Arquivo do extinto blogue Esferovite- a vida em pedaços (13-08-2003/ 4-01-2006)

sexta-feira, dezembro 31, 2004

os sentidos: audição

fazemos assim, eu sento-me aqui nesta cadeira e tu sentas-te ali naquela, ao fundo, sentas-te e quando eu disser, agora, quando eu disser, tu podes começar a contar a tua história, está bem, começas a contar a tua história e eu fico aqui a ouvir-te, a ouvir todos os pedacinhos da tua história, podes dizer onde deixas os parágrafos, onde deixas as vírgulas, as palavras separadas graficamente da frase, tudo o que quiseres, dizes, eu fico aqui a ouvir, a ouvir, a ouvir.

fazemos assim, tu dizes para eu fazer as coisas como tu queres que eu faça, tu dizes quem se levanta primeiro, dizes quem pode falar, quem pode sair, quem pode entrar, tudo isso, está bem? tu levantas-te ou sentas-te, como quiseres, dizes as coisas que tens a dizer, fazes o que tens a fazer, como se fosse uma obrigação, melhor, uma necessidade, uma coisa assim, fazemos assim, é mais bonito, vai ser muito bonito, eu tenho a certeza, sim, tenho a certeza que sim.

disseram-me que nada acontece por acaso, percebeste, nada acontece por acaso, ninguém diz nada só por dizer e então, tu aí sentado vais dizer coisas importantes, como terá que ser importante o facto de hoje me terem dado duas canetas no clube de vídeo, ou de me dizerem no médico, agora já não tem borbulhas na cara, nada é por acaso, por isso, eu fico aqui sentado, está bem, eu fico aqui e tu aí, sentas-te e dizes o que quiseres, como quiseres, podes ter a certeza, ter sempre a certeza, eu vou estar aqui a ouvir, a ouvir, sim, a ouvir-te.

terça-feira, dezembro 28, 2004

urso

Escrevo. E o que escrevo parece-se com a minha ausência de tudo o que esteja ao alcance de filtros de existência. Gostaria de poder pensar em ti como uma pedra que se ausenta do caminho devido à imensa força do nosso frágil olhar. No entanto, sempre que me vejo perante essa dificuldade de classificar as coisas que não faço a mínima ideia onde arrumar, tenho vontade de me esconder dentro do armário grande do sótão onde, quando eu era mais me pequeno, me fechava para pensar em coisas simples. Penso em coisas simples como: chuva. Maçãs. Madrugada. E tenho a boca cheia de palavras que ouvia dizer na rua, por pessoas muito maiores que eu, pessoas que eu nunca conheci. Palavras como: labor. Arvoredo. Rimance. Núpcias.

Já me julgaram louco, eu sei, já me julgaram idiota, também, mas eu prefiro guardar para mim todas as coisas em que penso e que se me tornaram impronunciáveis. Não é nenhuma espécie de recusa do que os outros têm para me dar, pelo contrário, é uma extrema necessidade de receber, de me completar com aquilo que ainda desconheço. Volto atrás e sublinho ainda. Ainda. Espreito para dentro da minha camisa e percebo: tudo em mim aponta para um há-de vir, um futuro construído às amálgamas de massa disforme e bastarda. Queria patrocinar esta procura de, este caminhar para, com alguns milhares de abraços e beijos e olhares simpáticos cheios de força. Não. Tenho caras que se franzem. Pouco importa. Para mim, agora que estou decidido a ter esta cara de coisa nenhuma, pouco importa. Agora.

Porque eu conheço a noite escura onde tudo começa e eu sei que tudo tem um início mais ou menos ignorante, conjugado com um fim mais ou menos conhecido. Poucas sendo as pessoas que nos podem dizer algo de novo, muitas são aquelas que nos adivinham o fim. Não é mesmo nada difícil. Basta ir tentando. Um homem apaga a luz da sala no prédio em frente e eu sinto-o na minha consciência de estar sentado junto à janela. Olho, sobre a estrada, o estore a fechar-se. Não me apetece mais nenhum chá de limão, nem bolachinhas, nem beijinhos de boa noite. Trocava esta obra por ser por uma noite de sexo com alguém tão faminto de tudo quanto eu. Mas não me atrevo sequer a sair do quarto.

sábado, dezembro 25, 2004

cravos

mas que horas são, que horas são? é de noite ainda e chove. lembro-me de ter andado pela rua, de ter estranhado, tanta gente a andar de um lado para o outro. falava, sim, falava ao telefone como quem voa, na madrugada do pai natal. sim, chovia, mas eu não dei por nada. bêbedo que nem um cacho, sinto no corpo o calor agradável do vinho do jantar.

abro a caixa de correio e em vez de cartas pedras, em vez de mensagens fugas, em vez de anjos corvos marinhos. estendo as pernas no sofá da sala, doiem-me as costas. é bom saber que se lembram de nós, mesmo quando se lembram de nós. eu tenho a pele das mãos seca, pergunto-te se a chuva ajuda, mas tu só sorris e coras, como as bonecas do cinema.

um dia ainda uma pedra me vai acertar, penso eu, enquanto acendo um cigarro e o deixo queimar-se no cinzeiro da sala. tenho um homem de guitarra a tocar-me ao ouvido e eu finjo que sou mais alto que o mundo, mais crente que a própria religião. digo coisas em que ninguém acredita e acredito que existem coisas que ninguém diz. em alguma parte de tudo isto eu hei-de ter razão.

sexta-feira, dezembro 24, 2004

o número doze é o que está de fora

as minhas histórias são recantos do campo onde a bola nunca chega. entras no jogo, feliz de seres escolhido e não percebes que nunca te vão passar a bola. estás lá para fazer número, estás lá para completar o onze. o teu olhar de confiança mete medo aos teus colegas. pensas para fora, coitado. pensas para dentro, devia estar-me a cagar. e não estou.

penso e repenso nessas coisas, agora e sempre. se eu tenho um entusiasmo, encolhem os ombros, se marco um golo, foi só normal. tudo o que fazem é muito melhor, muito bom, muito tudo. eu sou o outro, o que está para fazer número, o que ninguém sente falta nem assina autógrafos de meninas histéricas. não faço papel de dono da bola. peço para cagar e saio.

por muito que me custe, eu também não gosto de nenhum deles. isso atrapalha-me mais do que me ajuda. sempre que corro ao lugar de outro, para tentar chutar a bola, não sei como se faz, tenho medo, chuto ao lado. parece que jogo mal, parece que me desajeito. eu sou o que faço número, o que está por ali. "conta-lhe a história a ver se ele percebe". quando nenhum deles percebe que o meu campo já nem é dali.

segunda-feira, dezembro 20, 2004

the man who

do alto da minha torre, eu vejo o mundo, do alto da minha torre. estou fechado, isto não é uma queixa, estou fechado. no alto, inacessível, alto. nú, eu, despido, sim. enfim. do alto da minha torre, exaltação do afastamento.

eu não sei se consigo ver a rua, tão longe de mim, não sei se eu consigo. estou ausente, isto não é um chamamento, estou ausente. a palavra longe, a palavra longe, a palavra longe. nem em mim, nem por mim, nem de mim. uma exasperante falta de trânsito.

do alto do meu eu, assim, do alto do meu eu. sem o mínimo, mínimo sorriso. umas dezenas de músculos fora do seu ramo de actividade. nem sequer falo, não, nem sequer falo. do alto de, do alto de, do alto, este sítio tão longe de tudo. eu vejo o mundo, eu não sei se consigo.

quinta-feira, dezembro 16, 2004

uma placa a dizer-te a ti

eu não desapareci, não, tu é que não estás aqui. chego tarde mas a horas, olho para todos os lados e nem um sinal de ti. falam-me de umas casas ao longe, os outros, os que ficaram, mas eu não vou subir e descer ruas, nem das estreitas nem das delgadas, para te encontrar. eu não desapareci, escrevo em letras pequeninas numa porta velha de uma casa de banho pública.

vesti uma camisa de domingo e umas calças apertadinhas, quero parecer um menino bonito quando passar à porta da igreja e vou levar ramos de flores garridas nas mãos, um lenço cor de rosa dobrado no bolsinho do casaco, o cabelo penteado, alguma brilhantina. quando finalmente me vires vais dizer, ainda bem que vieste e eu vou sorrir, com orgulho.

está sol e está frio, as flores ficaram em cima da esplanada, com o vento que está, já eu estou despenteado, já o ramo deve ter voado, os outros, os que ficaram, falam de casas grandes e altas, de ruas cheias de gente feia, eu volto para casa, orgulhoso e calado, de mãos a abanar como o vento, as mãos não voam, diz-me a minha mãe, eu sei que não, eu sei tão bem que não.

segunda-feira, dezembro 13, 2004

desconhecida n.º 23 758

são quatro horas da tarde, quatro horas ditas dezasseis, dezasseis horas e alguns minutos, no rádio já devem ter dado as notícias, nos empregos ainda há quem esteja a sair, eu vim do passeio, tu, sei lá, do metro ou de outro autocarro, quantos autocarros terás que apanhar até chegar a casa? onde será a tua casa? sim, desconheço tudo de ti, excepto que existes.

sento-me ao teu lado, último autocarro da minha viagem. lês um jornal profundamente desinteressante, salva-te o facto de o leres com o desdém que merecem as coisas desinteressantes. estás mais bonita assim, de cabelo ondulado. não te digo nada. sento-me silencioso. como os homens que não falam nunca. respiro.

não sei se dás atenção a essas coisas, de ser a segunda vez que viajamos lado a lado, a quarta vez que partilhamos o mesmo autocarro. não sei sequer porque é que eu dou atenção a estas coisas, eu que não gosto de ninguém. talvez seja a emoção passageira das nossas pernas se encostarem durante a viagem inteira. talvez a lembrança dos nossos dedos a fugirem tão próximos um do outro.

estamos aqui onde ninguém nos vê, nestes bancos do autocarro. podemos olhar um para o outro, sem querer que o outro repare. vamos enconstados, muito encostados, ainda para mais com estas roupas de inverno. adormecemos, adormeces, a meio do caminho, acordamos, acordas, de repente, com uma travagem. digo, um cão, tu sorris e esfregas os olhos. saímos por portas diferentes do autocarro.

sábado, dezembro 11, 2004

frase do dia

pode parecer muito estranho mas, o que eu vos digo é que já não existem histórias a nascer nas paredes.

quinta-feira, dezembro 09, 2004

carrancudo

não há história nenhuma para contar, sentamo-nos a uma mesa de café e falamos, falamos de tudo aquilo que não nos fere o coração, um coração ferido é uma coisa tão feia, puxamos por palavras que nos sejam fáceis, olhares que não nos comprometam, não damos o flanco, não damos a cara, e saíndo da porta, lá fora é tudo igual, amanhã há mais.

bebemos café, bebemos chá, bebemos àgua, gozamos com tudo o que quisermos, com tudo o que nos apetecer, gozamos até com o facto de escrevermos uma vez mais alguma coisa em mesas de cafés, está frio e lá fora, é tudo igual saíndo da porta, dizemos, este texto está mal escrito, dizemos, esta mulher trata-me bem, e depois, e depois, amanhã há mais.

as coisas que se dizem quando se anda em fila em frente a um balcão, as coisas que se dizem quando se quer imaginar a mesa, o café, a fila, a pessoa, uma pessoa qualquer, temos um caderno grande para fazer apontamentos e uma cabeça pequena para guardar memórias, se eu me lembrasse do que penso não teria que escrever, não teria que dizer, amanhã há mais.

segunda-feira, dezembro 06, 2004

hoje

ruy belo foi avistado esta tarde no cais do sodré. vestia sobretudo preto, camisa de golas rosadas e um pullover aos quadrados, azuis e verdes. tinhas uns sapatos engraxados e caminhava de cabeça baixa, em linha recta. o cais do sodré, nos dias de semana, é uma rua suja, cheia de pássaros com peste. há muitas pessoas de um lado para o outro, a passar. no meio do passeio vendem-se livros velhos e castanhas assadas. é bem possível que o ruy belo passe por ali sem ser reconhecido.

na sua cabeça, histórias de espiões de países asiáticos e embaixadores. o ruy belo lê jornais e sente-se informado, tanto quanto um pouco assustado, com o rumo das coisas do mundo. ainda assim, sai de casa todos os dias e procura um café onde ouvir as vozes dos outros. a solidão tornou-se chata, em monte abraão. agora vive numa pensão de marinheiros, com uma vista de janela suja para o rio. sempre, ao meio-dia, uma senhora avantajada faz-lhe, com tiques de religiosidade, a cama. ruy belo sente-se agradecido pela bondade da senhora. ainda a semana passada lhe ofereceu um terço velho, que deixou de usar quando se sentiu vencido pelo catolicismo.

passavam pouco mais das cinco e meia da tarde, ruy belo foi avistado no cais do sodré. entrou num bar com balcão e mesas de madeira envelhecida e sentou-se a beber uma cerveja preta. no bolso tinha alguns papéis sujos, um livro de teoria política e uma carta que nunca mais acabou de escrever. para distrair os olhos, leu a ementa do almoço, coisa ultrapassada, e os cartazes colados nas paredes do outro lado da estrada. desta janela vejo, de uma maneira limpa, uma paisagem mais suja, pensou. brincou com umas moedas que tinha no bolso das calças e pagou a despesa a uma empregada simpática, com cara de homem. a esta hora, o mais provável é que esteja prestes a adormecer, num sofá da saleta da pensão, a enrolar os dedos nos farrapos que o forro solta.

sábado, dezembro 04, 2004

faixa cinco

a)
sex is my head, sex is everywhere

a correr pela rua abaixo
mp3

a cabeça de um lado para o outro
atitude

sex sex sex sex sex sex sex sex sex sex sex
ou a chuva a cair no meio da estrada?

head my head

b)
a correr, circuito de manutenção
sex sex sex

mp3
ouvidos tapados não ouvem

buuzzzzziiiiiiinnnnaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa
sex sex sex sex sex sex sex sex sex sex sex

buzi-buzina
a correr

pés para os lados, lados, lados, pés.
correr
mp

quantos?

c)
sex sex sex
in
the
head

mp 3

a correr mesmo sentado
dá ao pé
dá ao


dá ao
dá ao pé

a música
acabou.

puf!

