Arquivo do extinto blogue Esferovite- a vida em pedaços (13-08-2003/ 4-01-2006)

quarta-feira, junho 29, 2005

certas coisas que não fazem sentido

adormeci a contar pestanas caídas pela face. na mesa de cabeceira tenho canetas.

é assim que começam os poemas ou é assim que começam os poemas ou é assim que começam as coisas que nós temos para dizer a quem nos ouve. está bem, está bem, eu oiço qualquer coisa dentro da minha cabeça, deve ser uma voz que vem de longe, não é gente, não. no meio deste parágrafo posso dizer que adormeci a contar pestanas caídas pela face. na mesa de cabeceira.

canetas.

fazem barulhos porque eu passo sobre elas a minha mão. a minha mão livre. a minha mão, embrulhada num xaile. a partir de uma certa data, o xaile entrou nas minhas histórias, um xaile comprido, do tamanho suficiente para tapar um corpo todo. agora, imagino-o a embrulhar a minha mão. eu não sei bem de onde veio este xaile, desconfio que tenha saído de dentro de uma mala. uma mala de uma mulher bonita.

os poemas começam pelas canetas. as canetas e o papel branco, sem riscos.

sem riscos. os poemas, por tratar, estão assim arrumados. nem um apontamento, nem uma modificação. saem da cabeça límpidos e errados. eu coloco as minhas mãos à boca, a minha livre, nas canetas, a minha mão embrulhada no xaile, uma voz que eu oiço, não sei bem, dizia-te para teres juízo, julguei ouvir, uma tarde inteira sentado no café a ver passar à minha frente homens de gravata e estava sol. certas coisas que não fazem sentido começam assim. poesia.

xaile

já passa da uma da manhã e eu estou aqui em casa a pensar que dentro de alguns minutos é provável que eu comece a chorar. é o lado de cá da história. sabe bem estar no meio de pessoas, sabe bem ter os olhares dos outros, partilhar alguma coisa. mas depois já passa da uma manhã e aqui estamos nós em casa, com vontade de chorar.

hoje aconteceu-me algo de fenomenal. alguém chegou ao pé de mim e tirou uma encadernação de textos meus de dentro da mala. caí das pernas, caí de mim, caí do mundo. alguém, num gesto tão simples, a crescer gigantemente à minha frente, com aquela encadernação nas mãos. eu a passar dias a ansiar dias por um gesto de carinho e ele sai assim de dentro de uma mala. hello stranger.

já passa da uma da manhã e com a encadernação na cabeça, as lágrimas a cairem-me dos olhos, o corpo mortiço, abandonado. tirei fotografias na minha cabeça e o dia fechou. eu agora aqui, assim, e uma recordação fenomenal que fica para o resto dos meus dias. já passa da uma da manhã e eu não consigo ter juízo. não consigo mesmo ter juízo nenhum. talvez adormeça depois de chorar.

terça-feira, junho 28, 2005

inglês para principiantes

it's a pretty stupid thing. tinha que começar assim, há coisas que ficam muito melhor noutra língua que não a nossa. custa-me dizer coisas, custa-me falar. então eu tinha que começar assim, em inglês. eu estou parado, no corredor. olho a porta fechada, hesito. a porta fechada, a porta fechada. faço uma ou duas três contas de cabeça. it's a pretty stupid thing, este mundo onde tu e eu vivemos.

tinha que começar assim, mas aquilo não era o início de nada. era depois do intervalo para pipocas, depois de todos terem ido à casa de banho. o filme recomeça e eu olho a porta, hesito, dou passos muito pequenos. encosto a minha cara à porta e tento ouvir o que se passa do lado de lá. abro-a e vejo outra porta fechada. volto atrás. abro-a de novo e bato à porta seguinte. uma luz apagada. é de noite.

falei em inglês só comigo, na tradução inglesa aparecerá um aterisco, inglês no original. é de noite e tu dormes, eu pelo corredor, uma desculpa qualquer para estar ali. era depois do intervalo, era depois das pipocas, era depois do fim do filme, talvez. eu parado no corredor era o filme acabado, assim. fecho as portas todas e deixo-me cair na cama, a cama onde nunca vai ser noite porque, do outro lado do corredor tu dormes. it's a pretty stupid thing, era o que eu tinha que dizer.

volto às mãos

volto às mãos, às minhas mãos. há uns meses percebi como gosto de olhá-las. as minhas mãos. conto os meus dedos, para a frente e para trás. depois, fecho os olhos. nas minhas mãos a pele desfaz-se com o tempo, com os dias. pego na caneta e a pele deve ficar no papel, deixando pequenas chagas nos meus dedos. assim, as minhas mãos. eu a olhar.

as minhas mãos, as minhas mãos. na outra história estavam sobre um lençol desconhecido, a medir as marcas de luz que vinham pelo estore até à cama. eram as minhas mãos, e eu todo logo ali, a ver como reagem as mãos quando eu quero que fiquem quietas. sim, porque mesmo nesses momentos, elas mexem-se, mexem-se sozinhas. eu sem saber porquê.

voltar às mãos é como tirá-las dos bolsos. fora dos bolsos e sem estarem presas atrás das costas, as mãos recurvam-se, alimentam-se do ar e ficam livres. eu a quere-las quietas e elas a mexer. quando penso nisso, não sei porquê. volto às minhas mãos, gosto de as olhar, de as medir, de as sentir. as minhas mãos sobre aquele lençol, naquela manhã. era noutra história.

