. e, se enfim durmo, é pesadelo. abro a luz, nas costas da cama pendurada. abro-a como se fosse uma janela com vista para a desgraça do meu corpo semi-despido deitado em lençóis sujos. não há brisa. apenas o cheiro putrefacto do meu processo de alcoolização. rastejo de uma ponta à outra da cama, depois regresso ao início. não durmo. abro a luz.

terça-feira, fevereiro 17, 2004

carnaval de torres 04

homens a sair à rua, a entrar na loja do chinês e a passearem de olhos bem abertos por entre cabides de roupa feminina de aspecto degradante. homens a dizerem de outros, é especialista em modas femininas. homens a entrar em retrosarias e a pedir fitinhas douradas, prateadas, coisas que ninguém acreditaria que fariam. homens a passear e a olhar para as coisas, como nunca olham para as coisas. já tens a mala? já tens o colar? isto não acontece em mais nenhuma altura do ano. e provavelmente, também não acontece em mais nenhuma cidade.

sim, sim, sim, só poderias ter nascido aqui, para estares com essa conversa, com essas invenções de rimas pobres e coisinhas idiotas, para teres essas ideias de loucas de vestir pouquíssima roupa com o frio que está, e depois, quereres cortar todo o teu cabelo e andar a passear pela rua a tua novidade, voltares a ser referido por um corte de cabelo, uns anos depois, mais uns anos adiante, só este gajo é que poderia fazer isto, é gajo para essa maluquice, é fixe, dizem, mas ninguém mete a máquina de barbear no crânio como tu.

são onze horas e ninguém vos conhece. estão fechados numa sala de uma casa de família, com saias e a cara pintada. há uma lata de cerveja aberta sobre a mesa e dois cigarros mal apagados no cinzeiro. vocês são pessoas respeitáveis pelo ano inteiro. hoje também, aqui, agora. porque se fosse depois, noutro lugar, bem, isso vocês também não aceitam, não é? porque tudo isto só faz sentido quando faz sentido. cinco dias por ano. cinco míseros dias por ano. e um deles, é para morrer.

domingo, fevereiro 15, 2004

tu

sorrio com as tuas censuras, as tuas dúvidas, a tua maneira de ser muito pouco atrevida, quando o que desejas é fazer tudo instintivamente, atirares-te nos braços de outros rapazes mesmo quando sais com os teus namorados, telefonar a meio da noite para pessoas que desconheces, atirar piropos a homens das obras. queres ser tu, tu, tu, intensamente, queres ser muito mais do que aquilo que consegues respirar e, num momento de lucidez, censuras as tuas palavras, escondes os teus pensamentos, talvez seja a tua maneira de não dizeres a ninguém o que gostavas mesmo de fazer.

depois, pedes à tua mãe que te alugue carros, que te compre brincos, que te mande estudar para frança, que te faça a cama, que te compre malas, que te arranje emprego, que te empreste dinheiro, que se cale, que te deixe sossegada, que passe fins-de-semana fora para poderes levar gajos para casa, que diga ao teu pai que te portas bem, que diga aos teus avós que és uma linda menina, pedes, pedes, pedes, pedes.

pode parecer desnecessário, aos olhos de quem não te conhece, mas continuas a apresentar-te sempre que encontrar alguém, mesmo que seja uma pessoa próxima de há anos... insistes em fazer tudo como se fosse a primeira vez. por isso, fazes agora essa cara de quem nunca pensou em nada, e dizes-me que me queres dentro de ti. eu sorrio e penso que finalmente ganhaste coragem para dizer essas coisas, mas na verdade, para ti, é como se eu nunca tivesse existido, e de repente me quisesses foder. para ti não há antes, e temo bem que também não exista depois. mas também, podemos sempre ter amor à primeira vista no encontro seguinte.