II

mas se eu não sei escrever histórias, se eu não sei ficar parado, a olhar, como vamos dizer à tarde, que a esta hora está para chegar, que o dia é uma mão que se fecha, até se apagar a luz? eu não vou dizer três vezes a mentira que está para chegar, nem vou calar, nem em frente aos microfones do teu peito, a miséria que cobre o não. um dia haverá um jardim e, quem sabe, por lá, um lugar para mim.

quero dizer coisas que toquem as pessoas por dentro, dizer palavras que não se vejam na rua, sonhar sintagmas que te façam corar, dormir junto de um fogo, dormir sem parar. volto atrás no texto, risco as frases. aquela frase que vês aqui. não suporto a rima interna, não suporto o som sonâmbulo dessa poesia. ou então sou eu, em transe, a tentar enfeitiçar-te. podes fechar os olhos outra vez.

[quem chega a esta hora, chega sempre tarde demais. já não se diz bom dia, nem boa tarde. agora, o que é que tu pensas de mim? usas o telefone para me deixar em suspenso. é sábado de manhã, queres me ligar ou não? eu não vou dizer três vezes a mentira, eu não calar. estou livre, como se está livre num país dourado, a minha testa em suor, ausente. quem está do lado de lá da porta? eu vou entrar pelas portas que tu deixaste fechadas.] sim.

explicação

não sei porque comecei a pintar os olhos de negro sempre que fazia amor. era uma espécie de máscara, uma forma de me esconder atrás de algo. já não podia dizer, estou nu. havia uma barreira entre o dentro e o fora. não sei porque comecei com isto. não sei explicar. é só mais uma coisa assim.

não sei porque não me disseste nada. talvez tenhas achado engraçado, da primeira vez. exotismos meus. depois, sem que nenhum de nós reparasse, foi ficando, um hábito presente, insistido, diário. eu e os meus olhos pintados deitado sobre tu, virginal, sempre, mesmo depois de todas as noites em que suamos um amor nosso.

é só mais uma daquelas coisas, diria o meu psiquiatra, que você insiste fazer perdurar. dispa-se, homem, dispa-se, repete uma senhora na loja. eu parado em frente do espelho, as calças e o casaco do fato de noivo nas mãos. certas coisas não conseguimos nunca explicar, muito menos numa carta, que se queria deixar de escrever. não sei porquê.

quinta-feira, dezembro 02, 2004

uma questão de ponto de vista

está tudo pelo chão, como há muitos anos atrás, não sei se te lembras, a casa tão desarrumada, as palavras sem nexo, a saírem da tua boca como sentenças, a entrarem noutros ouvidos como condenações, e hoje, levado a pensar que está tudo pelo chão, como sempre, como dantes, esforço-me a não acreditar no que me dizes, porque, enfim, todos nós crescemos, mesmo que para os lados, e enquanto se vai alterando a nossa forma de andar, enquanto ficamos mais lentos, assim o nosso pensamento, a nossa forma de ver as coisas, se altera também. se não fosse por mais nada, seria por isso.

eu que não sabia que era possível ficarmos a sorrir em frente a um computador, parados, fora dos filmes que vejo na televisão, fiquei assim quando apareceste, certo dia, pelo final da noite. agora já sou crescido, pensei, já sorrio parado em frente a computadores. olho para o chão, ao redor dos meus pés, e sim, ainda há coisas espalhadas, está frio, e no quintal àrvores perdem frutos à velocidade dos dias, quando chove. mas agora eu visto casacos e já não fico a pensar que sou imortal. embora, muitas vezes, me corte a fazer a barba sem que doa nada.

será capaz deixar de se saber escrever no meio de um texto? mas quantos anos tem um texto para crescer? há muitos muitos anos, estava tudo pelo chão, e eu construí com palavras uma casa, um quintal e uma árvore. agora caem os frutos pelo chão, mas a casa não envelhece. uso ou abuso dos seus constituintes. como é possível que tudo esteja como dantes, exactamente? eu sentado na mesa a ver a casa a crescer pela folha em branco, despida. faço de mim um lugar público, uma cadeira imersa de um corpo. porque eu sou sentado, e sim, consigo andar, mesmo no meio desta confusão aos teus olhos.

sábado, novembro 27, 2004

assim; as minhas mãos

a roupa aparece e desaparece do estendal da varanda ao lado. sim, é sábado, e há vizinhos pelo prédio inteiro, fechados nas suas casas, embrulhados em mantas que aquecem as mãos cansadas de uma semana a trabalhar. os barulhos do prédio são mais intensos. almoços sopram vapores pelos fumeiros, crianças choram em frente aos televisores. é sábado, e visitas tocam às campainhas, com sacos de prendas e rebuçados para os pequenos. uma bola desce todo o prédio aos saltos, lentos, pelas escadas.

acabado o almoço, é hora de sacudir as toalhas, enchendo-se o pátio de migalhas que nenhum pombo alguma vez terá o gosto de provar. carros chegam e partem com as compras, com mudanças, com a pressa de um outro dia qualquer. penso em cesariny, "quando aqueles que chegavam olhavam os que partiam, os que partiam choravam, os que ficavam sorriam". penso em como a poesia pode dramatizar todo um dia vazio, transformando-o num dia cheio. parece que vai chover, mesmo assim.

alguém canta acompanhando a música da rádio. gostava de conhecer um sinónimo de sing-a-long em português. afinal, vivemos cheios de problemas de linguagem. alguém discute numa varanda mais abaixo, alguém ralha com uma porta a bater forte, algures no prédio. é sábado. e os acordes de guitarras que poderiam soar pelas ruas foram de fim-de-semana para terras distantes. eu diria que a chuva ainda nos vai fazer sorrir, se conseguirmos abrir os olhos para o céu no instante do primeiro trovão. ou então sou só eu a ler, a ler muito mais do que devia.

acabamos todos por sair de nossas casas para nos encontrarmos uns aos outros à porta do elevador. é assim que funciona, este silêncio de bom dia, este sorriso sincero. bebemos café para aquecer os dedos, ninguém me consegue convencer do contrário. e há sempre um sabor forte e reconfortante em sermos assim, pessoas de sábado, que vêm a roupa aparecer e desaparecer na varanda do vizinho, que sentem que há todo um mundo lá fora, mas um mundo muito maior cá dentro. ou sou eu a exagerar, ou foi a poesia que nos fez tudo isto.

quinta-feira, novembro 25, 2004

sorriso desconhecido

o que eu vejo na televisão não tem nada a ver com a vida a sério. saio de casa, finalmente, a pensar como tenho passado tanto tempo em casa. depois digo, cá para mim, o que aconteceu primeiro na minha vida já passou para a ficção, o que aconteceu depois, escrevo-o em qualquer lado. ando pela rua e sorrio para desconhecidos. corrijo, desconhecidos sorriem para mim e eu penso que alguém me persegue. digo para mim, vou fazer o euromilhões, digo para mim, tenho que passar pelo banco, digo para mim, numa infinitude de dizer tudo para mim, repetir tudo ao infinito, numa inacabável teorização do gesto.

o gesto. coisa pequena que nos acontece. tenho uma régua para medir a intensidade dos gestos. ando pela rua e, a régua no bolso, a régua na cabeça, nos olhares. desconhecidos sorriem para mim e eu tenho que ir ao banco. ao longe, tento fazer com a imaginação a face de uma rapariga que a minha miopia não vê ao longe. não me consigo decidir se é bonita ou não. talvez tenha uma cara estranha, recentemente saída da infância. mesmo assim, não lhe consigo decidir nem a idade. passa a sorrir para mim, desafiadora. imagino que daqui a uns anos seja linda, inalcançável, distante. e eu continuarei com medo dos sorrisos de estranhos.

o banco. um lugar de máquinas e números. onde as pessoas esperam tristes veredictos para uma vida inteira. onde os gestos são lentos e os desconhecidos não sorriem, só pedem desculpa por terem que pagar as contas. a rua, o frio. olho espantado as montras, o sol. quase dezembro, o natal a subir pelas paredes. desconhecidos, menos desconhecidos, a sorrir. eu a ser perseguido, perseguido por mim mesmo, como sempre estou. penso e re-penso-me, digo-me, o almoço de amanhã, o jantar de amanhã, tudo o que há e não há amanhã. canso-me até adormecer deitado no sofá. e acabo de escrever mais um texto recusado pelo dn.

terça-feira, novembro 23, 2004

hospital de letras

que horas são, pergunto eu, de mim para mim mesmo. reservo-me um enorme silêncio, como resposta. ou melhor, como não resposta. aprendi ao longo dos anos que não se deve perguntar as horas a nós mesmos. é o tipo de aprendizagem que se pode fazer quando se passa demasiado tempo dentro da redoma que se construíu para si. uma coisa um tanto oca, diria. que horas são, e de repente, perceber mais uma vez que me tenho estado a dedicar a nada, se é que se pode dizer que se dedica a nada o tempo que dedicamos a tentar sair de uma teia que nos construímos.

melhor não perguntar as horas, melhor mesmo é dizer, porque estou preso, ou então, porque é de noite e eu aqui preso a uma miragem. ou talvez eu só esteja a complicar o que já é por natureza demasiado complicado, talvez eu esteja a tentar reescrever uma história que ainda nem foi pensada o suficiente para ser escrita numa forma original. tudo o que é vida, é repetição. uma das coisas que não podemos negar. nem mesmo quando pisamos o nunca antes pisado. porque estou preso, pergunto-me, e vejo à minha volta uma série de folhas, não brancas, cheias de gatafunhos que não consigo compreender. e não perceber porque as risquei assim.

estou em trânsito para um outro lado qualquer, toda a gente que quiser me poderá desviar, eu só não serei capaz de voltar atrás. telefonas-me quantas vezes por dia para dizer o mesmo, logo a mim que não sei atender o telefone, logo a mim que me atrapalho com as teclas quando me pedem para enviar mensagem. que horas são e bastava tirar o telemóvel do bolso para o saber. é assim que se resolvem as questões existenciais, penso. recorrer ao bolso certo, ao objecto certo. as folhas brancas ou riscadas, uma ordem inexplicável, guardada na prisão onde tenho os pés. e, querendo saber do resto do corpo, procurá-lo, de uma forma desordeira, ao telefone, num hospital.



domingo, novembro 21, 2004

fazer-me homem

esta manhã, comprei pinturas. saí de casa cedo e andei a vaguear pela cidade, à procura de me sentir protegido pela sombra das varandas e dos prédios altos. hoje é um dia sem sol. o inverno já vai longo mas ainda não trouxe nem chuva nem o céu muito carregado. hoje é o primeiro dia sem sol. saí de casa e procurei nas montras das lojas as coisas que habitam nos meus sonhos nocturnos. o meu passo é inseguro e incerto, ainda assim. olhei, olhei para todos os lados. e se ninguém me atacou, também ninguém me protegeu.

esta manhã, comprei pinturas. nunca o tinha feito antes, não sei como será depois. ainda não sei como as utilizar. esta frio e ninguém me convida para sair. vou ficar tardes inteiras fechado em casa, a ouvir os mesmo cd's de cantoras mexicanas velhas e bêbedas. imagino estúdios sujos, cheios de fumo de cigarros mal apagados nos lábios de músicos e cantoras. aqui é inverno. tenho medo de estar na rua, passar no passeio por outras pessoas. o meu passo nem sequer é um passo, mais uma maneira de tremer, de me encolher.

