Arquivo do extinto blogue Esferovite- a vida em pedaços (13-08-2003/ 4-01-2006)

quarta-feira, março 31, 2004

sandokan da sertã

as pernas esticadas sobre a mesa da sala, fazendo cócegas nos dedos dos pés com o arranjo de flores que a mamã recebeu do seu admirador secreto, o chão cheio de papéis de rebuçados e restos de amendoins sobre o peito, tento chegar ao pote dos chocolates e sinto um arrepio pela espinha abaixo, como se fosse um lombo de porco a ser esfaqueado, comidinha para o jantar.

a alzira a aspirar o corredor continuamente, como se o pó nascesse dos tacos de madeira polida que custaram os olhos da cara ao bisavô, tento mandá-la parar, mas não me ouve, ainda por cima surda como é, já só recebe ordens por carta registada ou por e-mail, sim, porque a sacana passa as noites inteiras a consultar, pedagogicamente, páginas sobre sexo na internet.

na televisão aparece o phil mendrix a apresentar o telejornal e eu sorrio, quietinho, para não perder a sensação. há dias que fico nesta posição, a tentar não imaginar como seria possível fazer outra coisa na vida. peço ao makavele para ligar o som do carro na garagem, a ver se consigo me distrair. mas o sacana insiste em fumar ganzas continuamente e em andar a espreitar pelas saias da alzira. comidinha para o jantar.

segunda-feira, março 29, 2004

minhocas

e depois somos velhinhos e ficamos os dois a rir, disparates, agarrados ao lombo, sentados nos sofás, ai as minhas costas, ai o meu pescoço, somos velhinhos, eu estou careca e a ti já não te faltam os pés de galinha com reflexos verdes dos olhos, e rimos, disparates, como se ainda fosse possível pensar que temos vinte anos, mesmo depois de tudo aquilo que já fizemos e já deixamos de fazer, agarrados aos lombos, ai, ai, e depois.

e depois andamos a passear de carro a tarde inteira, sem nenhum sítio para parar, porque está a chover, porque está frio, porque não nos apetece, porque ali é feio, porque aqui não é bonito, e rimos, disparates, como dois náufragos perdidos, a tarde inteira, no carro faz frio como no inverno, e nós rimos, disparates, porque sabemos que não nos apetece ser de outra maneira, ou melhor, apetece-nos ser de todas as maneiras, e por isso vamos sendo, a tarde inteira, as tardes inteiras, a rir, disparates, e com as pontas dos dedos frios tocamos a ponta do nariz um do outro e depois.

e depois, porque nos apetece ficar em casa, porque não nos apetece explicar, porque não queremos que nos perguntem coisas, porque não queremos discutir, rimos, disparates, rimos como só riem as crianças, com as bocas muito abertas e os olhos sorridentes fechados, levantamos as pernas no ar e fazemos vento, na sala, no sofá, e acabamos outra vez agarrados às costas, ai, a rir, disparates, e as dores todas de já ter esta idade toda e continuar a ser tão tolos, como duas crianças, damos as mãos e depois.

terça-feira, março 23, 2004

'tão joão?

entretia-se a rasgar papéis e a olhar os outros. era assim que passava o tempo. andava sempre na rua, fosse manhã cedo, fosse noite tarde. sempre na mesma cidade, agia como se todos os conhecessem. isso acabava por ser verdade. como sempre tinha sido, as crianças tinham medo dele e as pessoas grandes gostavam de o cumprimentar quando o viam a passear pela rua. depois, entrava em cafés e pedia copos de leite. ou então, entrava em lojas e pedia para levar um caderno, uma folha, qualquer coisa. os papelões foram, para ele, a melhor invenção do mundo.

então, ele era assim. baixinho, não tinha muito mais de um metro e sessenta e cinco. deixava sempre crescer o cabelo e a barba até que alguém o puxasse para dentro de um barbeiro para o cortar. no inverno, guardava-o dentro de um barrete grande. a roupa estava muitas vezes suja, algumas vezes limpa. uma perna andava sempre atrás da outra, como se fosse preciso que a puxassem por ser tão calona. estava muitas vezes parado, a olhar para as coisas e para a vida. a vida, grande parte do tempo, parece ser uma coisa que merece ser olhada com os olhos bem abertos.