segunda-feira, junho 27, 2005

três coisinhas que eu tinha para te dizer

comboios, toda a minha vida foram comboios com hora marcada, uns minutos de espera no café da estação, a inspecção, solene e comedida, dos outros passageiros no cais de embarque, um jornal na mão, o do dia, e a mala cheia de livros, pesadíssima. comboios, toda a minha vida, a pedir com licença à pessoa sentada ao lado para ir à casa de banho, para comprar qualquer coisa no bar.

em viagem, a depender da bondade e da cama de estranhos, a beber às escondidas nos intervalos para café, a subir e a descer escadarias de cidades estranhas, a sentir, pelas pernas abaixo, uma tremideira de não estar no lugar. em viagem, com a mão bem aberta sobre uns lençóis que não são meus, com a cabeça que espera sempre alguém que possa entrar pelo quarto e me surpreender.

ausente, é assim que me sinto em cada pedaço de mim. não estou triste, não é isso, tenho a cabeça cheia de nomes de cidades e vilas que não reconheço, os olhos espantados pela janela do comboio, uma futura engenheira a ler apontamentos ao meu lado, eu a espreitar por cima do ombro. ausente, deixo o computador em cima da mesa de um café e vou andando, trago o cheiro dos lençóis ao longe, o corpo entorpecido da viagem.

sexta-feira, junho 24, 2005

pessoas que não conhecemos

não me venhas dizer as duas ou três coisas que pensaste dizer-me quando me viste no metro. sim, quando me viste e pensaste, lá está ele, era o namorado da Ana, lá está ele sem me ver. viste-me e depois pensaste em duas ou três coisas para me dizer. podias andar dentro do metro,vir ter comigo, dar-me um olá, mas eu podia não me lembrar de ti. podias perguntar pela vida ou pelo curso, mas nem te lembras do meu nome. podias perguntar pela Ana, mas o que tu querias era que eu te dissesse que não sei da Ana há muito tempo.

não sei da Ana há muito tempo, teria eu dito, se tivesses perguntado. achaste melhor virar costas e esquecer-me. Provavelmente eu já sou casado ou dono de uma loja de venda de comida para animais. sou grande e bonito e podia ir sair contigo, ir até à tua casa. o teu namorado anda fora há meses e só há-de voltar lá para agosto, uma semaninha só. podia ir à tua casa, falar daquelas coisas antigas que eu escrevia, comer uma pizza. se eu aceitasse, já sabias que acabaríamos por ir para a cama. sempre ouviste a Ana a dizer que eu era louco por sexo. estava na hora de comprovares.

achaste melhor virar costas e esquecer-me. é o que se faz com as caras do passado que se encontram no metro. que se encontram no metro a duas carruagens de distância. pensamos que podiamos ir ao café, ir para a cama, ter uma aventura, casar. são pessoas que nós não conhecemos e que, por isso mesmo, têm tudo para ser devidamente idealizadas. tu viraste costas e pronto. apagaste outra vez a minha existência da tua cabeça. apagaste, até que em pleno centro comercial, ao virar a esquina de uma montra dás de caras comigo. dás de caras comigo, à porta da loja onde trabalhas. a loja onde tu trabalhas e onde eu até costumo ir, sem nunca te ter visto lá. agora eu sei de ti e tu sabes de mim. ao sair da loja digo que volta amanhã. tu estás em casa a pensar como me convidar para sair contigo.

quarta-feira, junho 22, 2005

Eu vou estar lá!

Caros amigos e leitores,

Na próxima semana vamos ter o lançamento nacional da revista Sítio, uma revista cujo o editor principal sou eu! Neste primeiro número, a revista conta com as colaborações de Alexandra Monteiro, Ana Beatriz Guerra, André Trindade, Arnaldo Antunes, Daniel Silva, Eduíno de Jesus, Fabiana Lopes, Herbert Farias, Golgona Anghel, Löis Lancaster, Mariana Matta Passos, Miriam Luz, Onésimo Teotónio de Almeida, Paulo Toledo, Ricardo Coxixo e Xavier Queipo. A coordenação e edição é minha, a concepção gráfica e paginação da Ana Almeida, a revisão da Susana Morais.

Para assistir aos lançamentos da revista Sítio, vais ter que estar na:

- Livraria Almedina, Atrium Saldanha, Lisboa
Terça-feira, 28 de Junho, pelas 19 horas

- Livraria Livrododia, Torres Vedras
Terça-feira, 12 de Julho, pelas 18 h e 30 minutos.

- Livraria Almedina, Arrábida Shopping, V.N. Gaia
Quinta-feira, 14 de Julho, pelas 21 horas.

Mais informações, podem contactar-me! Conto com a vossa presença.

terça-feira, junho 21, 2005

pequeno extracto de nada

Não porque tenha que ser, mas porque é, é mesmo assim que as coisas acontecem. bebes uma cerveja fresca, no meio deste calor, e vens-te fechar em casa a escrever coisas que nunca te aconteceram na vida.

Não porque seja tarde, mas porque é nesta hora, nesta mesma hora. fazes o que tens a fazer e depois. qualquer coisa que se roa na tua boca. fechado em casa, porque sim, porque é aqui o teu lugar.