esta manhã, comprei pinturas. há sempre uma loja de chineses aberta, seja qual for a cidade, seja qual for o dia, a hora. entre as prateleiras mal há espaço para andar sem me sentir desesperadamente claustrofóbico. eu sou assim, cheio de pensamentos. parei em frente a uma vitrine cheia de pequenas caixas de pinturas, caixas iguais às da minha avó, da minha mãe, caixas iguais a de todas as senhoras. eu não sou uma senhora. o meu pai sempre me disse que eu tinha que me fazer homem. o meu passo inseguro. o meu medo de toda a gente. em frente ao espelho pinto os olhos com um sorriso tremido.

sábado, novembro 20, 2004

outra história

agora já nada é como dantes, eu chego a casa e a mesma rotina que nos atordoa os passos, lá fora, repete-se aqui dentro. ou sou eu quem está mal ou foste tu que te mudaste com todas as tuas indecisões para o centro da minha vida, arrumamos a roupa aos montinhos dentro das gavetas do roupeiro e fomos fazer amor, descansadamente, para a banheira. regressamos, burocraticamente, aos nossos carris pela hora de jantar. somos pessoas de sociedade, temos responsabilidades. é por isso que usamos sapatos pesados.

vestimos as mesmas roupas de sempre, sim, mas os nossos olhos estão vermelhos e os nossos dedos engelhados. por dentro, como moby dick, trazemos destroços de muitas marés e até outras pessoas que nos incomodam tanto como as pedras nos sapatos dos gigantes. mesmo assim, somos fortes, só podemos ser. gostamos de rasgar páginas de diários e de gritar ao telefone. gostamos de fazer as coisas certinhas, mesmo que nos achemos terrivelmente ineficazes perante a rapidez do mundo que queremos apanhar. nada é como dantes, tudo bem. mas as coisas novas também são muito boas.

mesmo que nos perguntem como é que podemos ser assim, nós não vamos responder. por muito que pensemos nisso, não chegamos a encontrar uma resposta satisfatória, nem para nós nem para os outros. dizem-nos para não pensar muito, para viver, que é mais fácil. mas se temos estado sempre a pensar, difícil é mudar de ramo. para mim, viver é qualquer coisa de longínquo e inantingível, um avião sem aeroporto. nada é como dantes, insistes, e eu sem ver bem o que te possa responder. saio de casa como quem entra, de pés sujos e olhar cansado. foi aqui que nos deixaram, no capítulo anterior, o que ficou por escrever.

sexta-feira, novembro 19, 2004

tens um blogue, não é?

já é tarde e eu ainda aqui, de casaco vestido, os olhos chorosos, como sempre, os lábios mordidos pelos dentes, tão perfeitinhos, o som das vozes, todas a falar ao mesmo tempo, todas a repetir as mesmas coisas, já é tarde, podia haver música, podia haver mais chá, chávenas mais bonitas sobre a mesa, podia haver sol, podia tudo ser de outra maneira, menos os teus olhos, tão abertos e calmos, do outro lado da mesa, menos os teus dedos, agora quietos e desejáveis, como uma maçã, despreocupada, que encontrássemos na árvore do jardim do paraíso.

lá fora está frio e eu esqueci-me de trazer o meu cachecol. quantas semanas demoraríamos deste café até ao fim do mundo se fossemos a pé? penso nestas e noutras perguntas idiotas enquanto os meus olhos páram em frente aos teus. ficamos sérios até que a nossa pele ganhe um tom corado e depois sorrimos e regressamos à confusão de vozes umas em cima das outras. voltamos sempre aqui, os amigos. podia haver música e podia não ser já tão tarde. podiamos ter todo o tempo do mundo e estarmos esquecidos de que a existência de deus importa alguma coisa. podíamos apanhar um avião com hospedeiras que "hablassem espanhuel".

encolho os ombros enquanto te vejo ir embora pela calçada, sem sequer um olá. os amigos sorriem entre nós. eu encolho-me do frio, fecho o casaco, e discorro mentalmente sobre as virtudes do tempo e da solidão. apresso-me a encontrar-te defeitos para não cair na mesma velha história de ter um fraquinho por alguém. sei como são frágeis todas as decisões que consigo tomar por mim e aprendo muito devagar que os outros são tão frágeis como eu. já é tarde e eu ainda aqui.

terça-feira, novembro 16, 2004

didáctica da escrita- um plano

entretanto, começaram a perguntar-me se aquilo que eu escrevia já tinha, alguma vez, acontecido mesmo comigo. a minha primeira reacção é o silêncio. tenho sempre a necessidade de acreditar que, naquele momento, vou dar uma resposta totalmente original. ou melhor, tenho a certeza que não sei o que dizer e por isso, não digo nada por uns segundos, como que à espera de que aquela pergunta se vá embora. mas a pergunta fica. começaram a perguntar-me isso há muito tempo, quando eu ainda não escrevia. o que não deixava de ser estranho.

talvez se deva então à antiguidade da pergunta que eu nunca pûs a hipótese de deixar de escrever quando me a fazem. depois do silêncio, balbucio umas quaisquer palavras, meio à sorte, sem convicção. a maior parte das vezes garanto que nada do que escrevo aconteceu comigo. nada, de certeza. outras, acredito que sim, que a minha vida não é a vida desinteressante de um solitário sentado em frente a uma secretária, com a televisão ligada num programa mau. que a minha vida são todas as coisas terríveis que acontecem às pessoas que habitam os meus textos. de uma ou de outra maneira, sem convicção.

mas depois também que interesse poderia ter alguém que levasse uma vida cheia de aventuras a inventar como personagem um escritor gordo e solitário? provavelmente nenhum. é uma das coisas que as pessoas cheias de aventuras não fazem, perder tempo com coisas desinteressantes. então ando eu a correr pelos campos e encontro alguém que me pergunta pelo escritor gordo. eu sorrio, calado, e conto uma história, para distrair o oponente. noutras vezes, quando não me perguntam nada, eu chego até a acreditar que o escritor deixou de existir. mas assim ficaria sem ter o que viver.

segunda-feira, novembro 15, 2004

amigos escritores II

ele agora passa a vida a escrever romances. sim, é verdade. deixou crescer a barba e veste sempre camisas engomadas por uma criada que ele encontrou ninguém sabe como. um dos amigos viu-o passar na montra de um café da parte central da cidade. anda muito concentrado e nunca responde aos telefonemas que lhe fazemos para o telemóvel. outro dos amigos deixou-lhe uma mensagem e na resposta, escrita, veio a notícia dos romances. e é por isso que ninguém o vê.

fartou-se de lisboa. fartou-se da europa. ouviram-no dizer que vai para a angola. porque lá se ganha mais, trabalhando-se muito menos. diz ele, talvez seja o único a acreditar nisso. vai para angola escrever romances. talvez se lembre do pai, que foi para angola matar pretos. talvez se lembre da mãe que ficou por cá a limpar a cozinha e, de um dia para o outro, estava a caminho de espanha com um amigo do tio. voltou branca como a cal, calada, louca. uma semana. foi só uma semana. ele na casa da avó, sempre a mesma história. mas agora ninguém o vê.

um destes dias, está prometido, vamos ver o nome dele numa montra, não de um café, mas de uma livraria qualquer. diz que vai ser um romancista africano. que assim vai ser mais facil vender livros, talvez consiga publicar numa colecção de autores exóticos. está toda a gente farta de meninos de lisboa filhos de pais que mataram pretos. agora toda a gente quer engomados de luanda. é o que ele diz. agora que já ninguém o vê.

sexta-feira, novembro 12, 2004

coisas que acontecem

volto ao mesmo tema, o que é preciso para se escrever uma história? não sinto nenhum inspiração divina a cair-me sobre os ombros e não tenho entrevista marcada com as musas. a angústia da influência não se me apega, quanto muito, diria eu, uma angústia da inexistência, isso sim, sinto muitas vezes, mas aí já estaria a falar mais do que da escrita. o que é preciso para escrever uma história é caneta e papel, diria um cínico. depois, alguma dose de imaginação, uma forte disponibilidade para se trabalhar e ser-se chato. sim, ser-se chato. porque só os chatos contam as suas histórias até ao fim.

a outra solução é fazer as coisas ao contrário daquilo que é, habitualmente, a ordem das coisas. por exemplo, falar em público assumindo os nossos erros e temores. não há nada que espante mais a audiência do que um potencial especialista falar da sua investigação com o corpo retorcido e as frase "não sei se percebo muito disto" a aparecer por entre o discurso. reacção, a aproximação. as pessoas ligam imediatamente o atentómetro, para perceber se não estão a perceber o mesmo que o outro. não é bonito, mas resulta. digo-vos eu, que não percebo nada do assunto.

e depois é tentar, tentar sempre, evitando a todo o custo, não os obstáculos, a desistência. algures pelo tempo em que nos matamos a escrever ou a procurar a história ideal para um romance, o telefone toca, alguém nos escuta, alguém pensa em nós. é assim que acontece. e, quando isso não acontece, pensamos nós em alguém, vamos atrás, como nos filmes. sim, nos filmes. não têm visto isso acontecer? e pensavam que era só nos filmes... não. mais uma vez, começo a falar de uma coisa e acabo a falar de outra completamente diferente. é o que acontece quando se escreve uma história.

terça-feira, novembro 09, 2004

lamentavelmente

há luz dos meus parcos conhecimentos da maneira de se fazer o amor com sucesso, digo-te, deste imenso silêncio em que me encontro isolado, que um sopro, por mínimo que seja, pode influenciar todas as rotas do mundo, assim como pode arrepiar o mais sensível dos barbudos. digo-te isto e peço-te que não o guardes como segredo. agora levanta-te desta cadeira que te ofereci e parte à volta do mundo e das idades a dizer, à luz dos teus parcos conhecimentos, das maneiras de se fazer o amor.

sorri, sim, sorri, porque é essa a maneira de se fazer agrado ao senhor que nos estende a mão. e embora saibas da tua pequenez, da tua pouca razão enquanto é tempo de se fazer a vida de adulto que nos prometeram há tantos anos atrás, tens agora consciência de que esse sorriso, esse parco e frágil sustento das faces nos lábios hirtos, pode fazer desvanecer a grande pose do mestre. e depois dos estores terem sido descidos, de todas as luzes quase apagadas, o que conta é o movimento ágil da juventude, não o trôpego insucesso do traumatizado.

e no momento em que se arrastam os pés pelas colchas mas lavadas dos andares onde já não bate o sol, no irrespirável re-movimento das meias caídas junto à mesa de cabeceira, enfim, provas o sabor mais que amargo de um sémen desnutrido e infértil. a boca cheia de água, pensas, tenho a boca cheia de água, e esse amargar constante a apertar-te a vida no nariz. o mestre, eu, fica deitado, adormecido. e ordena-te, ordeno-te, vai, vai ver o mundo. lá fora alguém espera para te restituir a doçura.

sexta-feira, novembro 05, 2004

restos

sempre ouvi dizer, diz-me com quem andas, dir-te-ei para onde vais, assim, sem menos nem mais, dizia-me isto o meu pai, ou talvez a minha mãe, o que eu sei é que sempre ouvi dizer isto, chegasse tarde ou cedo a casa, tivesse ou não boas notas nas escolas, sempre a mesma lengalenga, sempre o mesmo ritmo de verso alexandrino em região demarcada, tra la la la la tra la la la la, pronto.

por eu não querer ficar preso aquilo que sempre me prendeu, deixei de visitar o lar de idosos onde ele acabou por ir parar. e depois disso, afinal era a minha mãe, constantemente, para quem muito erra, longa se torna a espera, e eu querer doçuras, e o errar logo ali, e eu a querer ternuras, e o sémen a escorrer-me dos dedos no exacto momento em que a porta a abrir-se e, tra la la la la tra la la la la, pronto.

arrumado a um canto, eu exigo o meu re-tratamento, uma solução pensada pelas grandes potências ou um abraço que me seja dado durante a noite, por um desconhecido, no escuro do meu quarto. é assim que eu faço por ver o mundo, agora que me deitei no silêncio. a quem quiser saber de mim, não precisa de ir à américa ou ao fim do globo terrestre. basta seguir o meu canto, à minha casa na duna.

terça-feira, novembro 02, 2004

my fellow american

i do masturbate, diz ele em inglês correcto e corrente, no final de um dia de chuva, à porta do tribunal fechado. já é longa a noite, eu sei, mas todos os copos que bebemos fazem-nos sentir ainda muito despertos. há, em pano de fundo a esta cena, uma música que se ouve muito ao longe, uma música que não conseguimos perceber se existe ou não.ainda assim, seguimos esse rasto.

i do masturbate, tudo bem, eu também, se é isso que queres saber, digo eu na minha insistência para não perceber nada daquilo que me queres fazer entender. pergunto-te pelos jogos da nba ou pelas regras do baseball. tento falar-te de política externa, mas já é um pouco tarde para isso, não é? ainda assim seguimos juntos, nesta festa de embriaguez sem destino. é para isso que servem os amigos, diz-se no meu país.