um dia, entrou num café com um monte de papéis debaixo do braço. encolheu-se junto ao balcão, pousou os papéis numa mesa. entreteu-se a olhar para as pessoas, a andar de um lado para o outro entre as mesas do café. piscou um olho à televisão e bebeu um copo de leite morno. depois encostou-se à parede e fingiu que lia os cartazes que anunciam festas para o próximo fim-de-semana. foi aí que se colocou debaixo da televisão, a rasgar papéis e a olhar para as pessoas que viam televisão. entretia-se assim. depois, saiu do café.

segunda-feira, março 22, 2004

o teu blog morreu? ou a inevitável asneira do amor

andamos cheios desta felicidade decente que nos abraça como se o sol da primavera nunca tivesse nascido antes. é um sorriso forte e abstracto, do tamanho que fôr o da nossa cara, com os dentes todos que tivermos na boca. sejam eles tortos ou não. as outras pessoas, bem, até as outras pessoas, aquelas que nós diríamos que nunca na vida poderiam dar beijinhos a outras, pois bem, as outras pessoas também começaram a dar beijinhos. e logo eu, eu que sempre achei que ser bom nunca daria resultado, vejo-te ser assim e acredito que, se calhar, até tens razão.

quando nos sentamos no café, tu olhas para dentro de mim e eu amasso carinhos com os dedos nos teus cabelos. tu entornas o chá pela mesa e procuras incessantemente, dentro da mala, isqueiros que nunca existiram. quando está frio, o teu queixo treme e eu, como sou crescido, abraço-te com muita força. chega a haver dias em que acho que nunca antes nada foi como agora é. mas depois percebo que sou eu quem gosta de exagerar. falo baixinho e evito os desastres relativos que costumo originar. existem autocarros para o céu, sabias?

um elefante branco passa muito devagarinho no fundo do cenário onde já é de noite e percebo que ele vai sempre continuar a passear por aqui. oiço barulhos de árvores e olho a parede com sabedoria. encontrei, faz agora umas horas, uma ideia no fundo de um copo. quando me sento aqui, remeto-me sempre ao uso discreto das palavras que inventaram para mim. é difícil demais criar originalidades. por isso, abraço-te como me sento num sítio sombrio em dia de sol. porque, às vezes, também me sabe bem provar destas coisas que eu digo que só os tipos parvos provam. e do meio da minha inocência tola, repito-te, crescido, que já conheci tipos que viveram muito.

quarta-feira, março 17, 2004

avulso nº 1

hoje sou eu quem está dentro das calças. ando pelas ruas como um operário e tento subir as escadas que dão para a tua boca. onde estava antes "frio" está agora "desejo". peço cafés e não os bebo. saio à noite para provar umas imperiais. bebo e não gosto. venho para casa com o travo amargo dos amendois. penso em rins. apetece-me fugir dentro de uma chávena de chá.

faltam quatro dias para tocar o sino e eu dou passos em volta. procuro as flores do mal mas sabem-me a cravos recauchutados. passeio por entre filas de livros e oiço-te lá ao fundo, a fungar. dou-te um lenço de papel e olho para o sol. as paredes pretas pretas pretas. da cor da noite quando tenho insónias. agora que escrevo só sobre mim, decido nunca mais escrever.

um homem de barbas, outra vez. conselhos, sim. segui-los, como se seguem as estrelas. oiço e re-oiço as palavras de outro, infinitamente mais novo, infinitamente menos sabedor, igualmente delicioso. diz que tem uma bola de cristal. eu rio. rio sempre. o meu primo, mais novo, ri-se para mim e diz-me que estou sempre a rir. é para não se ver a chuva, digo eu. ele corre atrás da bola. e eu fico sentado à porta da minha casa. dizem que eu pertenço aqui.

domingo, março 14, 2004

porque hoje, hoje, hoje

se eu andar direito pela rua, pareço mais alto. quando as pessoas passam ao meu lado, posso ver-lhes os chapéus, como se sorrissem. eu tenho um chapéu também. mas o meu fica muitas vezes em casa, em cima de uma mesa onde guardo os meus medicamentos e um perfume que me deram por alturas do natal. o meu chapéu é castanho e gosta de apanhar de chuva. também gosta de me proteger do frio da noite. mas isso é quando as noites são frias. ou quando eu não tenho cabelo.

se eu andar direito pela rua, pareço mais velho. a minha avó, sentada à mesa da cozinha a chamar-me doutor. eu a comer batatas fritas de empreitada e com o olhar fixo na televisão. porque é que até em casa eu tenho que me armar em duro? armar-me assim em gajo frio e afastado. não fechar os olhos quando passam imagens violentas na televisão. dizer que fumei um charro em frente à família. sair de casa a prometer só voltar quando estiver completamente bêbedo. mas isso é quando eu, apesar de tudo, me sinto feliz. hoje não me sinto feliz.