Não porque seja o dia, nem porque seja a noite, simplesmente, cada coisa é o que é e nada mais. enfim, talvez o sal talvez o sol, e a lua que estava tão bonita lá fora. seja por que razão for, é mesmo assim que as coisas acontecem.

segunda-feira, junho 20, 2005

casa: dentro e fora. ou fora.

o disco a ser comido dentro da barriga da aparelhagem e eu sentado numa cadeira, ela na mesa, a falar-me de coisas que existem lá na cabeça dela e eu sentado. agora ponho-me a pensar que se um dia não sair nunca de casa, talvez deixe de ter o que pensar, mas não. a música a ser comida, no disco ou no prato, na barriga da aparelhagem. duas frases que ninguém percebe e o selo do surreal.

cesariny haveria de chorar no túmulo, se não fosse demasiado teatral. depois ele morre, vai para o céu ou para o cemitério, tantas pessoas a pensar em elsinore e ninguém para o ver no funeral. mas descanse-se, eu também me canso, eu também me esqueço, essas coisas todas que acontecem nas barrigas das aparelhagens, como nas das baleias, fazer uma lista de compras e não sair de casa.

um livro e duas frases, ele levava tudo na bicicleta ou debaixo do braço, eu a vê-lo da janela como as crianças, ou como naquele outro texto em que eu era formalista e fazia coisas em perspectiva, sem perceber que havia muito mais poesia nas coisas que não se dizem e não se fazem. ficar parado a olhar, afinal, não tinha graça nenhuma. mas se eu parar, talvez deixe de escrever. ou então o mundo todo a não perceber quando finalmente escrevo alguma coisa bem.

confissão

porque depois sou eu que tenho uma caneta no bolso da camisa e as mãos dentro das calças, a segurá-las por dentro, como quem segura o mundo ou toda a vergonha, apesar de assim, aqui deitado neste chão quente do sol que bate, finge ser alguém com os olhos pelo céu espalhados, um segredo que se conta e uma sala, três folhas de papel afinal, os meus dentes presos nos lábios e roubar-me a mim mesmo este sossego, algures.

porque depois sou eu que digo as coisas, mas fico a pensar, se calhar as pessoas não tão habituadas a pensar nisto e naquilo, eu de peito aberto, sim, sou fraco e frágil e afinal, os dedos de uma mão não chegam para tudo aquilo que eu vi na minha vida, ponho as cartas na mesa, uma folha de jornal, as palavras que eu não peço e não meço ao chegar, posso fazer de conta que não ouvi e posso fazer de conta que estou aqui. tanto mal numa como noutra coisa.

porque depois um afinal talvez um dia, eu podia sair de casa de roupa nova e limpa, mas o calor, o sol ou a simples existência, suando-me a cada passo sem sombra desta cidade, à sombra da soma das dúvidas empilhadas, e se calhar nunca falaste disso a mais ninguém, ou talvez a tua mãe já saiba, que um dia acordaste e estavas a ficar como as velhas e cansadas, casadas, e tu que eras tão nova e tinhas tanto para dizer. e eu sem me fazer perceber, ali.

beijo bom

os teus olhos fechados e a minha boca no teu ombro. a porta aberta da sala, a varanda que nos chama. eu calado, a olhar-te desejoso, a minha mão no teu umbigo. tu que não foges, bem que podias ter ficado no meu colo. os teus olhos fechados. sempre qualquer coisa a começar na cabeça. as tuas pernas sobre as minhas e enfim. um lugar onde nos pudessemos reencontrar. ah, mas bom, que bom.

a minha mão fechada com a tua dentro. a tua pele que sua para a minha. a porta aberta da sala, bem que podia soprar um vento. à nossa volta todos os livros da poesia toda que nos invade. a cabeça, os dedos dos pés. olho as tuas sandálias que me encantam. a minha mão fechada com a tua dentro. ter ou não ter nada mais para dizer. podia eu ter dito qualquer coisa mas um gesto. bom, sim, bom.

e a tua voz, num poema ou. todas as outras coisas que fingimos não ouvir. outras tantas que preferimos não contar. acompanho-te à porta, ao carro, e. um beijo pelos lábios, um carinho. ter ou não ter nada mais para dizer. e a tua voz, num poema ou. só querer que não fosses embora porque aqui. eu e tu e toda a poesia. o beijo que me enche e me rouba a voz. bom, bom, bom, bom.

domingo, junho 19, 2005

caracterização de periodo literário

o poeta é um ser que sua como os outros, o homem ficou de dizer. o corpo caído sobre o sofá e os dedos a contar palavras, sobre linhas que foram apagadas na nascença das folhas. os dedos a fazer os versos para cima e para baixo, se lermos as coisas na direcção correcta percebemos uma maneira, se trocarmos tudo, não percebemos nada, mas inventamos. o poeta é um ser que sua como os outros.

o poeta sua no sofá. as mãos perdidas pelos versos inventam pequenos gemidos e ausências. o homem ficou de dizer, o preço da carne a subir paredes. eu olho as paredes sem perceber mensagens, tu sopras o quente do café. eu olho as paredes e os poemas que crescem no prato da sopa, sem perceber bem a mensagem. as mãos perdidas pelos versos, quantas poetas tem a tua cabeça, quantos medos a tua existência? o poeta no sofá.

o poeta é um homem como os outros, um homem que ficou de dizer. um sopro sobre a página do livro e uma palavra algures a fazer-se poema. o preço da carne ou a parede, de tão diário que se faz poemas de listas de compras, era assim que eu queria ser quando era pequeno, grande e desleixado pelas minhas pernas que tremem quando limpo o chão da casa-de-banho. os dedos a fazer versos, no final da história os dedos sujos. o poeta que sua.

mais questões em volta da poesia

quero saber como se escreve um poema. qualquer coisa que me explicasse como se enfrenta a folha em branco, a cara em branco, a cabeça em branco. porque, desconfio, é disso que se trata. antes do início do poema, há o branco. ou o vazio, isso já não sei bem. surge uma palavra, articula-se com outra, cresce um verso, ainda coxo, incerto. quero saber como se escreve.

quero saber como se escreve um poema. não, não basta ter um caderno onde se vão anotando ideias. cadernos, tenho muitos, uns ali dentro de uma mala, outros espalhados pelas prateleiras da minha sala, um outro que anda sempre comigo. posso-vos mostrar. estão cheios de frases, palavras e letras. até aí eu já cheguei. mas como se escreve um poema, como?