i do masturbate, e se isso não é uma insistência nenhum, então pareces-me um bocado cínico. a música já não toca para lado nenhum desta cidade, é cada vez menos perceptível a razão de estarmos juntos. trocamos os pés um do outro e já não há risadas, só indisposições. enquanto um pára para vomitar, o outro perde-se de sono. talvez amanhã de manhã já ninguém se lembre disto.

sábado, outubro 30, 2004

cadeira

desta cadeira áquela são doze passos, doze passos que eu ainda não aprendi. é preciso saber vigiar a nossa vontade, dizem. eu finjo não ouvir e olho a cadeira do lado de lá, penso, do lado de lá da minha vida. junto de cada cadeira há sempre uma mesa, prevejo, incerto. não tenho jeito para generalizações universais sobre os objectos, tenho consciência disso, disso e dos doze passos, daqui ali, daqui a já ali, poderiam dizer.

em muitas outras ficções entraram cadeiras. pode-se dizer que as cadeiras fazem parte da história da literatura. sim, é aceitável. embora não fosse aceitável imaginar, num qualquer livro que pretendesse explicar essa história às criancinhas, um capítulo intitulado "Cadeiras". ainda assim, arrisco, em muitas outras ficções entraram cadeiras. embora já tenha as minhas reservas em pensar que poemas aceitem de bom grado a presença de cadeiras. toda a poesia do mundo está nestes doze passos, daqui ali.

quantas vezes eu pensei e repensei o que te dizer, no instante em que me fosse possível, fazer os doze passos do amor. enumerei-os à exaustão dentro do meu pensamento, o lugar onde sempre me perco. quantas vezes eu pensei, é agora, já ali. e quantas vezes interpretei na tua face a reprovação do meu avanço, mesmo quando ainda nem tinhas dado pela minha presença. quantas vezes eu olhei para um livro, a disfarçar. e fiz, das quatro pernas das cadeiras, base de um poema, doze passos.

quinta-feira, outubro 28, 2004

última visita

I
antes de tudo, era o livro esquecido pelo pai sobre a mesa da sala. a curiosidade calada de o abrir, sentir-lhe o cheiro. a surpresa de só lhe ver letras, não desenhos. antes de tudo, a descoberta. as perguntas que sempre fazemos sem que ninguém nos responda.

II
à procura incessante do crescer, deram-lhe um nome. pegou na folha em branco e sussurraram-lhe, agora és escritor. com o orgulho da primeira barba no queixo, passeou-se pelos corredores da escola, exibindo as letras. sim, cresceu. e a primeira vez que o leram, na sua cabeça explodiram vergonhas e estremeções que nunca soubera dizer.

III
depois a gente habitua-se. misturam-se os cafés com as palavras, os passeios a pé em dias de chuva e as entradas em cinemas onde estamos sós. depois a gente habitua-se, ninguém à nossa volta, toda a nossa boca cheia de um silêncio nos ouvidos. depois a gente habitua-se, o nosso nome no jornal, na montra de uma livraria. e quando a gente, finalmente, se habitua, o terror imenso de tudo aquilo falhar.

IV
um dia acorda-se todo suado, mesmo que faça um gelo no quarto. outro dia sem se conseguir dormir. o nosso nome em todo o lado, aos gritos, dentro da nossa cabeça. um dia acorda-se assim. e pensamos muito baixinho: há um escritor em mim que morreu.

V
pouco adiantam os telefonemas que nos dizem a nossa falta. de nada servem as cartas que vão ficar sem resposta. só assim se consegue dormir, voltar a sair à rua. mata-se o medo por antecipação, escorrida a tinta sobre todas as folhas em branco da casa, escondidas as canetas. nem a lista de compras se volta a fazer. o medo, ali, morto na nossa prateleira.

VI
desce agora obscuro pelas escadas do seu próprio prédio. os vizinhos dão-lhe os bons dias com um aceno e ele compra o pão normalizado entre uma bica e o jornal da manhã. uma criança sorri-lhe enquanto a mãe a puxa para a escola. o céu é azul, sim, porque quando se sai da ficção o mundo retoma as suas cores. sobe agora as escadas do seu próprio prédio. em casa, cheira-lhe a paz.

VII
e ao sétimo dia, descansou.

quarta-feira, outubro 27, 2004

não há chão para os meus olhos

eu pensava na cor que tinham as tuas janelas quando chegavas perto delas. sim, eu era o rapaz que passava os dias do outro lado da rua, a olhar o céu que era a possibilidade de te ver chegar. fizesse chuva, vento ou frio, eu ficava lá, à espera. nunca soube ao certo o que pensarias de mim, embora me pareça garantido que te tivesses apercebido do eu sempre ali. quando deixei de te ver, pensava em ti.

comprei alguns livros para me conhecer melhor. livros de auto-conhecimento, filosofia barata. sentei-me em bancos de jardim a folheá-los. procurei as palavras que me explicassem, para poder pousar os dedos nelas. os livros cheiravam a novo, como nada na minha vida. pensava, ainda, nos teus olhos, os teus olhos de terceiro andar. comprei os livros na esperança de, conhecendo-me por dentro, pudesse trazer os teus olhos até mim. de cá de dentro.

passam anos e anos sobre as coisas que amamos na infância. sim, é disso que se trata. um dia, tu passas por mim na rua, encontramos pessoas que pensávamos até já nem existirem. mas ainda tu. quando os livros ficaram esquecidos por onde não sei, o cheiro de novo esquecido, apagado. eu mais crescido, o brilho dos teus olhos que se desvanecera. não, não fiquei contente. mas lembrei-me de coisas que eu pensava já não existirem na infância.

sexta-feira, outubro 22, 2004

tem que ser bom

mas tem de ser bom, ouviste, tem de ser bom, porque senão, é pá, não vale a pena, tem que ser bom, tem que ser melhor, diferente, no mínimo, diferente, pensar que, agora vai tudo correr bem e podermos sorrir muito no fim, os dois deitados num sofá manhoso com as tuas amigas a falar alto na cozinha, coisas que nenhum de nós percebemos muito bem, tem de ser bom, estás a ouvir, tem de ser bom, porque senão não vale a pena.

temos que ser os dois, temos que ser capazes, porque já estamos demasiado velhos para podermos achar que vamos ter tempo o resto da vida, para provar o que fôr que quisermos provar enquanto formos novos, porque sim, já temos cabelos brancos, porque sim, já nos caem os cabelos, sim, já temos dores que cheguem, e não gostamos nada de ficar parados à espera que venha a chuva, assim, temos que ser os dois, tem que ser bom.

e depois acenderemos cigarros e ouviremos vizinhas velhas a gritar às janelas, escreveremos poemas como se bebe vinho, dançaremos sem nos levantar do chão, ficaremos a olhar os olhos um do outro e a pensar, tem que ser bom, as tuas amigas a passearem à nossa volta como uma procissão de velas, a cera a demarcar um círculo à nossa volta, aliás, tem que ser bom, só pode mesmo ser bom.

o eterno problema dos carteiros

o eterno problema dos carteiros é não saberem onde guardamos o nosso amor. olham os envelopes com os bigodes espantados e acariciam-nos, violentamente, com carimbos de regresso à solidão. estão fechados em casas de janelas vermelhas e saem à rua de farda. pisam o chão com a mesma decisão de um exército perdido na batalha anterior. e tocam, tocam muito, às campaínhas de quem não está.

o eterno problema dos carteiros são os sacos sem fundo onde a nossa letra se torna irreconhecível de tão escuro. os selos abraçam-se e fogem para o paraíso dos selos, as letras dançam ao sabor do esquecimento e não se sabe nunca onde está o remetente e o destinatário. nos gabinetes, uma vez mais, bigodes sisudos e derrotados, têm os dedos feios e duros ao toque. eu não poderei nunca saber, mas juro que os envelopes choram.

o eterno problema dos carteiros é não terem asas para subir às janelas das amadas, que se penteiam longamente em frente aos espelhos velhos das avós. não puderem ser anjos anunciadores, nem mágicos, navegantes, descobridores. e talvez lhes pese o bigode insólito e burocrático, o pêlo encravado sobre o lábio. eu continuo a lançar envelopes em branco da varanda.

quarta-feira, outubro 20, 2004

paragem de autocarro

ele dizia que estava cansado da vida, tudo bem, podemo-nos cansar de muitas coisas, da vida também, é claro, mas ele estava sempre a repetir-se, a dizer o mesmo, a pensar nas mesmas coisas, e claro, acaba por se cansar ainda mais da vida e tudo e de mais alguma coisa que aparecesse. ele era assim. muita gente lhe dizia que ele tinha que mudar. outros, menos radicais, mantinham-no sentado.

ele andava sempre vestido de encarnado, dizia que assim espantava o mal, que era para correr menos perigos. os amigos dele aceitavam a extravagância, vá-se lá saber o que esperar de um louco a quem se nega uma vontade. embora aquela cor lhe trouxesse, muitas vezes, amargos de boca, parecia ser a única coisa que o fazia sentir bem. de encarnado, eu engano o meu destino, sussurrava ele. enquanto não aparecer um touro, pensavamos nós.

a última dele foi pensar que poderia ir a pé até a qualquer ponto do mundo. bem, a última, espalhada pelo tempo, se bem me compreendem. começou por ir a pé ao supermercado, depois a uma cidade próxima. cada semana tentava chegar mais longe. para lá, ia a pé. comprovado o desafio, voltava de autocarro. quando o conseguio fazer até espanha, começamos a ficar preocupados. onde é que isto vai acabar, perguntávamos uns aos outros. ele sempre a tentar ir mais longe, até que desapareceu. onde é que foi? a algum sítio onde não existem autocarros.

terça-feira, outubro 19, 2004

eu não conto a ninguém

lembro-me do tempo em que ficavamos em casa, de face encostada na janela fria, a ver a chuva a cair lá fora. era outubro e as casas todas castanhas. sentíamos sobre o telhado a água que escorria, a minha mãe a sussurrar o algeroz estragado, o telefone a tocar e a dizer o pai não vem jantar, tinha o trabalho, tinha a estrada cortada, a nossa cara encostada na janela fria, as constipações, os chás quentes, as mãos que se tocavam, uma na outra, as casas lá fora castanhas, castanhas assadas a queimar como as carícias cheias de timidez.

lembro-me de quando os casacos nos abraçavam como um colo de gigante e nós sorríamos escondidos debaixo das golas peludas, com gorros a taparem-nos os olhares sempre cúmplices. era outono e saímos para ir à escola e para visitar a avó, sempre a copiar os passos um do outro, os teus cabelos negros a tingirem as nuvens e os meus olhos envergonhados a contar os quilómetros imaginários do vento. as estradas estavam tingidas de folhas secas e molhadas das árvores, eu chamava o teu nome baixinho, como o vento.

lembro-me de ser a meio da noite, de ouvir chamar baixinho, enquanto no quarto ao lado a mãe a rezar pelo algeroz, o telefone que tocava e dizia o pai não vem ficar a casa, um cliente lá longe, as estradas cheias de água, fica na pensão, no hotel, quando fôr fim-de-semana prendas para todos e palavras de quem sempre lá esteve, ouvir chamar baixinho e os lençõis a levantar, a tua mão na minha cara, um beijinho, era a meio da noite, outono, castanho, negros, os teus cabelos, a chuva lá fora, longe como o frio.

sexta-feira, outubro 15, 2004

fugir

não sou um fugitivo e portanto, não vou fugir das coisas certas, não, vou fazer o que tenho a fazer, custe o que custar, andar para a frente, onde é o caminho, seguir por onde fôr preciso, acompanhado ou sozinho, porque não, eu não sou um fugitivo.

eu não sou um fugitivo, não vou deixar de dizer nem de falar, não vou deixar de passar à tua porta, de dizer adeus quando estiveres a fumar cigarrinhos à varanda, não vou fingir que não te conheço, nem que tenho um monte de novos amigos melhores que tu, não, eu não sou um fugitivo.

eu não sou um fugitivo, o meu carro nem sequer é rápido, nem eu sou muito de correr, não vou passar para o outro lado da estrada, não vou acelerar passo para apanhar autocarros, não te vou ligar a meio da noite a pedir-te para mim, não vou fazer as malas, não vou fechar as portas, não vou, porque eu não sou um fugitivo.

quinta-feira, outubro 14, 2004

invenção

queria conseguir inventar uma história para botar um homem dentro, um homem que fumasse calado em frente à janela de uma sala cheia de muitas vidas, muitos anos, muitos dias. queria inventar uma história, ou talvez só fazer uma música, onde um homem pudesse vestir o seu casaco e sair sossegado, de olhar pela calçada, a comprar o jornal e a tomar um café, a dizer um bom dia quotidiano aos conhecidos e a falar de futebol com a calma de uma pronúncia alentejana.