se eu andar direito pela rua, se eu andar direito pela rua, bem, se eu andar direito pela rua chego mais cansado onde quero chegar. o problema é raramente saber onde quero chegar. a maior parte dos dias saio de casa sem saber bem onde vou. a minha avó a perguntar: hoje vens almoçar ou vais para lisboa? eu digo que vou para lisboa e fecho-me na casa de alguém, a fingir que existo. depois, quando volta a ser de noite, vou para casa e digo que estou cansado. mas isso é quando eu digo que vou para lisboa. hoje almoço em casa.

sábado, março 13, 2004

na jarra de flores cai a chuva do telhado

dou por mim a pensar que, às vezes, existem árvores azuis que se interpõem no nosso caminho. pássaros alaranjados e músicas feitas de corações a partir. dou por mim a pensar que, às vezes, existem pequenas histórias que nos são assobiadas ao ouvido. e que, não muito acima de nós, alguém dança em espiral sobre a nossa cabeça. depois, baixo os braços, tentando encontrar a calçada onde deixei cair o acento das minhas palavras. não sei como se diz ..., e também já não sei dizer ... . é engraçado como, às vezes, os encadeamentos lógicos das questões nos fazem periclitar. como passarinhos que não se sabem agarrar ao poleiro.

agora que já sou crescido, meto-me muitas vezes em encrencas. como as farinhas se metem nos pães e nos bolos. como os açucares nos entram pelas carteiras quando saímos, ensonados, para tomar café. o meu corpo reclama da impossibilidade de sonorizar todos os movimentos do sangue que se resguardam em si. arrumo a minha roupa em muitos armários, de forma a nunca conseguir encontrar as coisas que procuro. retenho-me nesta organização desorganizada, só para fazer valer o título de confuso. se um dia eu fosse rei, deixava que me cantassem as janeiras à janela. como não sou, fico quieto.

ali em baixo, no rés-do-chão da insistência, deixei ficar um corpo abandonado. sobre ele, descansa uma manta bordada com motivos de outras guerras. o sangue que dele escorre não é morte, é vida. trago uma fotografia dele nos meus dedos, uma réstia de um corpo escondido nas unhas por cortar. enquanto subo as escadas, de mim nunca se apodera o esquecimento. tenho sempre janelas abertas por onde exala esse cheiro sobre mim. ao procurar uma fonte onde me purificar, só encontro outro sangue que, mesmo misturado, nunca apaga a pureza do anterior. e eu fico quieto.

acolá

que fácil é amar aqueles que saiem da nossa vida pela manhã. aqueles de cujos os casacos já não temos que nos desembaraçar quando as noites estão frias e queremos levantar os corpos dos sofás. quando abrimos bem os olhos, eles já não estão lá. viveram demasiado rápido, respiraram demasiado ofegantes, saíram pelas portas que já não encontramos agora. agora, que abrimos os olhos. que fácil é amar aqueles a quem não temos que dizer olá todos os dias.

que fácil é desejar aqueles que ainda não entraram na nossa vida. aqueles de cujos os copos não tivemos que provar quando já só resta sede e nenhuma vontade de beber. eu diria, é como andar de olhos fechados, meu bem. e fazê-lo sem tactear. como se um som qualquer vindo de longe nos orientasse, nos conduzisse a um sorriso límpido e infantil. esses, são aqueles que ainda nunca nos disseram uma palavra, nunca nos deitaram um olhar, nunca nos respiraram sobre a face molhada saída de um banho. que fácil é desejar aqueles que ainda não se re-conhece.

que fácil é matar aqueles que nos amam sem condições. que fácil é matar aqueles que se nos oferecem como manjar. que fácil é deixar cair a lâmina sobre os pescoços de quem nos quer beijando o pescoço. é como cair num sofá onde o mundo deixou de fazer de sentido. como abraçar uma causa perdida e sorrir, sorrir como quem ri, ri perdidamente. procurar os óculos no fundo do saco e partir à aventura, agora que se vê o mundo com outras cores. que fácil é matar aqueles que nos dizem sim, sim, sempre muito, meu amor.

quinta-feira, março 11, 2004

deslizamento de terras

a minha aldeia é o centro do mundo. visto o casaco do pai e saio à rua inventando histórias e saudando o sol. no centro da praça central, uma árvore cresce todos os dias cinco centímetros. debaixo dela, seis crianças inventam sóis e saudam as minhas histórias. visto o casaco do pai e faço-me de homem. tosso entre as frases para fingir a voz mais grave. uma vez, um homem que passava na viagem de autocarro, disse que na aldeia dele havia uma árvore igualzinha à da minha aldeia. eu acreditei. a minha aldeia é o subúrbio do mundo.