quero saber como se escreve um poema. olho para o que escrevo e não percebo. nuns dias tão vazio e noutros tão simplesmente cheios do meu passado. leio-me e não me percebo. não percebo que tipo de coisas me podem interessar, que tipo de coisas poderão fazer-se alguém interessante por aquilo que escrevo, até. e depois penso que quero saber como se escreve um poema.

sexta-feira, junho 17, 2005

message in a bottle

ama-me estrondosamente ou odeia-me. já não consigo viver mais neste silêncio que me corta por dentro. quando eu era pequeno afagaram-me os cabelos ao ponto de me sufocar. felizmente agora estou cada vez mais velho e mais careca, sento-me numa pedra fria de um jardim onde passam pessoas em volta. algures noutro lado qualquer estás tu, com todas as tuas caras, mãos e pés, a fazer outras tantas coisas que me ignoram. odeia-me.

odeia-me. deixa de me visitar, seja como for. já não consigo viver mais neste silêncio que se me agarra à boca. vou deixar-te ir, nas tuas caras, mãos e braços, para todas as coisas que tiveres a fazer. quando me sentir deifinitivamente sozinho, apago a luz. na adolescência, temos uma ignorante consciência de todos os males e de todos os bens na nossa pele. depois crescemos, ficamos sensatos, fazemos as coisas segundo as regras dos vencedores. no fundo, é sempre tudo, tudo igual.

ama-me estrondosamente. faz barulho, grita, geme, chama-me. não se aguenta este silêncio, este lume brando onde nos querem queimar. eu quero arder ou não quero nada. não aguento, porra. as pessoas passam, olham-me, com certeza que me conhecem, que sabem algo de mim. mas nem uma palavra, não me dirigem nem uma palavra. montámos uma casa com fosfóros e esquecemo-nos da cola, li isto em algum lado. com este silêncio, com este silêncio que me grita surdo, eu não consigo mais viver. apago a luz. odeia-me. ou ama-me estrondosamente.

quinta-feira, junho 16, 2005

estamos bem servidos de solidão

1.no dia em que nos vimos pela primeira vez, eu estava tão sozinho que não teria sido capaz de me aperceber de ti como companhia. era uma noite como as outras, daquelas que acontecem uma vez por ano. tu estavas com as tuas amigas e eu estava entre desconhecidos. não me parece possível encontrar qualquer tipo de salvação no que não se conhece.

2.nesse dia, eu tinha decidido que não poderia haver rapariga bonita que se interessasse por mim. a maior parte do tempo sinto-me até mais confortável a olhar para as pessoas como, alguém que gosta de kundera, alguém que gosta de sophia, do que a ver alguém bonito. o que é bonito não é do meu mundo.

3.nesse dia, eu tinha decidido que estaria muito melhor sozinho do que com pessoas que eu conhecesse. ainda hoje penso assim. prefiro estar com quem eu não conheço. ao mesmo tempo, preciso de estar em lugares onde me reconheço. é difícil perceber isto? muitas vezes não sei como explicar. nesse dia confirmei que estou muito melhor sozinho.

4.é que tu não sabes e agora eu vou-te contar. nessa noite eu estava demasiado ocupado com o vinho tinto e com a solidão. soube-me bem estar à lareira a falar de livros e palavras e depois soube-me bem andar a noite toda pela rua, a entrar e a sair de bares e discotecas, a acabar de manhã adormecido na paragem de autocarro. como tu bem compreenderás, não me lembrei mais de ti. o que é bonito não é do meu mundo.

5.depois passaram-se dias suficientes para se fazerem semanas, meses, anos. tu sabias que eu não gosto dos poemas do peixoto mas não tinhas o meu número de telefone. que tipo de coisas me poderias dizer? passaram-se dias e eu sentado, em frente ao computador, a escrever histórias aos pedacinhos. tu lias-me, lembravas-te do que tinha dito sobre a sophia e isso bastava-te.

6.não se sabe nunca o que nos pode fazer entrar em contacto com alguém. eu já não sabia que tu existias e tu nem tinhas bem a certeza de me querer fazer lembrar isso. não se sabe nunca das nossas razões. tu apareceste e repetiste sempre que ler-me não tinha nada a ver com conhecer-me. eu posso dizer-te que tinhas razão e riscar tudo aquilo que escrevi até aqui.

7.uma coisa que tenho para te dizer, embora tu já saibas, é que não há limpeza possível que nos mantenha a casa arrumada. há-de sempre haver papéis, pó e armários nos lugares errados. há-de sempre haver fotografias antigas que nos comprometem. a memória é uma coisa suja, é o que eu tenho para te dizer.

8.agora estás preparada para deixares de gostar de mim. pões até a hipótese de seres tu a preparar os esquemas que façam a coisa correr mal (e olha, eu sei como isso é, eu fiz isso tantas vezes). pões-te a olhar para as coisas com os teus olhos cansados e foges para a província, em descanso. tu sabes e eu sei que não há fuga, levamo-nos sempre connosco.