queria conseguir inventar uma história, mas não pego numa caneta. recosto-me mais no sofá e coloco um cd a tocar - calmo, suave. olho de novo o homem, calado. segue para casa, ou talvez não bem para casa, segue para o clube, vai jogas às cartas, vai gozar as piadas de um amigo, vai descansar as pernas debaixo da mesa do xadrez, das damas. vai olhar a televisão e as fotografias velhas nas paredes. vai dizer que se lembra deste e daquele. e vai sorrir.

queria ser capaz de inventar uma mulher, para fazer a história do homem. uma mulher não chega para uma vida, uma vida são semanas e semanas de angústias, felicidades, pequenas alegrias, carinhos e vitórias do benfica. gostaria de ser capaz de inventar a fragilidade e as palavras curtas que se dizem quando se apaga a luz do amor. e nem vale procurar dicionários nem enciclopédias, não é preciso saber quase nada deste mundo. um homem e uma mulher, sem conseguir fugir de um sorriso, quando se olham. queria saber inventar.

terça-feira, outubro 12, 2004

carta de segunda-feira

as mãos suspensas sobre as pernas, de frente para a fotografia, uma cara infeliz para sempre metida dentro da moldura, a descendência a dizer que eras tão feia, e assim fica para a posteridade um negativo do que foste em vida, uma sinfonia orquestrada para me matar o coração a cada encontro, uma beleza depurada pelas palavras que sempre me oferecias, um segredo feito só nosso, sem remetentes no futuro.

no dia do teu enterro, eu fiquei sentado do lado de fora da igreja, a arrancar as pétalas de um malmequer que apanhei de um jardim. as pessoas não me dirigiam a palavra, sequer, tal deveria ser a minha cara de terror perante a solidão em que me deixaste. ao mesmo tempo que digo isto, relembro que quase ninguém estava consciente desse grande amor. então, ninguém me falava, porque ninguém me conhecia. ninguém sabia o que eu estava a fazer por ali.

agora são onze horas da manhã, de um dia muitos anos depois. estou velho, muito mais velho do que o velho que era quando te foste. esta manhã vi-te a passear pelo jardim, de mão dada comigo. sim, foi muito dificil perceber que a tua neta, a tua Carminho, como lhe chamavas, é agora uma mulher como tu eras, e talvez levasse pela mão o mesmo segredo a que tu me deixaste pertencer. escrevo-te.

sábado, outubro 09, 2004

assim como um postal sem destinatário

é melhor ficar por aqui, não ir a mais nenhum lado, pensar: que bom é estar aqui sentado a ouvir a chuva a cair, pensar: que bom é saber que tu existes e ter a idade de todas as cobras venenosas, olhar à minha volta e saber, pertenço a estas paredes, pertenço a estes objectos, e tal como eu preciso deles, eles precisam de mim, é melhor ficar aqui, não ir a mais nenhum lado, pensar: enfim, o amor, essa coisa que nos liga.

deixar que o telefone toque até parar, deixar que o telefone toque sem atender, pensar: sei quem tu és e eu não estou, pensar: sei para onde vou mas não sei como te dizer, e depois todos aquelas recordações a caírem nos meus pensamentos como moedas em telefones públicos, os meus pés a balançarem na cadeira, a chuva nos estores, deixar que o telefone toque até parar, deixar que o telefone toque sem atender, pensar: enfim, a dor, essa coisa que eu sei dizer.

dizer em voz alta que o tempo acabou e que tudo o que eu sei é que não há canções que te definam, pensar: ainda por cima tens os cabelos a escorregar pelos ombros, eu sei disso, pensar: estás longe demais e eu demasiado perto de já não ser mais ninguém, acabou enfim o relato de tudo aquilo que ficou por contar, o que vai restar é uma memória repetida à exaustão nestas tardes, nestas cadeiras, onde eu, a dizer em voz alta o tempo acabou e que tudo o que eu sei é que não há canções que te definam, pensar: enfim, haverá sempre uma estrada.

quinta-feira, outubro 07, 2004

atrapalhado

Ensaiámos sinfonias de carícias quando ainda só palavras nos podiam sorrir e acabamos muitas vezes por adormecer ao som dos vizinhos que partiam para o trabalho. Fizemo-nos andar de olhos vermelhos pela rua e adormecemos, outras noites, nos braços incrédulos de quem mais nos ama. A tudo isso dedicamos um silêncio escrupuloso, desenhando outras notas nos cadernos de música amarelecidos. Enfim a sorte, ou o automóvel, ligou-nos os dedos como se cosem meias: com linha forte e para sempre. Agora dormimos noites pelos sofás, sinais de camas proibidas, e aceitamos os erros um do outro, quando nada se aceita de um amor. Para não cairmos em tentação, fechamos os olhos e olhamo-nos em intermitência.

sexta-feira, outubro 01, 2004

peregrinatio ad loca infecta

volto à velha casa que pertencia à minha infância, refaço o mesmo degrau que dá para a rua onde passam os carros, a porta onde o padeiro deixava o pão todas as manhãs. dou passos pequenos, para ter o gozo de ouvir a gravilha a estalar debaixo dos meus sapatos, comigo vem a Rita, aqui uma intrusa, como se fosse possível entrar na infância de alguém que não nós, por intermédio de um regresso. finjo que procuro nos bolsos as chaves da porta, aquelas chaves que olhava a noite passada quando adormeci, que toquei sempre que parei o carro num cruzamento, num sinal. "era preciso vir aqui, para poderes ser homem?", pergunta-me a Rita na língua das crianças. eu aceno com a cabeça e ela percebe. foi aqui que eu comecei a ser homem, o homem em que muitos anos depois me tornei.

o corredor da casa mantém os mesmo móveis de sempre, agora velhos, a ameaçar cair. a cada três passos, portas à direita e à esquerda, num total de seis divisões. ao fundo, a casa-de-banho. primeiro trecho: à direita, o quarto dos meus pais. o quarto fechado dos meus pais. onde havia as roupas e a cama. pequenos armários nas cabeceiras, do lado do meu pai um candeeiro, do lado da minha mãe o retrato da família. engraçada, a simbologia. ao pai, a ordem da luz. à mãe, a guarda do mistério familiar. à esquerda do corredor, o meu quarto. o quarto meu e dos meus irmãos. éramos quatro rapazes de olhos tristes e cara caída no chão. costumávamos correr pela aldeia, um pouco sem destinho. depois de jantar, de pijama vestido, ouvíamos rádio deitados na cama. era esse o único mobiliário do nosso quarto. quatro camas e um rádio.

segundo trecho: à esquerda, o escritório do pai. a casa da papelada e de alguns livros. onde ninguém podia entrar. só a mãe, uma vez por semana, para limpar o pó que nunca deixava de se acumular. espreito, só, ainda a medo. noto várias garrafas de licor numa das prateleiras. quem lavaria os copos? do lado esquerdo, a sala. um sofá, uma pequena mesa. onde a mãe recebia as tias, conversava. onde depois houve uma pequena televisão, muito rouca, vinda de casa de um primo que já as teria a cores. onde nunca aconteceu realmente nada de interessante. terceiro trecho: a casa do costura e das nossas roupas, de todas as nossas roupas. ao meio a casa-de-banho. à esquerda a cozinha. uma mesa corrida contra a parede, a todas as refeições arrastada para o centro, encenando a sagrada família. era a cozinha que dava cheiro à casa, a minha mãe em volta do fumo do fogão. entrávamos em casa e tentávamos adivinhar o que seria o jantar. era sempre sopa de qualquer coisa.

a Rita segue atrás de mim, segurando-me na mão, percebendo o silêncio necessário a esta peregrinação. páro a olhar na janela da cozinha, a que dá para um pequeno quintal cheio de ervas. ela enconsta-se nas minhas costas com as mãos sobre os meus ombros. aperta-os levemente, percebendo a minha tensão. "foi aqui" e aponto para o quintal, bem no fundo, junto ao muro. caem-me lágrimas. a Rita abraça-me e eu tenho medo. foi aqui, foi aqui mesmo, onde a vida das ervas daninhas ainda não acabou. respiro fundo a sujidade desta casa. entre irmãos, acordámos deitá-la abaixo e vender o terreno. só eu tive a necessidade de ainda vir ver aquilo que restou do que todos nós nos queremos esquecer. certas coisas, é bem melhor viver sem elas.

terça-feira, setembro 28, 2004

desempregados

os desempregados telefonam-se uns aos outros para dizerem que continuam na mesma. dormem até tarde e esperam, em mesas de café, pelo telefonema milagroso que lhes vai oferecer férias na caparica e jantares em restaurantes com sport tv aos domingos à noite. lêem e relêem os jornais para ver anúncios de empregos previamente atribuídos. é isso que os desempregados fazem. contas à vida.

a maior parte das vezes andam com livros debaixo dos braços e caminham a pé, durante imenso tempo, pelas ruas das cidades. não parecem ter destino nenhum, e é isso que faz com que os restantes transeuntes os olhem de lado. normalmente infiltram-se em funerais ou outras festas familiares, só sendo notados pelo facto de usarem calções. são assim os desempregrados. despenteados e com a barba por fazer.

quando alguém lhes pergunta como vão as coisas, dizem sempre que está quase. têm sorrisos amarelos, mas isso não é uma questão de higiene. sussurram a alguns próximos que o livro deve estar quase aí, que existem editores interessados e muitas trocas de e-mails para todo o lado. enquanto isso, perdem-se na biblioteca a ler romances de fraca qualidade. são assim os desempregados. escrevem poemas antes de dormir.

segunda-feira, setembro 27, 2004

castigo federativo

olha o tempo, grita um velho desdentado da bancada quando caio ao chão, dois segundos depois de ter levado mais um monumental encontrão do criminoso que veste a camisa quatro do adversário. hoje estou farto de levar porrada. cada vez que a bola vem, seja por terra ou pelo ar, vem pau também, do lado contrário. e agora, com o jogo a chegar ao fim, com as pernas cheias de negras, ainda tenho que ouvir um velho bêbedo da bancada, olha o tempo. penso comigo, o tempo o caralho.
não me aguento e levanto-me, coxo, em direcção ao ajuntamento que se tinha criado junto à linha lateral. agora já corres, palhaço, grita o velho e já eu estou do lado de lá a espetar dois pitons no peito do fala barato. ataque à cantona em jogo regional, foi o título do jornal de notícias. o resultado foi uma ida à esquadra para identificação depois de ter sido salvo pela polícia de uma dúzia de alcoólicos de domingo em fúria.desta deve escapar-se, não se meta noutra, disse-me o agente de serviço. depois disto, bola só para o ano.
impulsivo sempre fui, como diz a minha mãe. agora andar a bater em velhotes, é passar das marcas. diz que tenho de me dedicar aos estudos, à namorada, a outra coisa qualquer. eu não lhe digo nada. agarro nos livros e vou com eles debaixo do braço para o café em frente à escola. bebo umas imperiais e olho para as miúdas. isto da pancada não foi nada, penso comigo. o que me chateia mesmo, é que me andem sempre a chamar a atenção. isso é que eu não suporto.

sexta-feira, setembro 24, 2004

depois do amor, só mesmo o amor

do lado de dentro do amor, uma rixa entre nós dois assombra-nos o acordar todas as manhãs. serás tu, serás tu? algo muito pior do que os pesadelos, algo muito mais pesado do que todas as contas para pagar sempre que tocam à campaínha e dizem, correio. do lado de dentro do amor, aquele lado onde nunca ninguém nos perguntou, juntos para sempre, onde há tempestado seja inverno, seja verão.
dói-me a cabeça quando são três da manhã e me apercebo que tens o rádio ligado e os óculos caídos para o lado de lá da cama. dói-me a cabeça e, já agora, o corpo todo, de estar assim a fazer medições inconscientes para não te tocar nesse teu sono de cristal. todo o mal-estar é uma forma de se estar. sim, mas a mim custa-me este pijama mais quente quando ainda há calor lá fora, só para não sentir a tua pele a suar contra a minha e o nojo que isso me dá se acordo às três da manhã, os óculos caídos.
porque a ti ainda te resta a ideia de que a poesia são só palavras, mas a mim falta-me tudo. se me ouvisses, ias voltar a dizer, exagerada, minha querida, és uma exagerada, recorrendo àquela voz de colégio inglês que passaste a usar para mim muitos anos depois de nos termos encontrado num jardim fresco de coimbra. eu sei que engordei e que nunca te dei os filhos que tinhas sonhado. mas também sei que nunca deixaste de encontrar os teus poemas noutras mulheres que passaram por ti. ambos sabemos disso. e ainda assim.
ainda assim, falo-te hoje do lado de dentro do amor. aquele que não grita na cozinha nem bate com a porta quando foge para ir tomar cervejas no café do bairro à hora do futebol. o lado que não faz renda na marquise quando há reuniões aos sábados de tarde. o lado que se deita contigo e que acorda às três da manhã. falo-te, estou partida por dentro. podes dizer, demoraste tanto tempo a chegar aqui, minha querida, mas eu sei o que me custou ter ficado também tanto tempo de dedo esticado a pedir-te boleia. ao menos hoje, diz-me boa noite.

quarta-feira, setembro 22, 2004

André Valente

o andré, pode não parecer, mas está sozinho no mundo. aqueles que ele considera amigos, aquele que ele faz próximos, estão constantemente a ir embora. a mãe, estando presente, não lhe dá a confiança que uma criança daquele tamanho, daquela idade, oito anos, precisa. andré, pode não parecer, mas está sozinho no mundo. o mundo dele, o lumiar. e ninguém ama tão intensamente quanto ele.

o primeiro a partir foi o pai. não lhe disse nada, apenas deixou a sua ausência lá por casa. depois disso, foia sua amiga da escola. aquela que o defendia dos outros garotos, os que o gozavam, os que lhe batiam. andré parece um adulto quando pensa (e muito do que o vemos é o seu pensamento), mas é uma criança muito frágil no mundo lá dele. a amiga vai embora e ele fica exposto. por fim parte Nicolai, um vizinho, adulto, que acabou por o maravilhar numa pista de gelo. todos partiram. o andré precisa de amigos.

andré não sabe dizer pensamentos. ele pensa e pronto. ele percebe primeiro que o namorado que mãe lhe trás para casa só lhe vai fazer mal a ela. ele percebe primeiro que o Nicolai não tem jantar em casa. ele sabe que, no mundo dos grandes, se não dermos a mão a alguém ficamos sozinhos. ele sabe que as pessoas vão embora. ele sabe dizer asneiras. o andré é um valente. mas não deixem o andré sozinho.