eu tenho dez dedos em cada pé, descendo do calcanhar em direcção à casa onde volto. tenho cinco estrelas penduradas nas abas do chapéu. tenho uma cara comprida como os homens pequenos das vilas que se encontram na linha do horizonte. eu tenho a noite dentro dos bolsos. a minha carteira foge de mim, como as crianças fogem dos carros. há um cão que faz xixi na parede da minha casa e uma casa que se encosta, com jeitos de carinho, ao meu peito feito parede. a minha aldeia tem um coração.

visto o casaco do pai e as meninas sorriem na minha direcção quando me sento à mesa do café. mando vir duas torradas, dois sumos, dois jornais e duas caixas de guardanapos. iludo assim a ilusão, o nome que as velhas dão à solidão. quando calço os sapatos penso sempre nas poças de chuva. gosto de lhes dar beijinhos com a sola. sigo o meu caminho a pensar que fiz bem a alguém. e rompo entre a multidão que se acerca de mim. na minha aldeia não existem multidões. isto sou só eu a ver os meus pensamentos.

terça-feira, março 09, 2004

enquandramento normativo

sou suspeito desse crime que insisto em repetir. uma pedra azul a saltar-me da boca, sempre que abro os olhos no regresso do mar. normalmente, sento-me na beira de uma mesa de café e peço um chá de estrelas. mesmo que com medo de encontrar um vale escondido dentro da chávena. seguro a colher com o cuidado dos magos e deslizo o olhar com a ciência dos antigos. muitas vezes, tenho recaídas. sou suspeito.

ao lavar os pés nas águas das estradas, corro muitas vezes o risco de me contaminar de motores que passam. nesses dias, cedo à viagem e parto à procura do que ainda não tive. ou, talvez, de tudo aquilo que gostei de ter. alguém me envia uma mensagem para me avisar de que o mundo é igual em toda a parte, em todas as épocas. eu abro o chuveiro das ideias e fujo do óbvio. perto do final da minha aldeia há uma saída para esta história.

rompo as roupas com que me vestiram os meus pais. e depois tremo com a incerteza de se andar assim a oferecer uma nudez a quem não me quer por perto. insisto em entregar-me nos momentos e nos locais errados. e tenho sempre pressa em apagar as coisas que pretendo escrever na pele das mulheres que vou encontrando nas misérias da minha imaginação. leio e releio o diário do apaixonamento. e procuro a pedra azul. sou, ainda sou, suspeito.

domingo, março 07, 2004

bossa nova

estico as pernas para cima da mesa e bocejo. arrumo o comando da televisão sobre o monte de jornais do fim de semana que guardei, todos, para ler no domingo à noite. folheio todos os suplementos à procura de uma notícia interessante. qualquer coisa de jeito para se ler na casa de banho. aprecio, principalmente, os comics. procuro-os, leio-os umas duas três vezes consecutivas. estudo-lhes o efeito. na televisão, uma série de reportagens feitas em provas de Todo-Terreno. Provavelmente, uma das coisas mais chatas do mundo.

estico as pernas para cima da mesa e bocejo. passo o comando da televisão de uma mão para a outra. tipo microfone de marco paulo. é também nesse ritmo que mudo de canal. é incrível como se consegue ter vinte e tal canais e só programação para idiotas. assoo-me, para poder respirar melhor. sinto na garganta os restos do tabaco da noite passada. e há também cerveja a escorrer pelo sangue. olho o telemóvel silencioso. fecho os olhos.

estico as pernas para cima da mesa e bocejo. algum vento entra pela janela que ficou aberta. pela janela que não é capaz de me fazer levantar para a ir fechar. passeio os olhos pelas fotografias espalhadas em todos os armários da sala. volto a abrir e a fechar todos os jornais. levanto-me, passeio pelos corredores e acabo a olhar para o leitor de cd's, no meu quarto. ligo-o meio sem pensar e oiço dois minutos do relato do futebol. depois, mudo de estação. e dou um passinho de dança.

sábado, março 06, 2004

fim de citação

quem saiu para a rua
para escrever um poema?
quem disse que o vento mostra mais que as palavras?
isto aqui sou eu, a rastejar.
isto aqui sou eu, a parar encostado a uma parede.
a querer ouvir o tempo que passa ali.
isto aqui sou eu, a repisar a repisar a repisar.