sábado, fevereiro 14, 2004

inventário para o dia dos namorados

não sair à rua em dias em que podemos encontrar alguém
pensar sempre antes de dizer, sim, meu querido
andar com os pés dentro de sapatos se a casa tiver telhados de vidro
encontrar sempre sempre uma saída
deixar que as crianças nos vendam os seus enganos
cultivar um aspecto muito fora do normal
ter os pés limpos quando se pisar uma cama
correr, nu, na rua da nossa madrinha
fazer listas de convidados para um casamento que nunca se realizará
ser céptico em relação a tudo o que se ouve na rádio
dizer mal do poeta nas costas dele
dizer mal do poeta na cara dele
não dizer mal do poeta se ele gostar de ser injuriado
ir ao café e não pedir nada à empregada zarolha
visitar uma escola e apertar o nariz de um professor
usar uma metralhadora como acessório de moda
usar acessórios de moda como metralhadoras
pisar chão que já deu uvas
apanhar todos os caroços que se conseguir encontrar
fechar os olhos e ouvir a palavra silêncio
comer peixe cozido sem fazer caretas
não tomar banho e abraçar a namorada
dançar dançar dançar dançar dançar

palavra

isto sou eu a dançar com uma nuvem de fumo, nuvem crescida dos cigarros dos homens que param na mesma que eu, quando o sol está ausente e o ar é frio. lá fora, do outro lado do vidro, não há nada que nos possa interessar. do lado de cá, onde o fumo impera, não há nada que nos possa interessar. é simples. pode parecer demasiado depressivo. mas é exactamente assim que as coisas funcionam.

na televisão, rectangulos verdes e camisolas coloridas. pessoas tristes que chegam e partem sem dizer nada de novo. gente que é sempre igual, altura ou fase da vida ou ano. eu já não penso. já não respondo. deixo seguir. digo boa noite e digo adeus. não discuto. não preciso. não vale mesmo nada a pena. deixo estar. e sorrio, sorrio sempre. não custa nada acionar essas dezenas de músculos.

agora já tarde, já se fechou a janela sobre o final da semana que preferes esquecer. já deixaste cair as pálpebras, já não ouves nada daquilo que te possa chegar pelo telemóvel. já não sonhas sequer. deixas que o tempo se consuma sem direcção. eu estou algures em lado nenhum. o inominável tomou conta de mim. agora as portas estão ausentes, de nem fechadas poderem estar. olho uma última vez o relógio e digo adeus. um adeus como já não se sabia dizer há muito tempo.

terça-feira, fevereiro 10, 2004

quando precisas de alguém

sol, sol, sol. mas eu vejo nuvens. e acredito no frio do inverno distraído. mas sol, sol na parede onde ainda resiste a minha letra a lápis. sol nos livros que eu mesmo arrumei. sol, num molho de chaves perdido. sol, sol, sol.

estou no alto. no chão, verde. verde que se constrói mais lento do que os dias. onde deviam estar homens não há nada. máquinas, sim, a revelarem o peso da quietude. ao fundo, uma linha azul onde passam carrinhos de brincar.

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os gajos do clix são uns chatos, não páram de me telefonar. diz o meu irmão. o meu irmão. bebam a coca-cola toda, preciso da garrafa. diz a minha irmã. a minha irmã. humm... e um silêncio maior do que o caminho para casa.

as minhas mãos, lagartos, presas às paredes. indicam a espessura das sombras, e os sulcos do sol. a lápis. ao lado, o teu retrato. quem és tu?

sol, sol, sol. e agora? o estore corrido, até abaixo, com todas as frinchas cobertas, perfeição de noite fria que fica lá fora. ilusão. que música, que corpo, que toque?

chamas?

chamo. às vezes...

segunda-feira, fevereiro 09, 2004

proibido fumar

o médico, diga trinta e três, trinta e três, e eu a olhar fixamente para o esqueleto guardado a um canto do consultório, sem conseguir respirar, quanto mais dizer alguma coisa, um esqueleto branco e luzídio, com os ossinhos todos no lugar certo, inquebráveis como os brinquedos dos cães, e sem pó como a sala sempre tão arrumadinha da Marlene, o médico, trinta e três, e eu a pensar outra vez na Marlene, já sem ouvir nada, sem conseguir dizer nada, sem pensar, completamente, sem pensar, a Marlene, há quanto tempo eu não fodo a Marlene, há quanto tempo não a oiço dizer, lambe-me cabrito, há quanto tempo não a vejo a passear a mini-saia pelo supermercado, há quanto, Marlene, não fazemos amor no sofá da tua sala, o médico, trinta e três, caraças, trinta e três, e eu a explodir num ataque de tosse convulsiva.