(andré valente é o primeiro filme de Catarina Ruivo. Em exibição nos cinemas)

segunda-feira, setembro 20, 2004

palácios de cristal em forma de coração sorridente

lar doce lar é onde nós guardamos as armas depois de fazer um longo caminho. ligo o leitor de cd’s quase no máximo e oiço um rock bem duro e abano a cabeça com violência enquanto pareço ver a guitarra a subir pela parede. “mathematically turning the page”. parece que a cada avanço na vida deparo-me com cruzamentos que levam a futuros que não são o meu. paro, respiro fundo e sigo. é assim que funciona comigo. com vocês não?

dou por mim a ter visões de bancos de pedra à sombra, sítios onde passar momentos doces dos meus dias. era isso que eu queria sempre, coisas doces e doces e doces, como um colo que nos dão sem nos exigir nada, como um colo que nos chama a dar colo e abraços e doces e doces e doces. dou por mim a sorrir e a chorar quando me lembro do meu cabelo a ser revoltado por uns dedos mais carinhosos que o mundo. dou por mim assim, de volta aos meus treze românticos anos. paro à beira do passeio e dou-te um beijo.

não se pisam uvas que já deram vinho, recebi eu uma vez um postal que veio do frio. sim, eu sei. mas o que descubro agora é que se faz a vindima todos os anos. e é sempre mais uva e vinho que vem e que vai. somos capazes de nascer de dentro de nós próprios, diz-me a doutora, eu olho-a e sorrio, sim, e se nos derem a mão e ela for quente como um coração que bate ainda é melhor. dizem-me, és mesmo homem, e eu sorrio, mais por dentro do que por fora. são estas pequenas coisas que me fazem pensar que eu sou bonito.

quarta-feira, setembro 15, 2004

olhos de velhinho

escondido atrás do armário, eu oiço os gritos bem lá ao longe, onde eu não consigo ver nada do que acontece. escondido atrás das portas, eu não me apercebo sequer do que está em discussão. foram só pés a pisar com força no soalho e gritos a estalarem ouvidos pela casa. eu, o de fora, escondo-me, não participante. figurante do filme errado, na cena errada. enfim.

nestes dias em que lá fora o sol brilha por entre nuvens que lembram o inverno, fico com olhos de velhinho, chorosos e frágeis. quando ando pela estrada custa-me perceber as indicações das ruas e dos bairros. finjo que domino os sítios e se me engano culpo o condutor da frente. o sacana não fez pisca, não deu para voltar. eu sou assim. nem sempre estou nas cenas erradas. só naquele dia.

escondido atrás do armário penso nas minhas coisas, na minha cabeça a dar horas, na bomba-relógio que podia ser a minha vida se, se ou se. é assim que eu faço as coisas, devagar e calado, em silêncio, a medir os passos pequeninos. e quando me gritam treme-me o mundo por baixo e fico de olhos de velhinho, como o sol de hoje, a espreitar por entre as nuvens do inverno.

terça-feira, setembro 14, 2004

o pai dela

eu sou todo ouvidos, disse-me quando puxou a cadeira para se sentar à minha frente. sou todo ouvidos - eu a ver as orelhas a crescerem sem parar, a ficarem do tamanho de pessoas, duas orelhas como se a pessoa crescesse para ser outras pessoas ainda. sentou-se e cravou os olhos na minha cara. segunda reacção : vermelho pela cara, um calor insuportável pelo corpo inteiro. penso para dentro: caraças, assim não vai dar.

são onze da manhã, estou enfiado no escritório do Dr. Curvelo, advogado conceitado aqui da terrinha. isso, por si só, não seria grande inconveniente. não, também não tenho problemas com a justiça. o Dr.Curvelo, para além de tudo aquilo que ele é, também é o pai da Luisinha. sim, a Luisinha minha namorada. sim, essa mesmo. portanto, estou no escritório dele e sou todo ouvidos, diz ele. já perceberam, pûs o pé na poça.

o que se passa é que a Luisinha chegou ontem à noite a casa, a chorar. normal, ela chora muito. mas o pai dela é um pai galinha. normal, muitos pais de meninas com dezoito anos são pais galinhas. o que não é normal é, quando o pai lhe perguntou o que se passava, ela ter dito, e ponho entre aspas porque foi mesmo isto que ela disse, o que não nada normal, "o cabrão do Tozé", repito, "o cabrão do Tozé", vocês imaginam a Luisinha a dizer isto? "o cabrão do Tozé" e porta do quarto trancada.

Tozé, preciso de falar consigo. foi isto que me disse o pai dela quando, hoje de manhã, me acordou pelo telemóvel. sim, porque a Luisinha tomou um comprimido para dormir e esta manhã até parece uma anjinha. sou todo ouvidos, olhos cravados, etc etc. gaguejo mais que todos os gagos do mundo. não se tinha passado nada. apenas a Luisinha com mais uma daquelas crises do entra no curso não entra no curso e eu que lhe disse, mas Luísa, tu já entraste, e ela nem me ouviu, gritou que eu quero sempre apressar tudo (confesso, outros assuntos) e foi a correr para casa.

é claro que eu não consegui explicar nada disto ao pai dela. eu só ga ga ga gue gue gue java e ele pôs-se com o seu discurso de cuidado que ela é muito sensível, você comporte-se como um homenzinho, que isto não volte a acontecer. saio do escritório a pensar que agora nem sequer posso acabar com ela (também não é isso que eu quero), que o homem parte-me em duas metades. ligo-lhe para o telemóvel, ela acorda sem se lembrar de grande coisa (o comprimido). digo, bom dia, meu amor.

segunda-feira, setembro 13, 2004

i'm just a man whose intentions are good

de onde vem esse silêncio onde te calas, pensa ela agora que a noite cai, de onde vem esse teu não atender nem entender nada do que te digo ou penso. abre a janela que dá para a rua estreita e acende um cigarro tirado de um maço que a mãe deixou sobre a mesa da sala. são onze e meia da noite e eu não sei de ti, pensa. estarás talvez agarrado a uma cerveja. talvez estejas a olhar para as pernas de alguma míuda muito nova que páre pelo café. deita o fumo fora como quem deita memórias tristes para longe.

um dia, dois dias, três dias inteiros sem uma mensagem. ela envia mas nada recebe. ele ausentou-se. ausentou-se como é costume fazer, sempre que não lhe fazem as pequenas vontades. tantas vezes coisas insignificantes como torcer o nariz a um filme que ele diz adorar. outras vezes dizer bem da simpatia do rapaz do supermercado. mas eu só disse que ele era tão educado. ele apressa o passo e desaparece pelo metro. ela fica dias e dias sem saber onde ele está.

bastava procurares no café ou em casa. foi onde eu estive. é o que ele diz, secamente, quando volta a aparecer. reage como se nada fosse, como se habitualmente ele não lhe enviasse mensagens a toda a hora. como se nada fosse significa nem sequer se lembrar de nada que pudesse ter feito eclodir aquela ausência. nada mesmo, não há nada para dizer, o que é que tu queres. ela baixa os olhos e pensa se não será tudo inventado dentro da sua cabeça. sempre com mariquices, o raio da rapariga.

domingo, setembro 12, 2004

os ciúmes de petra

verónica decidiu morrer mas petra prefere ficar sentada, na paragem do autocarro, quando são sete e pouco da tarde e ela sabe que a carreira 17 parará por ali em segundos. agora é como rezar o terço, missão dia a dia cumprida, naquela mesma hora sagrada do seu amor sair do emprego. a primeira vez foi por acaso. passava ali vinda do supermercado e vê-o despedir-se de uma rapariga bem jovem e atiçada com um beijo muito perto dos lábios. demasiado perto. chegou-se junto deles e disse olá.

o amor está cheio de demónios e casas desfeitas. petra gostava de legos quando era pequena e ainda hoje tem a mania das pequenas construções. mesmo aquelas que demoram anos a acertar as medidas, como a sua história com o amor da vida dela. ele sempre muito gel e barba feita só para ir ali ao café. ela sempre muito atrás dele. o namoro demorou o tempo que ele levou a perceber que ela iria ser para sempre a mulher que ia cuidar dele. ele pensava que ia ser tudo igual. ela sabia que nunca nada iria ser diferente.

agora passam as noites juntos a ver filmes repetidos no canal hollywood. ele vai enchendo e esvaziando copos de whisky, ela excita-se devagar com o bafo quente do álcool a exalar daquele corpo aos seus olhos perfeito. desde o dia do beijo do autocarro, ela segue-lhe ainda mais os passos e ele já percebeu que não se pisa ramo verde quando não se quer acordar a criança. trata-a bem, no seu intricado modo de ser homem. petra adormece a sonhar com princesas e castelos côr-de-rosa. a vida segue dentro do seu círculo habitual.

quinta-feira, setembro 09, 2004

H

agora que já não gostas de mim, faço carreirinhos no chão de terra que separa a minha casa do campo onde trabalho. faço carreirinhos andando com os pés a rastejar, como fazia quando era uma criança de cinco anos. os carreirinhos servem para atrapalhar a vida das formigas. se ainda não sabias, digo-te, é assim que funcionam os homens. se alguém lhes atrapalha a vida, eles vão a correr atrapalhar a vida de outra pessoa qualquer. neste caso, formigas.

quando são seis da tarde, é hora de largar o tractor. faço-me ao caminho a pé, de olhos no chão. antes de chegar a casa páro na adega do Lipas e bebo umas taças de vinho. quando faz calor, costumamos ter umas garrafas de branco no frio. quando está frio bebemos o tinto das pipas. as pipas do Lipas, engraçado, não é? dantes bebia pouco. agora que já não gostas de mim bebo até me fartar. é assim que funcionam os homens. bebem para esquecer.

ao chegar a casa a minha mãe costuma ter o jantar pronto. tomo um duche rápido, como, saio para o café. bebo umas cervejas, jogo às cartas, vejo a bola na televisão. sim, a vida é sempre igual. agora às sextas-feiras o Manequinhas do café mete filmes de putas. espera-se que saia a clientela toda e filme de putas. fico lá eu, ele e mais uns cinco ou seis. cada um dá 2 euros por mês e filmes de putas todas as sextas, às vezes ao sábado, se não tiver ninguém no café. é assim que os homens funcionam, quando deixam de gostar deles. putas.

quarta-feira, setembro 08, 2004

fim do mundo

no outro dia ligaram-me do fim do mundo. alô, alô, não se ouve nada. era uma voz desconhecida e que parecia me insultar. eu tentei não me preocupar muito, afinal quem é que se vai querer meter com um gajo como eu, hein? eu sou um tipo forte, bem parecido, conhecido, reconhecido, vencedor. toda a gente gosta de mim, tenho a certeza. ligaram-me do fim do mundo e não deixaram recado.

depois, voltaram a ligar. eu disse que não estava a reconhecer o indivíduo e que não queria conversas. para quê? mas ele insistia e dizia, vou-te matar, vou-te matar, estás lixado, estás fodido. não se ouve nada, dizia eu. e ele repetia, que repetia, que repetia, e depois desligava. no silêncio ainda eu ouvia um rumor qualquer. depois, voltaram a ligar.

então eu pensei, e se eu fizesse disto um caso para a televisão? eu sou um gajo cheio de ideias, cheio de imaginação, podia lixar o tipo do fim do mundo dizendo que me estavam a ameaçar, ia à televisão, chorava, fingia que estava a fugir, falavam mais de mim, tinham pena de mim, diziam-me força zé e davam-me palmadinhas nas costas. mas o cabrão do fim do mundo não me matou, e acabou por me lixar através desta minha ideia. então eu pensei...