9.um dia, como tu gostas de dizer, um dia, vamos tomar um café, olharmo-nos nos olhos, provar um ou outro silêncio comprometedor e da um abraço, talvez. um dia, como tu gostas de dizer, vamos falar baixinho ao ouvido um do outro e esperar que os nossos caminhos não fujam cada um para o seu lado. nesse dia, não me vou esquecer de ti.

quarta-feira, junho 15, 2005

carta de amor

Não te vou dizer que estou sozinha. Tenho este ramo de flores sobre a secretária. Encontrei hoje aquele postal que me escreveste no dia em que perdemos a guerra. Repetias juras incessantes de amor, dizias que chegarias depressa, que eu secasse as lágrimas e arranjasse o cabelo, a viagem de regresso seria breve e sem sobressalto. Era um dia de paz, eu sei, e talvez estivesses bêbedo em algum cabaré, a recompor os teus olhos cheios de mortos. Eu, fechada em casa, naquela manhã, esperava-te mais feliz que nunca. Tinham sido cinco anos sem fim, desde o dia em que partiste de casa, a barba feita, o cabelo penteado, um cigarro que se escondia nos teus lábios grossos, nas tuas mãos inábeis de tanto remexer a terra. Cinco anos, cinco anos inteiros, a noite inteira a escutar o rádio que debitava mensagens de combatentes que, como tu, tinham mulheres, como eu, na terra, na terra que abandonaram para defender. Cinco anos, cinco anos inteiros, a esperança de escutar o meu nome na tua voz, uma certeza mais de que estavas vivo, algo que não fosse a tua letra tão mais tremida e imperfeita do que já era nos postais cedidos pelo exército. Não eram postais bonitos, com paisagens, namorados ou flores. Eram mensagens de força, para vocês, e do outro lado algumas lágrimas que vinham para encontrar as nossas. Era a guerra, a suprema infelicidade da guerra, repetida a toda a hora, novela sem fim, na minha vida cinco anos, cinco anos. E depois a notícia no rádio, aquela notícia no rádio, a guerra que tínhamos perdido, e dias depois o teu postal, perfumado por alguma mulher de ocasião, a prometer o rápido regresso e o amor eterno. Meu amor, foi há tanto tempo já, não foi? Não te vou dizer agora que estou sozinha, tenho este ramo de flores, a minha tristeza e a tua existência para cobrir os meus dias. Nunca mais pude voltar a sentir a barba que crescia em teu pescoço, nem o teu bafo quente na minha pele. Em lugar disso, flores, apenas flores, que tu me envias, religiosamente, para me recordares da tua ausência. Não te vou dizer que estou sozinha.

terça-feira, junho 14, 2005

TVEDRASJAZZ

Não consigo deixar de me orgulhar desta minha "aldeia" e por isso passo-vos a sugestão.

Entre 13 e 26 de Junho, o Festival TVEDRASJAZZ, com cinema, concertos e exposições sobre Jazz. Uma organização da Câmara Municipal de Torres Vedras e da Escola de Jazz de Torres Vedras.

Se puderem, venham assistir a algum dos eventos do programa. Mais pormenores em http://www.tvedrasjazz.com/

"we want you back!"

queremos-te de volta. eu a alegria e o desejo.
já ouvimos falar dos teus pés pequenos sobre o cheiro do mar. da forma como bates os pés aos pombos e às gaivotas. já ouvimos falar de passeios pelos quarteirões com o cão mais belo da cidade. já ouvimos falar da tua aldeia.

queremos-te de volta. eu o sonho e a companhia.
assistimos entusiasmados aos teus relatos de viagem. partilhamos o sorriso das palavras e o calor das observações. na tua boca bebemos o café que bebeste, as entoações que inventaste. nos teus olhos olhamos o fascínio.

queremos-te de volta. eu o amor e a ressurreição.
esperamos deitados sobre uma cama de lençóis frescos. o nosso corpo teu corpo será. a luz apagada brilhará a tua voz, a tua mão quieta pelo nosso peito. as palavras do teu nome gravadas nos nossos lábios, que se mexem. para ti.

mistura

misturaste as palavras e depois ficou difícil de perceber o que devíamos ou não pegar, um vulto em pé em cima da mesa de cabeceira, a roupa que se ia desfazendo como num sonho e duas bocas que não encontravam aquilo que desejavam. misturaste as palavras e os olhares, o tecto cada vez mais alto mas em queda, as coisas todas ao contrário, simplesmente.

misturaste os teus cabelos com os de outrém, uma mão agarrou-te pelo pescoço e alimentou-se de ti, as palavras que não saíram da tua boca, todas misturadas por dentro, aviões a fazerem viagens para todos os destinos e tu a olhares pela janela enquanto contas dias pelos dedos, os mesmos dedos onde repousam anéis velhos e promessas de fome que ainda não acabou.

misturaste o corpo, a balança e um talher, misturaste a manhã, os vizinhos e a vontade de amar, uma voz arrumada dentro da sala mais pequena lá de casa, o som dos aviões em cima do telhado, um dia um pássaro pousou-te no ombro e tu choraste, a riqueza dos abraços que, ainda assim, ficará sempre por dizer, as palavras que tu tens mas não sabes, presas em ti, misturadas.

segunda-feira, junho 13, 2005

poesia (um outro dia)

a poesia nunca morre. mesmo se um dia não restarem mais poetas, ficarão os livros, as palavras, para serem vividas. a poesia nunca morre. muitas outras coisas podem morrer. as mãos, os frutos, os adolescentes, todas as flores, até os poetas. a poesia nunca morre.

o silêncio é coisa que só se tem em vida. depois de morrer, não há mais silêncio. todas as palavras ditas, todas as palavras para dizer. em cada sílaba inicia-se a possibilidade de renovar, re-dizer, revoltar a terra, o mar, o céu, a cidade, o campo. todos os lugares da poesia.

a poesia nunca morre. a poesia sequer fica mais fraca. todos os anos depois, ainda uma explosão a cada verso, um aperto que se desfaz e renova a cada estrofe. a poesia nunca morre. deixa-se ficar pelos homens, por dizer. e depois, de novo, surge, irrefutável e completa. a poesia nunca morre.