o senhor têm que ter cuidado consigo, muito cuidadinho, já viu em que estado está este exame aos pulmões, o senhor não tem vergonha, e eu não, não tenho vergonha, sim, confesso, três maços por dia, três macinhos, gigante, há mais de vinte de anos que fumo gigante, e não é agora que os vou largar, doutor, eu preciso tanto deles, fazem-me tanta companhia, logo quando acordo, sozinho na cama, um cigarrinho, para acalmar a tosse e começar bem o dia, e depois aquele stress todo de andar sempre de um lado para o outro, a carregar caixas e caixas de bebidas, aquilo é carregar, voltar ao camião, acender cigarro, mandá-lo fora quando páro, carregar outra vez, o doutor acha que isto é vida, tem que ser o cigarrinho, doutor, tem que ser, pelo dia todo, só três macinhos, só três, que eu agora até deixei de fumar à noite.

desde que a Manuela e o puto saíram lá de casa que me andava a fazer espécie não haver nada para fazer depois de jantar, depois ter ido ao café espreitar a bola, ouvir a conversa da malta, um gajo volta para casa e não há nada, só o cigarrinho e depois?, olhe, o puto deixou lá o computador em casa, sabe, o computador, e eu pûs-me a experimentar aquilo, está a ver, internet, quem diria que eu me punha na interner, está a ver, mas eu até sou todo pintas e invento umas conversas giras com umas gajas, sabe, é verdade, doutor, umas conversas para aqui, outras para ali, digo que sou inventor, artista, escritor, doutor, está a ver, pûs-me a dizer a uma gaja que era escritor e assim, e agora não é que ela quer que eu escreva um romance, pá, um romance, não deve ser brincadeira, mas eu sou assim todo pintas, e pûs-me a escrever, doutor, é verdade, invento umas coisas e assim, e lá vai saíndo, doutor, por isso peço desculpa pelo trinta e três, peço desculpa pela tosse, mas os três macinhos não me os tira, que eu só deixo de fumar com o romance.

quinta-feira, fevereiro 05, 2004

recados sem destinatário

estou ausente, não vês?, então porque continuas a insistir comigo, a enviar-me palavras, carinhas, bonequinhos, sugestões, estou ausente, au-sen-te, simples, não estou cá para ti, se ao menos soubesses ler, se conseguisses perceber os significados dos sinais, mas não, não percebes, continuas, não vês, e eu, digo-te, xau.

hoje arrumo a um canto todas as filosofias, teorias, megalomanias, histerias, gritarias. calo-me e rio-me. tu falas do sô pinto, alorrrs, alorrrs, carregas nos rrr como se fosses de setúbal, és de setúbal, é importante que existas mas mais importante é que ela tenha cortado o cabelo, e que tenha comprado umas calças, e que tenha passado por mim na biblioteca, estás com um andar mais agressivo, disse-lhe, e o teu rabo é bem bom.

desligo a música e falo-te ao ouvido. quero-te que te venhas sem te tocar, quero fazer-te explodir aos pedacinhos, como um fusível em curto-circuito. digo-te coisas porcas, que chego até a duvidar que gostes mas que, no momento, te servem para te incendiar. falo-te ao ouvido e tu gemes, gemes cada vez mais alto. quando estás em extase, acendo a luz e saio da cama. estou cheio de sede.

quarta-feira, fevereiro 04, 2004

cheiro a tinta

puxo uma cadeira para o centro da sala que ainda está vazia. mudei-me hoje para esta nova casa e estranho-a. estranho toda esta novidade que me invade a pele. puxo uma cadeira para o centro da sala e meço com o olhar, com o cheiro, com a pele, com todos os sentidos, meço esta coisa de ocupar algo que é meu pela primeira vez. curioso, como recorro a estas palavras de posse. puxo uma cadeira para o centro da sala e saboreio o silêncio. este silêncio que só o vazio nos pode dar. o vazio. penso nesta palavra e deixo cair uma lágrima.

tento espreitar para fora da janela. existem pessoas a passar pela rua, lá em baixo. penso em pessoas que encontro na rua e em como elas me ferem com as suas palavras. alguém, numa conversa de circunstância, chamou-lhes terroristas. terroristas: aqueles que com boas intenções nos dizem coisas que são capazes de deitar abaixo o nosso mundo, o nosso trabalho, as nossas crenças. aqueles que nos lançam a dúvida recorrendo a exemplos de outros. conselho: não dar ouvidos, ignorar, desprezar. conclusão: impossível. olho para as pessoas a passar lá em baixo e fico feliz por estarem lá em baixo. aqui, silêncio, vazio, sorriso.