a minha vontade infinita de faltar a compromissos, aqueles compromissos aos quais eu nunca faltei. ele foi sempre tão certinho. chegas sempre a horas, sempre a horas. que pontualidade. a minha vontade de amanhã não ir, não aparecer, não estar. mandar uma mensagem de última hora a dizer que me sinto mal e. e. e. não ir.

ausência minha que te partiste.

como eu me reparto pelos pratos de quem tem apetite para estas carnes envelhecidas. para quem ainda quer morder o que ficou para trás perdido nos sonhos de alguém. porque eu já não sou nada daquilo que fui. e aquilo que eu fui já foi há tanto tempo. há um monte de músicas tristes a ecoar na minha memória. posso te dizer baixinho. foi o que ficou dos dias que passaram.

faço o diário de poemas e de frases que não existem. faço um diário da vida que não vivi. porque eu estou tão formatado como todos aqueles que eu critico. eu estou. paragem errada, diria o motorista. veja lá bem se quer sair aqui. eu dou as voltas que tiver que dar para ficar a falar de mim. e fico. a falar de mim. de preferência, sozinho.

sozinho.

sexta-feira, março 05, 2004

após o sinal...

porque cada vez que abres a boca, eu penso que devias ficar calado, muito caladinho, só a ouvir esse som inigualável do silêncio. não que exista alguma razão muito grande e alta para isso ser assim. só porque.

isto aqui sou eu, a não querer dizer nada do que estou a sentir agora. acho que não tenho esse direito. não vou, não vou deitar para fora mais qualquer uma daquelas coisas que penso agora. mostro só uma pontinha. é ternura.

procuro um emprego estável onde eu possa estar a vida inteira distraído. onde eu possa ser aquele que tem desculpa por. onde eu possa não ser à minha vontade. procuro um emprego. simples.

faço questão de estar rodeado de lenços de papel, para o que der e vier. faço questão de ter os óculos escuros sempre à mão, para o caso de ficar sol. faço questão de ter o telemóvel ligado, para o acaso de me quereres acordar a meio da noite. se precisares de mim, estou do outro lado dos números.

da próxima vez que me quiseres puxar pelos colarinhos e beijar, podes fazê-lo sem avisar. eu vou estar sentado no sofá da sala, a olhar para aquela fotografia grande de quando eu tinha vinte anos, a fumar na varanda. as pessoas que eu conheço não estão a fazer nada na vida. aposto que também não iriam fazer nada para a morte.

penso comprar uma bússola lá para o fim do mês e começar a andar em direcção a norte. não, não quero encontrar ninguém. apetece-me só morrer no mar.

terça-feira, março 02, 2004

lentidão

se eu não fechar os olhos, ou, se eu fechar muito devagar os olhos sempre que tiver mesmo que os fechar, conseguirei fazer com que o meu mundo seja mais lento. ao controlar a respiração, ao pensar em cada milionésimo de segundo da minha existência, julgo ficar mais próximo daquilo que será a minha totalidade, como uma cartolina grande esticada no chão da sala. se eu tivesse um marcador, pegava nele com as pontas dos dedos, tirava a tampa e escrevia em letras grandes. ALEGRIA.

se eu puser uma música bem calma, ajuda. depois basta tentar dar ouvidos ao coração e tentar a contaminação. um coração ao ritmo de música calma. música triste, sim, música triste era capaz de funcionar melhor. procuro no armário um cd que corresponda à exigência. quero injectar tristeza no meu coração, fazê-lo parar de bater. tento pensar em palavras como. aguaceiro. cinzento. praça. silêncio. ausência. longe. desarrumação. tento imaginar uma cartolina bem esticada no chão da sala. debaixo, uma carpete fofinha. a palavra ALEGRIA a sorrir-me e eu sentado no sofá. contente.

hoje uma senhora disse-me que não me conhecia. sorri e agi como se fosse uma pessoa crescida. às vezes gosto de ser assim, crescido. andar por ruas estreitas em cidades desconhecidas. sentir um arrepio de frio pelas costas sempre que um homem olha para mim. pensar que me vão bater. pensar que alguém vai gritar comigo. depois, atender o telefone e ouvir o teu sorriso. ser eu o mau. ser eu. dizer-te coisas que te fazem esquecer de outras. esticar as pernas e deixar o corpo escorregar pelo sofá, até deixar de ver a cartolina. pensar que seria bom estar só com quem gostasse de mim. e depois, não pensar.