sexta-feira, setembro 03, 2004

o tipo de poesia que eu ando a fazer por estes dias

as coisas simples nascem como as árvores. quando recentes, parecem crianças sem esqueleto, pequenos ramos trémulos e inseguros, sem cor. chegam junto dos nossos olhos e ouvidos, sussurram-nos desejos, abraçam-nos. as coisas simples, de pequenas, tornam-se grandiosas, imprescindíveis. as coisas simples são como as pessoas que amamos.

terça-feira, agosto 31, 2004

amparo

no dia em que o pai morreu, decidiu colocar um anúncio no jornal que dizia "apareçam todos os herdeiros, temos dívidas para dividir". pode parecer estranha, esta atitude, mas havia várias coisas que sabia do velho já há imenso tempo. primeiro, que sempre fora um pinga-amor. ou melhor. que na incapacidade de aceitar o amor que tinha para dar, acabava por o distribuir por diferentes famílias, algumas casas de mulheres sozinhas e ainda um ou outro filho de uma noite mais entusiasmada. a segunda coisa era que todo este esbanjamento de amor lhe trouxera grandes dissabores orçamentais. daí o anúncio.

o mais normal seria ser surpreendido no funeral por algum filho e uma ou duas amantes arrependidas que aproveitariam o último adeus para apresentar as unhas à herança. mas, com o velho já internado há uma semana no hospital, com os diagnósticos sempre sempre a piorar, decidira-se a procurar o advogado e o contabilista dele. tudo aquilo que já sabia agora confirmado. para herdar, só mesmo as dívidas. e decidido a não causar nenhuma emoção extra-funerária à mãe, que esperta como era sabia do mesmo desde sempre calada, e pusera mãos à obra, ou seja, anúncio no jornal.

escusado será dizer que grande parte dos esperados não apareceu. talvez já lhe tivessem dado um último adeus à mais tempo atrás. ainda assim não deixou de aparecer uma jovem desamparada e a sua pequena, em tudo parecida com o cabrão do velho que o caixão levava, a tentar amparar-se no filho aquilo que não conseguira amparar no pai. ele tirou debaixo do casaco preto uma cópia do jornal e deu-lha para mão. informe-se, disse ele. e lá se foram os amparos com o primeiro punhado de terra.

segunda-feira, agosto 30, 2004

hipocrisia

Tenho a sensação de ouvir um barulho de água ao fundo do corredor. Não sei o que te traz até mim, mas tenho a certeza do que me mantém longe de qualquer tipo de decisão ou de acção sobre o mundo em que nos movemos. Tenho a sensação de ouvir um barulho de água e sento-me no chão, escorregando com as costas coladas pela parede do meu quarto. Olho os meus pés descalços e tento perceber-lhes uma qualquer espécie de poesia. Muitos poetas escreveram sobre pés, sobre caminhos a fazer, caminhos que precisam de ser feitos. Eu não sei desses caminhos, mas tenho a certeza do que me mantém perto dos meus pés. Há uma extrema poesia nesta nossa proximidade. Gosto de os observar descalços. Como muitos outros homens, avalio algumas pessoas pelos pés. Gosto de os observar descalços. Raramente acho uns pés bonitos. De qualquer modo, seria incapaz de os tocar. Um sentimento de repugnância invada-me, associado a esse pensamento.

quarta-feira, agosto 25, 2004

o porco

o porco entra e sai de casa como e quando quer. o porco é assim. anda com as costas tortas mas tem os olhos sempre fixos no interlocutor. mesmo quando não consegue abri-los. o porco não caminha, pisa. pisa o chão com toda a raiva que deus lhe deixou nas marreca das costas e arrota. arrota pelas mesas limpas das casas das meninas que visita. o porco entra e sai quando quer. o porco é assim.

não se pode dizer que cheire mal, o porco tem um cheiro muito peculiar. muitas das pessoas afastam-se dele quando o podem cheirar, apesar de ainda haver quem se aproxime. não se consegue explicar a atracção que um porco pode exercer. olhando bem para ele, numa segunda análise, ele não tem nada que nos possa interessar. mas há muita gente que gravita em volta do porco, que se deixa pisar, agarrar, pelo porco. o porco é assim.

na cama onde prolonga ao infinito as suas noites mal dormidas, o porco balança os seus muitos quilos de um lado para o outro. algures nas escadas do prédio, uma das suas bafejadas, remexe um saco de lixo à procura de provas irrefutáveis das porcarias que o porco faz. o porco ronca, ressona, peida-se. a bafejada ainda não o sabe, mas é tão porca quanto ele. o porco funciona assim.

domingo, agosto 22, 2004

dançar

telefonava-me todas as noites para me dizer, dança comigo, todas as noites igual, sempre mais ou menos à mesma hora, de madrugada, dança comigo, ligava-me de onde quer que estivesse, fosse longe ou fosse perto, dança comigo, dança comigo, dança comigo.

e bem que podia dizer-lhe, estamos longe, bem que podia dizer-lhe, dói-me os pés, bem que podia dizer-lhe, não temos música, ela voltava sempre a ligar, voltava sempre a dizer, dança comigo, pouco interessa, dança comigo, nada interessa, dança comigo, dança comigo, dança comigo.

e mesmo que eu quisesse dormir, e mesmo que eu quisesse gritar, mesmo que eu não quisesse atender, tudo era mais forte do que eu, tudo era mais forte do que eu, aquela voz dela, dança comigo, como se fosse música, dança comigo, como se desse mesmo para entender, dança comigo, um ritmo latino, alegre, dança comigo, dança comigo, dança comigo, enquanto eu batia o pé.

quinta-feira, agosto 19, 2004

acordar

é abrir os olhos e ver só o quarto escuro. é assim que eu acordo. o quarto escuro que me abraça, me aquece. acordo. abro os olhos e não vejo nada. só o escuro. depois, porque os estores não são assim tão eficazes, um pouco de luz da rua. depois, debaixo da porta, um pouco de luz do resto da casa. abrir os olhos, espreitar o relógio. números vermelhos fazem de horas. pego no telemóvel, olho quem me tentou acordar. é assim que eu acordo.

depois, a tua voz. sim, a tua voz. um sorriso espalhado pelo meu cérebro, com o motor do teu carro como ambiente sonoro. a tua voz a dizer-me bom dia. eu, no silêncio escuro do quarto. a sorrir. dizes, gosto da maneira como ris. eu rio. o escuro. a tua voz, a tua leveza feita de mim. eu rio. sinto-te sempre mais leve quando desligas. como se houvesse um peso muito forte que eu fosse capaz de te tirar de cima. a tua voz. sorrio.

é assim que eu acordo. o movimento da rua, os carros. a porta de casa que se abre e se fecha, vezes demasiadas para o meu sossego desejado. é assim que. acordo. a rádio ligada, as notícias, alguma música. assim. feito uma coisa qualquer, como se fosse normal um homem demorar tanto tempo a levantar-se da cama. é assim que eu acordo. sorrir.

acordar

é abrir os olhos e ver só o quarto escuro. é assim que eu acordo. o quarto escuro que me abraça, me aquece. acordo. abro os olhos e não vejo nada. só o escuro. depois, porque os estores não são assim tão eficazes, um pouco de luz da rua. depois, debaixo da porta, um pouco de luz do resto da casa. abrir os olhos, espreitar o relógio. números vermelhos fazem de horas. pego no telemóvel, olho quem me tentou acordar. é assim que eu acordo.

depois, a tua voz. sim, a tua voz. um sorriso espalhado pelo meu cérebro, com o motor do teu carro como ambiente sonoro. a tua voz a dizer-me bom dia. eu, no silêncio escuro do quarto. a sorrir. dizes, gosto da maneira como ris. eu rio. o escuro. a tua voz, a tua leveza feita de mim. eu rio. sinto-te sempre mais leve quando desligas. como se houvesse um peso muito forte que eu fosse capaz de te tirar de cima. a tua voz. sorrio.

é assim que eu acordo. o movimento da rua, os carros. a porta de casa que se abre e se fecha, vezes demasiadas para o meu sossego desejado. é assim que. acordo. a rádio ligada, as notícias, alguma música. assim. feito uma coisa qualquer, como se fosse normal um homem demorar tanto tempo a levantar-se da cama. é assim que eu acordo. sorrir.

quarta-feira, agosto 18, 2004

pegadas de sonhos

Num chão muito muito azul encontrei as pegadas dele.
Grandes grandes grandes como um camião.
Um camião vermelho que transporta, na auto-estrada, todas todas as alfaces que o avô Miguel colheu, no meio das cenouras e dos tomates e das batatas e do milho, no seu quintal e que agora vão ser vendidas no Mercado.

Nas pegadas dele eu podia fazer a minha casa.
Por entre os altos e baixos da sola do sapato faria uma sala,
Um quarto, a cozinha e a casa-de-banho. O resto da pegada seria
Um jardim. Um jardim da cor dos olhos dele.
Os olhos dele são de uma cor que não existe. Uma cor que às vezes é parecida com a chuva e outras vezes parecida com o vento. Uma cor que vem da água mas que também vem do fogo. Uma cor daquelas que nós nunca conseguimos ver, só imaginar.

Tentei olhar para longe longe, julgo que ainda era possível ouvi-lo.
Num chão muito muito azul encontrei as pegadas dele.
Azul como se diz do céu mas não o mesmo azul, um outro azul, como encontramos nos olhos, um azul como encontramos nas árvores, um azul como encontramos nas flores. Azul como se diz do céu mas não o mesmo azul. Azul como outro azul que não existe.

Nas pegadas dele eu podia fazer a minha escola.
Por entre os altos e baixos da sola do sapato faria as salas,
da Professora Maria, da Professora Joana e do Professor Joaquim.
Uma casa-de-banho, um refeitório e um recreio. O resto da pegada seria
Uma sala gigante. Gigante e cheia de brinquedos.
Como aquelas salas que nós temos nos sonhos, salas onde cabem todos todos os brinquedos, de todos os meninos e meninas, de todos os senhores e senhoras, brinquedos de todas as formas e tamanhos, brinquedos de todas as cores, possíveis de fazer todas as brincadeiras. Como aquelas salas que temos nos sonhos.

E eu corria corria, atrás dele, pelo caminho azul azul azul.
Tentei olhar para longe longe, julgo que ainda era possível ouvi-lo.
Ou então era uma música, a tocar muito muito baixinho, num rádio de pilhas, num quarto de um outro menino ou menina, lá longe longe, muito muito longe, na terra onde vivem os sonhos.

segunda-feira, agosto 16, 2004

livro de memórias

não escrever nunca um livro de memórias, deixar que o tempo se encarregue, docemente, de apagar todas as pequenas coisas de que não nos vamos lembrar nunca mais, todas as grandes coisas que se constituirão como surpresas quando forem recuperadas, nunca escrever um livro de memórias, nem guardar os diários de bordo, nem a agenda de reuniões, trabalhar só para o futuro, o passado vem connosco.

sair de casa sem levar as canetas nos bolsos ou papéis soltos dentro de livros, não usar livros para tirar apontamentos, não riscar as paredes dos outros, das casas de banho, nem as mesas dos cafés ou as revistas de biblioteca, ser uma pessoa normal, não usar referencias literárias nas conversas com o empregado do café, não discutir o final de nenhum livro numa agência bancária, resguardar conhecimentos e loucuras. ainda assim, permitir-se andar despenteado.

ter em mente, sempre, que as outras pessoas vêm as coisas de um modo diferente. não serão diferenças culturais, de educação, nada disso. é só tridimensionalidade. se eu te vejo o braço esquerdo, alguém te verá o braço direito. tendo isso em conta, nunca gritar para desconhecidos, nunca dizer, com toda a certeza do mundo que se tem razão, ainda assim, pode-se insultar o bandeirinha de um qualquer jogo de futebol. não vou escrever livros de memória, não vou. a última indicação diz que não se devem prolongar as mentiras.

domingo, agosto 15, 2004

sensual

no dia em que descobres que és sensual, as mulheres abrem mais os olhos quando passas e podes insistir num olhar mais penetrante, que elas o sentem como se fosses um mágico. nas mesmas mesas de café, estão os maridos delas que passam a olhar para ti desconfiados de que o espelho lá de casa poderá andar a dizer que há alguém mais bonito no mundo do que eles. tu endireitas as costas, escolhes, perversamente, uma mesa de café onde não só ela, como o marido, te possam ver. e depois enfias os olhos no jornal, como se nada fosse.

no dia em que descobres que és sensual, os teus amigos perguntam-te, desiludidos, se agora decidiste ser bonito. tu sabes que o esforço é mínimo. pentear o cabelo, colocar um pouco de gel, todo o restante ar desleixado e barba por fazer só ajudam ao teu brilhantismo. tu andas de carro, de um lado para o outro e páras nas passadeiras para poderes ver os desfiles dos modelitos das meninas. sorris, atrás dos óculos escuros e olhas de novo para elas, quando arrancas com o carro. elas pouco te vêem, nada sabem de ti. mas ficam a pensar.