levanto-me e sento-me repetidas vezes. levanto-me e sento-me repetidas vezes. saio e entro da sala. saio, percorro o corredor, olhos os livros dentro dos caixotes, as roupas espalhadas pelo chão do quarto, a cozinha em alvoroço. entro, vejo o vazio, as janelas, o cheiro da tinta ainda tão presente. saio e entro da sala. toca o telefone, olho o visor, não atendo. não atendes, dizia-me ela com um sorriso malandro, há uns dias, sentados há mesa de um café. estás diferente. levanto-me e sento-me repetidas vezes. a casa nova. a casa nova. o silêncio. sorriso.

terça-feira, fevereiro 03, 2004

como se diz metamorfose em grego?

fico a olhar para elas as duas com cara de espanto, afinal não é todos os dias que se assistem a coisas destas (penso eu interiormente, tenho medo de lhes contar). conheci-as há umas semanas, duas, três, não sei dizer com precisão. só sei que foi no início das férias, num dos primeiros dias em que aqui cheguei. a primeira que eu conheci foi a A. estava na sala dos pequenos almoços, encostado à mesa dos queijos e fiambres, a tentar descobrir um instrumento qualquer que evitasse o apanhar pedaços de comida à unha. A. apareceu ao meu lado, tocou-me no ombro como se toca em alguém que queremos que perceba que estamos interessados em mais do que um obrigado. eu agradeci-lhe e sentei-me na mesa dela.

a outra conheci-a na piscina e chama-se C. é mais nova, mais bonita, mais interessante. também é mais calada, mais reservada, mais fechada. no entanto passei uma tarde inteira a falar com ela debaixo de uma sombra, com um chá gelado divido pelos dois. só posso dizer que a adorei. se não fosse por outra razão, seria por ser tão genuinamente paranóica quanto eu. nada daquelas encenações lésbico-sensuais de A. ali estava a real thing. e quis logo passar mais tempo com ela. claro.

o pior foi quando elas duas se juntaram. e aí, só me restou ficar a olhá-las com cara de parvo. é que o processo de amizade delas não poderia ser mais estranho. o que poderiam ser duas gajas interessantes, quando misturadas (como naquelas bebidas que juntam as coisas mais diferentes que conseguimos imaginar), tornam-se em dois objectos de plástico, dificilmente identificáveis com o pacote. A. a querer parecer-se com C. e, claramente, a não conseguir por ninguém ir acreditar nela. C. a querer parecer-se com A., só para parecer mais forte, mas a ficar com o rabo de fora como o gato escondido. mandei vir uma água mineral, ambas me chamaram maricas, e deixei-me levar pelos meus pensamentos inúteis...

segunda-feira, fevereiro 02, 2004

escrever só com um dedo

pode parece difícil mas não é. apenas uma questão de manter o equilíbrio e não permitir que a respiração se altere sem que estejamos preparados. normalmente, tudo corre bem. é quase como se fizessemos isto como todas as outras pessoas fazem. só que demoramos mais tempo.

a olhar para o resultado ninguém repara. é que fica mesmo igual aos outros. mas no entanto é mais difícil. custa-nos mais manter a linha do pensamento. respiramos e olhamos concentrados a linha que pisamos. é mesmo assim que as coisas são. não podiam ser de outra maneira.

o verdadeiro problema disto. é que podemos sempre c
a

i
r...

domingo, fevereiro 01, 2004

inadaptado

as coisas das quais eu falo quase nunca têm importância. são coisas inócuas, onde ninguém aprende nada a mais do que aquilo que já sabia e tinha por garantido há muito tempo. é por isso que um destes dias me vou decidir a deixar de escrever. não que tenham terminado todos os temas dos quais eu poderia falar. como é visível, eu falo quase sempre do mesmo. o problema também não está na falta de leitores, assim como assim, ainda há quem me leia. a minha decisão tem a ver com o facto de já não me satisfazer com aquilo que escrevo. é assim uma coisa como nos fartarmos daquilo que somos. conseguem perceber?

estava sentado no meu sofá com uma revista no colo. na televisão, não sei, o mudar de canal interminantemente. na cabeça tudo. tudo. tudo. eu ali todo, concentrado todo, na minha cabeça. olho a revista meio distraído. e salta a palavra sedução. gostava de ter cheiro de livros nos dedos e de caminhar por corredores de bibliotecas grandes. gostava que a minha barba crescesse muito de dia para dia. gostava de ter roupas largas e que ninguém me olhasse não me amando. gostava de sentir um corpo quente, perto de mim, um corpo renovado, surpreendente. gostava de tanta coisa.