camarada

só te vi pela televisão e acho que nunca te percebi bem. sempre me fizeram algum medo as pessoas que não têm dúvidas, dispostas que estão a avançar contra tudo e contra todos, por uma ideia, por uma vontade, por um desejo. só te vi pela televisão e pelo que iam dizendo de ti. não te percebia, não tinha que te perceber. era pequeno e tu estavas no mundo dos grandes.

depois comecei a andar por lugares onde se falava muito de ti. a tua sombra presente não me era nada agradável. nunca gostei de fantasmas perfeitos, mitologias que se criam em volta de alguém que fez tudo. sim, ti fizeste tudo. construíste e montaste tudo o que havia para montar, parece não teres deixado grande coisa para os que vieram depois de ti. para o nosso trabalho, parecia restar só uma secretária arrumada.

é preciso que o tempo passe, é preciso que deixemos de estar debaixo da árvore que tu eras para se começar a perceber tudo aquilo que podias significar. e fui aí, quando comecei a olhar os teus desenhos, quando comecei a procurar algumas coisas que escreveste, que percebi, finalmente, que foste um homem como os outros, fraco e sensível como todos os homens. hoje toda a gente te homenageia a força. mas é na tua fraqueza que eu te vou ficar a admirar.

sto antónio 05

a comissão de festas anuncia a chegada do senhor presidente da junta e reclama a homenagem ao nosso santo antónio junto da capela. o conjunto parou de tocar e, num segundo, o recinto onde se dançava ficou vazio e a zona do bar ficou cheia. eram umas onze da noite. o cheiro a sardinhas assadas já estava impregnado nas camisas de toda a gente, algumas cervejas e muito vinho faziam com que alguns homens respeitáveis dançassem sobre as pernas agora tortas.

véspera de santo antónio e a aldeia cheia. carros pela berma mal se passa a placa. um ou outro gnr pelo caminho, a olhar mais cansado que desconfiado para os carros que passam. porque é domingo, alguns começaram a festejar cedo demais e não chegaram sequer às sardinhas. o presidente da junta chega, com cara de ter acordado há pouco tempo, e vai cumprimentando as massas. junto da capela, as pessoas benzem-se e pedem ajuda a santo antónio para as levar até ao bar outra vez.

recomeça o baile. a fogueira arde tanto que não deixa nenhum dos putos saltar. continua a vender-se sardinhas, cervejas, vinho. os doces já acabaram, mas a fome parece não parar. vários homens justificam mais uma sardinha com o facto de não terem jantado. dá-se palpites sobre o vinho, sobre o tempo, sobre os feriados. recomeça o baile e as senhoras juntam-se em pares para continuar a dar corda aos sapatos. com um risco de suor pela testa, lá se vão os mais fracos para casa.

domingo, junho 12, 2005

referendo

certas coisas fazem-me parar para pensar no mundo em que eu vivo. esta noite, estava eu na mesa de um café a beber cervejas com amigos e, de repente, já nem sei qual era o caso, decidi perguntar a um colega meu se ele tinha algum problema com broches. para alguém que não saiba o que é, broche é sinónimo de felatio, sexo oral. O que eu não estava à espera é que um dos tipos que estava na mesa se tenha insurgido contra o facto de eu ter puxado para cima da mesa o assunto do broche quando estava uma rapariga presente. agora, o que eu precisava de saber é de que forma este assunto pode fazer uma rapariga levantar da mesa e sair do café. fui acusado, por esse tipo e por outro, por ter feito algumas pessoas terem saído da nossa mesa, apesar de todas elas terem saído bastantes minutos depois do clímax da conversa e de ninguém se ter insurgido. este blog não se devia prestar a isso, mas, eu quero fazer aqui um referendo. a pergunta é tola e simples:

você saíria de uma mesa de café se um dos presentes falasse de broches?

opiniões, precisam-se. não será algo que me faça mudar de posição, eu vou continuar a falar do que quero, quando quero, mas preciso de saber como é que o mundo à minha volta reage a uma coisa destas. obrigada.

sexta-feira, junho 10, 2005

higiene ficcional

nem eu sou capaz de mais, nem eu. acabo por voltar a ordenar as letras da mesma maneira, como múltiplos de sete em filas indianas, à espera de uma loja que abre na outra extremidade do quarteirão, um carro que passa com uma família feliz, um miúdo com a cabeça de fora e ele pensa, mesmo tão pequeno ele já sabe, um dia vou ter que repensar tudo isto e vai-me doer as costas, vai-me doer as costas como quando se apanha sol a mais.

nem eu sou capaz de mais, as unhas crescem-me pelos pés e uma voz canta do outro lado da parede do quarto. no prédio há vizinhos que me dão as boas noites quando eu volto, mas não lhes conheço as caras nem os nomes. se eu me sentasse a uma mesa a tentar fazer listas de nomes era incapaz de constituir uma família que fosse, o miúdo do carro a apanhar vento na cara e a chorar, o vento seca as lágrimas, isso aprende-se logo quando se é novo.

nem eu sou capaz de mais, fecho a janela e arrumo as canetas numa gaveta no topo do móvel cá de casa, todos os papéis em branco para o papelão, eu a percorrer o quintal com quilos e quilos de papel nos braços, os vizinhos que me dão boas noites ao verem-me a passar, a minha cabeça que processa as coisas muito ao contrário, vinte horas depois entendo um sorriso, um dia depois compreendo um pedido, eu que fico no café a rir para as paredes, o miúdo a crescer e a não gostar do corpo que tem, no carro, no banco detrás.