no dia em que descobres que és sensual, as pessoas deixam-te passar nas portas, são mais simpáticas para ti, pensam sempre que és melhor do que na realidade és. tu abres e fechas livros quando estás em casa, podes até ser bruto entre os teus amigos. mas sabes que, quando olhas uma rapariga, ela percebe muito bem que a estás a olhar. e garanto que não é asco o que ela sente. nota-se isso pelo sorriso. por isso é que quando os maridos delas se levantam das mesas dos cafés, tu levantas os olhos do jornal que não estavas a ler e percebes que ela finge estar a arrumar sabe-se lá o quê na mala, só para ter o prazer de ser vista por ti mais uma vez.

sábado, agosto 14, 2004

|fragmento de diário|

onze da manhã: acordei com os dedos frios, a janela semi-aberta, o meu corpo abandonado sobre a cama que nem estava aberta. vestido, só as calças, as mesmas calças com que me lembro ter chegado a noite passada. ainda assim, abertas. levantei a cabeça da cama e senti o peso de tudo aquilo que não ficou por beber umas horas atrás. sim, sim, ressaca. só a muito custo consegui sair da cama, caminhar, arrastando os pés pelo corredor, até à casa de banho e aí, perante aquela luz fria, cair de joelhos. vomitei na sanita.

meio dia e vinte cinco: consegui tomar um duche, embora me tenha sido difícil entrar na banheira, tal a inércia de todos os meus membros e a fragilidade que se apoderou do meu cérebro desde que acordei. sento-me no sofá e tento reconstruir a noite. lembro-me de ter voltado a casa com as mesmas calças com que acordei. começar do fim. humm... estava com os copos, isso é claro. mas como? começar do início. fui jantar fora. éramos uns quantos, tudo malta lá da empresa. depois... bem... depois.

treze e quarenta e quatro: sim, o bar do andré. o bar do andré estava cheio de miúdas giras. sim. eu já estava com os copos nessa altura. o jantar foi para festejar a minha promoção na empresa. vou ser chefe de gabinete. o marcelo e o vitor também se embebedaram muito depressa. o lino levava o carro. falta aqui alguém, lembro-me de se queixarem que iam muito apertados no banco de trás.

catorze e vinte cinco: lembro-me que acordei com os dedos frios. e que ontem me esqueci de tudo. telefonei ao marcelo, estava desligado. o lino, o lino disse que me deixou à porta de casa com a joaninha. a joaninha... é a uma miúda do escritório, disse-me ele. hum hum... não faço a mínima ideia.

quinze e seis: vomito.

quinze e trinta e quatro: desligo o computador, arrumo alguns papéis de deixei em cima da mesa, de outros trabalhos. saio de casa. tenho que aquecer os dedos com o sol.

sexta-feira, agosto 13, 2004

direitinho

eu faço-me direitinho, para as fotografias. não é para ficar bem, mas lembro-me de ouvir uma avó ouvir que as fotografias são para sempre. portanto, faço-me direitinho. corto sempre a barba, visto sempre o meu melhor casaco, a camisa engomada. as fotografias são para sempre e eu vou ter muita gente para olhar pela minha entrada na eternidade. imagino filhos, netos, bisnetos, amigos, conhecidos. muita gente até que um dia alguém vai olhar para o papel e só ver uma foto velha. e eu quero estar direitinho.

hoje chamei o sr. andrade da máquina fotográfica. é ele o dono do salão fotográfico que abriu na praça central. ele apareceu depois do meio-dia, com a traquitana toda atrás das costas. não das dele. eram as costas do joãozito, um rapaz que trabalha comigo no campo. ele apareceu depois do meio-dia, depois da missa. eu nunca vou à missa. lembro-me de ouvir uma avó dizer que o padre lá da terra dela gostava de se agarrar às miúdas pequenitas, pedindo-lhes beijos em troca de rebuçados. nunca fui à missa. quando o sr.andrade chegou, eu estava no quarto a vestir o casaco.

faz hoje dois anos que morreu a Suzete, a minha mulher. era uma boa mulher, sempre atenta. hoje faço trinta e dois anos e estou no meu quarto a procurar um casaco. o sr.andrade prepara uma cadeira debaixo do alpendre, estuda a localização do sol, dá ordens à empregada para arranjar a roupa dos miúdos. pego no casaco. é castanho. ao chegar à sala olho-me ao espelho e treino a posição certa. experimento um sorriso. lembro-me de ouvir uma avó dizer, sorri sempre que sentires o coração apertado. debaixo do alpendre, lembro-me das coisas que já não vejo senão quando fecho os olhos. sorrio. faço-me direitinho.

terça-feira, agosto 10, 2004

curta-metragem

acho que se começa por apagar as luzes do tecto e deixar que a imagem do écran ilumine toda a sala. acho que é assim que se faz. de alguma maneira, tenho sempre presente a dúvida de estar a fazer as coisas certas, ou a fazer as coisas da maneira certa. acho que é assim que se começa. depois, ouve-se um som. ou pode não se ouvir som nenhum. pode ficar só um silêncio que não se percebe muito bem de onde vem. pensamos: de onde vem o silêncio quando nos apetece falar. olho à minha volta, estou sozinho.

depois sim, as imagens. uma atrás das outras. existem paisagens e existem pessoas. primeiro paisagens, como se voássemos, planando feito pássaros por cima de campos ou cidades. lá em baixo, muito em pequenino, uma pessoa. aproximamo-nos, tão perto que parece que os vamos beijar. aproximamo-nos e sim, essa pessoa tem algo de familiar. no entanto, só se ouve o barulho das folhas das árvores a tocarem-se mutuamente. pensamos: de onde vem o barulho das árvores quando vemos uns olhos bonitos. olho à minha volta, há uma mensagem de telemóvel por enviar.

no escuro não podemos ver as horas nos relógios. temos um livro pousado sobre os joelhos e apetece-nos esticar as pernas. de um lado e de outro, pessoas mexem-se irritantemente, como nós estamos irritados. as pessoas falam. as pessoas vivem. aquele alguém que nos parecia familiar, afinal, é só alguém muito distante. num outro dia qualquer, vamos vê-lo outra vez, a fazer-se passar por alguém ainda mais diferente, mais longínquo. isso pouco importa. é assim que eu acho que as coisas são.

sábado, agosto 07, 2004

ideias

podia ser uma dor de barriga ou uma ideia mal formada encostada à fronteira do meu crâneo. era ainda uma outra coisa, um carro a andar numa estrada escura, onde não passam mais carros, onde ninguém espreita de dentro das casas. podia ser vento, podia ser um beijo, podia ser do calor também, uma vontade maior do que as pernas, maior do que os olhos. uma ideia mal formada quando ainda estávamos no elevador. abrir a porta, correr para a casa de banho.

ainda assim, acho que me fica muito mal para a olhar para dentro da sanita, como se fosse um filme, aquela ideia de procurar-me por dentro, aquela aproximação às fezes, doentia, repetia o médico, acção doentia cíclica, e o mar alto cheio de marinheiros de barbas, com camisas brancas cheias de nódoas e um parto inesperado algures no meio do pacífico. passei a noite toda a sonhar com a minha filha, uma coisa pequena que me deixou a cabeça em água. sim, acordei preocupado, mas sosseguei ao reencontrar-me solteiro e só.

podia ser só uma dor de barriga, mas era muito mais que isso, sonhos e sonhos e sonhos, repetidos como frames de videocassetes velhas, o leitor de vhs que está avariado há anos, os velhos filmes italianos gravados da rai uno quando eu era a única pessoa com antena parabólica, a minha filha a passear-me sobre os livros, o meu quarto reduzido a um aspecto de pensão, podia ser uma dor de barriga, eu levantando-me da sanita aliviado, o suor a resfriar-me nas sobrancelhas, mas uma ideia mal formada, germinada, no meu crâneo.

quinta-feira, agosto 05, 2004

ao tirar dos óculos

vi-o no jornal, há uns dias, numa fotografia de há muitos anos atrás. estava sentado, calmo, calmíssimo. na mão direita, um copo de vinho, pela metade. pode-se, à primeira, pensar que o vinho se irá entornar, existissem uns olhos de sono atrás daqueles óculos, debaixo daquelq chapéu de lavrador. mas olhando bem, o que há por ali é harmonia. não sei porquê, mas imagino aquela sala a meia luz, silenciosa. só o clack da máquina fotográfica. sim, vivíamos nos anos setenta.

naquele tempo a música ouvia-se em gira-discos e os amigos encontravam-se uns aos outros junto à porta de casa de cada um. certamente não haveria muito para onde ir, a concentração era inevitavel. as pessoas, essas, eram também em menor número. mas isso agora não me interessa nada. o que me interessa é o facto de naquela noite, sim, porque só à noite se bebe vinho à média luz, naquela noite ele ficou só em casa, bebendo vinho, com alguém que lhe tirava fotografias. fosse quem fosse, estava por ele apaixonado. não tenho dúvidas. mais ninguém capta almas com máquinas fotográficas. só os apaixonados.

passados todos estes anos, olho a fotografia e apaixono-me. apaixono-me involuntariamente, rapidamente, como sempre me apaixono. esta semana a palavra amor rodeia muitas das palavras que profiro. não consigo explicar, só desconfio que me queira apaixonar. quanto mais impossível uma coisa nos parece, mais a queremos próxima de nós. e por isso vos lembro esta fotografia. não pelo homem, nem pelo vinho. pelo amor. pelo amor de uma lente fotográfica.

terça-feira, agosto 03, 2004

se até eu me faço mal

eu poderia antes dizer: tu vês a maneira como aquela pessoa anda pela rua: mas não, digamos que existem umas centenas de pessoas iguais a passar por aqui e por isso não adianta explicitar nenhuma característica desta pessoa em particular: ainda que a maneira como ele anda é evidentemente desastrada: mas também me parece muito mais importante destacar os escaldões deitados na praia neste dia de chuva: sim, chouveu lá na minha terra, há quem diga que pouco, eu não me molhei.

o que se vê da marginal são um monte de prédios separados por correntes de ar: lá ao fundo vê-se sintra mas só quando não faz nevoeiro: pela trafaria passam barcos grandes de milionários, embora não exista nenhum milionário na trafaria, nem nenhum milionário saiba que aquela esquina entre o rio e o mar tem esse nome: quando eu era pequena corria para as praias do fundo: na paragem do autocarro estão uma dezena de pessoas como as do parágrafo de cima, estão à espera do autocarro dos TST, estão infelizes, chove-lhes em cima: assim na rua como em casa, amén.

escrevo no caderno dos recados: vim o caminho todo até casa a gritar com a cassete dos beatles e sim, chorei: estava sozinho no carro e pûs os óculos escuros para ninguém ver: eu diria sempre que não mas hoje: é normal, meu querido, é normal: chorei mais quando ouvia o all you need is love: é normal, meu querido, é normal: abri a janela do carro, tinha óculos escuros, gritei: love, love, love: para uma senhora que via passar os carros e agora digo: é normal, é normal, se até eu me faço mal.

domingo, agosto 01, 2004

vila nova bossa nova

deixa cair as tuas mãos sobre as pernas, prende a viola debaixo dos braços e levanta os olhos para mim. eu, que estou aqui desde o início dos tempos, não deixarei de marcar o compasso na bateria, mas queria que fizesses um pequeno sorriso, um pequeno pequenino sorriso, como quem diz, estou aqui, vejo-te e sei que me amas. ou talvez preferiramos um outro qualquer exagero, talvez ficar a tocar a noite toda, a cantar a noite toda, essa nossa maneira de ficarmos calados.

larga a caneta, larga o bloco, larga o dicionário de rimas, larga tudo. podes deixar que tudo caia no chão, não há problema. levanta os olhos para mim. eu continuarei a tentar encontrar o tom certo para as tuas palavras, não as escritas, mas aquelas que tu irás ensaiar no momento em que sentires uma pequena, pequenina lágrima a cair pela tua face. sim, amo-te. tudo isso deveria ser tão fácil como encontrar o número de sílabas certas para fazer uma canção de amor.

olha, vamos sair daqui, procurar pela rua, mesmo que sejam já cinco e meia da manhã, um café, um bar, uma coisa qualquer, um sítio onde nos possamos sentar frente a frente, com uma justificação qualquer como, apeteceu-me hoje estar contigo, apeteceu-me hoje ver a tua cara, apeteceu-me segurar a tua mão, dizer amo-te, segurando uma chávena de café ou um copo de cerveja. ou então deixemo-nos ficar por aqui até que o sono seja mais forte do que as notas que tentamos tocar, e depois podes guardar o bloco na sacola, a viola na caixa e sair, como se sai para um dia normal.

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