o que resulta disto é a minha vontade de deixar de escrever. vontade de não ligar o computador, de não me sentar na secretária, de não medir a distância entre os dedos e o teclado. de deixar de encenar aquilo que não sou, de deixar de contar aquilo que nunca quis escrever. não que tenha deixado de existir quem sirva para ser contado. não que tenham acabado de nascer personagens. simplesmente, sou eu quem as deixou de ver.

aquilo que eu nunca quis escrever

releio-me. anoto. recorro muitas vezes a palavras como chuva, sono. penso-me. repenso-me. não consigo calar os meus pensamentos da mesma forma que me é tão fácil calar a minha voz. sim, estou só. estou só como só poderia estar. não, não me é nada desconfortável esta solidão que, muitas vezes, me imponho. o que me agrada ter na vida é esta distância controlada, esta possibilidade de estar sempre muito mais comigo do que com qualquer outra pessoa. apesar de só gostar de pessoas. não quero animais nem companhia. não ligo a rádio para fingir que alguém fala comigo. prefiro um cd a tocar. na música somos sempre nós a falar com nós próprios.

quando te ris para mim eu nunca sei bem o que fazer. quando me abraças entro em pânico. sei como te tocar, como te fazer gostar de mim. sei como te beijar, como te fazer fechar os olhos a gemer devagar com prazer. sei o que te dizer, a maior parte do tempo. sei ouvir-te. sei até te compreender, mesmo que não pareça nada e que as palavras saiam da minha boca atabalhoadamente. eu sei isso tudo. mas quando ris, eu nunca sei bem o que fazer. o abraço, o pânico. penso em ti e chamo por outra pessoa qualquer. é sempre mais fácil, sempre sempre muito mais fácil. engano-me. logo eu, que gosto das coisas dificeis.

mandei-te uma mensagem de parabéns, mesmo que esteja com algumas incertezas em relação à data. foi depois de tomar café. ia a descer uma rua no centro da cidade, a subi-la um casal com um carro de bebé. tirei o telemóvel do bolso do casaco e escrevi-te. pensei em enviar-te uma mensagem de amor, apaixonada, reveladora. mas acabei por brincar, por dizer as coisas a brincar, como acabo sempre por fazer contigo. sabes, há tanta gente que diz que me ama que muitas vezes já nem acredito. há tanta gente a querer abraçar-me e beijar-me a boca que às vezes tenho medo. tenho medo de tanto amor. e quando digo as coisas a brincar, estou a dizer-te que sim. que este amor que se vai descobrindo muito além do que o amor deve ser sabe muito melhor.

aqueles olhos tristes

tens voz de locutor de rádio e dizes-me ao ouvido que são dezoito e vinte e sete em portugal continental. parece-me que já anoiteceu em todo o território, o inverno faz isso com os dias, torna-os mais pequenos. os dias mais pequenos fazem com que as pessoas andem mais frias, com os olhos ensonados, fechados, pequenos. pequenos como os dias pequenos. está frio. mau tempo em amares, dizes. já é noite. e falas-me aos ouvidos.

em sesimbra, esta tarde, houve um jogo de futebol. umas centenas de pessoas rodearam um campo relvado e choveu. no meio do campo, com uma camisola que tinha o número sete, um rapaz corria com os olhos tristes. pode parecer estranho, como alguém que está a fazer aquilo que mais gosta pode ter os olhos tristes. chovia. o rapaz correu correu de um lado para o outro. chutou. correu. segurou a bola. correu. e no final, sempre com os olhos tristes, saiu cabisbaixo para o balneário. foi esta tarde, em sesimbra. tu, tu tens voz de locutor de rádio e falas-me ao ouvido. os olhos trsistes daquele rapaz.

há mais vozes na minha cabeça. tantas vozes que, às vezes, quase deixo de perceber o que dizem. oiço-as mas não as compreendo. fecho os olhos devagarinho, coloco as mãos sobre o peito e concentro-me para te ouvir. concentro-me tanto que quase que adormeço, a tua voz de locutor de rádio. chove. noite. falas-me aos ouvidos de coisas que pouco ou nada me interessam mas deixo que continues a falar. ajeito-me no colchão mas continuam-me a doer as pernas. tu falas. sei que mais cedo ou mais tarde vou acabar por adormecer e pensar naqueles olhos tristes. talvez acorde depois com a tua voz a gritar-me golo.