cola

voltaram os dias de calor, melhor, voltaram os textos do calor, em que a personagem se vira na cama até ser expelida pelo colchão, pelo único lençol que suporta, empurrada aos tombos pelo corredor até à cozinha, agarra numa garrafa de água, bebe uns quantos golos a custo, a garganta cheia de noite, cheia de calor, nem a água entra, a cabeça pesada e o pescoço que estala, acabando por se sentar em frente ao computador.

voltaram os dias de calor e os textos ressentem esse bafo quente que entra pelas janelas que ficaram abertas a noite toda, uma ou outra palavra ameaça derreter, o cabelo colado na testa da personagem, sem banho nem nada, sentada em frente ao computador e a ligar-se a um chat, a pensar quem se liga a um chat num feriado de manhã, porque depois ninguém fala, são dezenas de personagens suados a olhar para écrans de computadores sem sequer digitar uma palavra.

voltaram os dias de calor e é feriado, a personagem lembra-se finalmente de ligar o rádio e ouve a mesma música que passa todos os dias à mesma hora, música de hora marcada, sempre o mesmo programa, vejamos, dezenas, talvez centenas de personagens assim, iguais, a fazer o mesmo sempre a mesma coisa, e outras tantas personagens por trás, outras tantas a ver as centenas da frente a fazer o previamente acordado, sempre a mesma coisa, sempre a mesma coisa.

quarta-feira, junho 08, 2005

"far west boy"

eu gosto de ser o teu "far west boy". principalmente nestes dias de calor, eu ando devagar pela cidade e sinto o vento quente, que podia ser acompanhado de pó do deserto, a colar-se-me à cara. prendo os dedos no cinto das calças e lá vou eu, a marca cada passo com muita lentidão, o corpo que ginga em câmara lenta, a imaginar um copo de salsaparrilha no fim da história.

eu gosto de ser o teu "far west boy". o suor vai-me marcando a pele, prendendo-se entre a barba que me cresce pela face. há senhoras velhas que passam para a missa, mas eu sigo imperturbável. quando pela uma da tarde o sol está a pique, abrigo-me e peço uma água fresca a um balcão qualquer, onde podia ser o descanso do guerreiro. mando-te uma mensagem e tu sorris-me a quilómetros de distância.

eu gosto de ser o teu "far west boy". mas aqui o meu oeste não é bem velho, é uma cidade de provincia junto ao mar, e por isso há dias em que eu calço uns chinelos e vou ver a praia, andar descontraído e sentir a brisa a refrescar-me as ideias. a minha praia também é famosa pela nortada e eu sento-me na areia a ler poemas do ruy belo enquanto estudo o estranho vôo das gaivotas ao longe. é esta a minha maneira de ser o teu "far west boy".

aqui dentro de casa

aqui dentro de casa, como eu não me fui aperceber disto, aqui dentro de casa, sempre tão cuidadoso lá fora, sempre a aconselhar, a avisar, a andar pela rua e as pessoas a chamarem-me senhor, a entrar nas lojas e as meninas que me tratam por doutor, e logo aqui dentro de casa, como eu não me fui aperceber disto, dentro da minha própria casa.

eu que trabalhei tanto a vida inteira, sempre a ser um rapaz sério, sempre a ser um homem de respeito pela cidade toda e depois, aqui dentro de casa, fazerem-me isto, aqui dentro de casa, não que a culpa seja da minha filha ou do meu filho, da minha esposa ou de mim próprio, talvez de mim só, porque sempre tão fora de casa e aqui dentro de casa isto.

aqui dentro de casa, eu muitas vezes inclino-me a falar com deus, a pedir-lhe ajuda, a pedir-lhe uma razão, porque uma razão serviria para explicar, serviria para aguentar, arrumar as coisas nas respectivas gavetas, porque eu sempre tão bem e sem me aperceber de nada disto, aqui dentro de casa, logo aqui, onde eu sempre confiei, dentro da minha casa.

terça-feira, junho 07, 2005

certeza

olhou para mim e disse, estás apaixonado, como se desse uma chapada na cara, eu a gaguejar, estou não estou, sem conseguir dizer nenhuma destas palavras direito, estou não estou, acabo por rir, talvez não tenha mesmo jeito para actor cómico, as palavras a encavalitarem-se todas na minha cabeça, ela olhou para mim e pumba, uma certeza dita assim como ela diz sempre, estás apaixonado, pois estou.

olhou para mim e virou logo a cara para o outro lado, é preciso dar-se sossego aos indigentes, pensa ela, e eu a descair pela cadeira da sala, um cão a saltar-me aos joelhos, a sorrir e a suar, está um calor dos diabos, ela a olhar para as cartas em cima da mesa, a fazer contas devagarinho num caderno quadriculado, e depois vira-se para mim e pumba, a certeza, a sentença, e mais nada. (depois virá sempre dizer que não foi bem assim, e pronto)

olhou para mim e riu-se, já demais habituada a ver-me a ir e vir em envelopes do correio, a minha cabeça numa efervescência que nunca pára, que não tem travões, estás apaixonado, estás parvo, estás isto e aquilo tudo ao mesmo tempo, as palavras a lutarem umas contra as outras na minha cabeça, a minha boca a vê-las fugir de sílabas trocadas, ela olhou para mim e pumba, assunto arrumado.

espaço verde

podias deixar-me aqui plantado, neste espaço verde que separa as estradas em que vamos, tu para um lado, o mundo para o outro, podias deixar-me aqui plantado, eu ganho raízes facilmente, cresço à custa de chá e bolinhos, venha o tempo quente, venha o frio, armam-se os ramos com arames, há sempre um suor que nos rega.

podias deixar-me aqui plantado, todos os dias de manhã vinham os jardineiros da câmara molhar-me os pés, eu sorriria e diria tontices, como digo sempre, um cão faria xixi nos meus joelhos, eu nos meus arames, como ando sempre, a crescer com chocolates e sumos de laranja que me dão quando faço cara de mim.

podias deixar-me aqui plantado, está sol, dá para ver os carros a passar, uma ou outra pessoa que passa e conta uma história ao neto, avôs resmungões também os há, mas esses moram nos andares de cima e já ninguém os visita, deixas-me aqui, ligas-me a rádio internacional num posto alemão e eu fico a imaginar-me vegetação europeia.

segunda-feira, junho 06, 2005

tudo bem

cidade é coisa sem asas, já se vê, e depois porque havemos de esperar que elas levantem vôo, se transformem, se façam nossas? cidade é coisa sem asas, asas são braços sem dedos, as mãos estão seguras nas mãos, não é? encosta a cabeça para trás, deixa o sol entrar pela janela, a minha mão na tua, sim, e depois ouve baixinho, vai correr tudo bem.

cidade é coisa sem gente dentro, sabes, um homem sai daqui e quando lá chega está igual, é homem na mesma, cidade só por fora. por isso ficam os pratos de melbourne na imaginação e a cabeça encostada à janela da loja, a ver senhoras típicas cá em baixo. está calor, por dentro. sim, estou a falar de dentro do teu coração.

cidade é coisa como as outras, quem não sabe, e nós agora temos aldeias onde passeamos descalços, a sorrir, abraçados. o meu corpo e o teu, assim pela rua, dá para ver na sombra, são um só. tu resguardas-te debaixo do meu braço e eu levo a cara levantada a sentir o vento e o sol. vou-te a dizer baixinho, vai correr tudo bem.

domingo, junho 05, 2005

mágoa são cinco letras

ir e vir e este silêncio todo, estas palavras todas que ficaram por aqui, sem ninguém que lhes tocasse. engraçado como ainda ontem falavamos em frente a garrafas de água gaseificada sobre esta necessidade de alguém que nos leia. ir e vir e este silêncio todo, e se ninguém me lê, escrevo para quê, para quem? vim a estrada toda a pensar em palavras, em palavras. ir e vir e todo este silêncio, todas estas palavras.

ligo a música dos teus rapazes do sul e fico sentado a sentir o calor cá de casa. quando fecho os olhos lembro-me da brisa do mar de espinho, essa aldeia com ruas geométricas e cafés nova york de onde se vêem senhoras de saias e aventais pretos a atravessar a estrada. ligo a música dos teus rapazes e lembro-me de coisas que se passam muito devagar entre nós. e sorrio, como um tonto.

ir e vir e este silêncio todo. apetece-me repetir, ir e vir e este silêncio todo. tantas e tantas palavras. aquele quarto de pensão sem nada nas paredes, aquele quarto de escritor maldito, sinto saudades. ou não, não sinto saudades nenhumas, mas há um qualquer sintoma de privação que me agrada. agora é ficar aqui sentado a sentir o calor cá de casa. este calor todo só do lado de fora.

sexta-feira, junho 03, 2005

almoço

estamos um de cada lado da mesa, mas eu sinto-me a ser puxado pelos teus olhos para dentro de ti. de repente, parece que não há mais ninguém neste centro comercial super frequentado. não vemos pessoas, não vemos empregadas que nos tiram os pratos da frente, não vemos sequer as horas que passam. estamos um de cada lado da mesa. mas não é isso que se sente.

fico a sorrir para ti, no meu ar atrapalhado. repito-te imensas coisas que já te tinha dito, como se eu falasse sempre da mesma coisa. apetece-me saber de ti e apetece-te saber de mim. ficamos assim a remexer os dedos sobre a mesa, da mesma maneira que se mexe em grãozinhos de areia, quando se está na praia e o ar do mar nos faz conversar.

estamos um de cada lado da mesa, mas eu sinto-me a ser puxado pelos teus olhos para dentro de ti. penso nisso e atrapalho-me, outra vez. mesmo assim não ficamos sem nada para dizer. continuamos a falar, naquela ânsia de saber mais, como se soubessemos um do outro há já muito tempo. e depois, os teus olhos. já nem os pratos, nem a mesa, nem coisas nenhuma. só eu e os teus olhos.

quarta-feira, junho 01, 2005

dia da criança

não é preciso fazeres esse ar de durão, eu já sei quem tu és, não há cara de mau que possas fazer e mudar aquilo que eu sei de ti. não seria sequer mudar, seria esquecer. e eu não esqueço as coisas assim. portanto, deixa de lado essa cara de mau, esse jeito de mandão, qual dom quixote a querer derrotar moinhos de vento. vá, endireita essa camisa, puxa os cabelos para trás. sim, sim, estou-te a pedir um abraço.

não era preciso pores-te a mandar essas mensagens e esses e-mails cheios de asneiras. as pessoas não fazem mal umas às outras, põe isto na cabeça. ninguém anda aqui para te perseguir. o que acontece é que cada um, na sua nervosa ânsia de fazer o bem, dá umas pisadelas aqui e ali. parece o baile da festa da Serra da Vila. entra-se com os sapatos engraxados e sai-se com eles cheios de marcas dos sapatos dos outros.

sim, eu abraço-te, ou não era isso que tu querias desde que aqui chegaste? eu também sei que não sou a pessoa mais fácil do mundo, que até eu faço cara de mau e digo coisas feias. mas depois vêem-me estes momentos de clarividência, ou parvoeira como tu também gostas de lhes chamar, e ponho-me a dizer verdades universais a torto e a direito. é um bom abraço, este abraço, é.