Arquivo do extinto blogue Esferovite- a vida em pedaços (13-08-2003/ 4-01-2006)

sábado, janeiro 31, 2004

Grande Entrevista

A partir de hoje os leitores deste blogue vão poder enviar as suas propostas de perguntas para uma longa entrevista que virá a ser publicada aqui num futuro próximo. aceitam-se todas as participações, não havendo limite de perguntas por leitor.

enviem-nas para olhos_de_prozac@hotmail.com

impertinente

acho que continua a não ser dia de te dizer o que esperas que eu te diga. não, não vai ser hoje. não porque tenha que adiar seja o que fôr. não que eu não saiba até o que vou dizer e tudo isso. não que eu esteja com dúvidas em te dizer estas coisas. não, não se trata mesmo de nada disso. acontece que, muito simplesmente, não me apetece falar.

arrumei a mala e telefonei-te a dizer que não podia ir. isso mesmo, não podia ir. tentei arranjar a desculpa mais esfarrapada que me veio à cabeça. como dizer que amanhã vou ficar constipado ou que a minha tia ficou de me telefonar. tu engoliste e foste sozinha. hoje vais dormir sozinha, naquele quarto de hotel. provavelmente, antes de adormecer, ainda vais olhar para o espaço vazio ao teu lado na cama. eu vou estar a desfazer as malas no meu quarto.

amanhã vai chover, diz o homem do noticiário. tenho o guarda-chuva encostado à minha porta, do lado de fora. na dispensa, umas galochas, que calço nestas fases de temporais. tu vais telefonar para me acordar de manhã e para me contares que tipo de coisas estás a pensar. eu vou estar ensonado e vou-te ouvir falar de muitas coisas que não percebo. depois vou desligar e voltar a adormecer. um destes dias virás até minha casa e faremos amor. é assim.

terça-feira, janeiro 27, 2004

lost in translation

isto aqui é sobre liberdade. liberdade para se fazer. para se ser. e começa no cenário mais triste no mundo.

num hotel de arranha-céus, sobre um mundo só cidade, só casas casas casas, sem nada de íntimo, um homem, uma mulher, questionam-se dos seus mundos. ele, na crise dos 50, actor defraudado, endeusado por quem nunca reconheceu. ela, na crise dos 25, recém-licenciada, casada, a perguntar-se quem é a pessoa com quem casou. o encontro dá-se no local mais provável do mundo. o bar do hotel.

ele é divertido, embora tenha sempre cara de quem vai gritar com as pessoas. ela é doce, aparentemente inofensiva. mas defende-se. ficam juntos e decidem explorar uma cidade que parece não dormir. e o roteiro inicia-se. atraente.existem surfistas no japão. disso não me esquecerei.

há também uma mulher muito chata que canta todas as noites no bar. e a ironia sobre isso. e o erro tradicional dos homens. e a crença das mulheres. está lá tudo. como numa caixinha que se guarda no topo do armário do quarto.

no final, a sensação de que realmente há algo que fica irremediavelmente perdido na tradução. podemos somente tentar imaginar o significado de tudo aquilo. mas garanto que não há melhor argumento para nos juntarmos a um grupo de desconhecidos do que este filme.

acho que é por isso que ele é tão magnífico. isto é sobre liberdade.

domingo, janeiro 25, 2004

entrevista I

p- o que estás a ler agora
r- pena capital, mário cesariny

p-achas que a vida te anda a correr bem?
r-sim.

p-e aquela dor de dentes?
r- bem, talvez existam males que vêm por bem. o que não é, manifestamente, o caso

p- o que é que isso anda a originar?
r- noites mal dormidas, dificuldades em comer bananas e sandes de torresmos, pensamento influenciado.

p-o que pensas fazer amanhã?
r-amanhã espero poder voar de olhos fechados. não sei, talvez vá ao cinema, talvez vá ver a sofia coppola.

p-o que achas desta entrevista?
r-acho que é uma boa ideia, para quando não nos apetece escrever, só falar.

sexta-feira, janeiro 23, 2004

aquela dor de dentes

fecho-me dentro do carro e fico a ver a chuva a cobrir todo o comprimento do vidro. em poucos minutos, já não vejo nada do lado de fora. já não vejo o mar.

abro o livro na página que tinha ficado marcada e leio. leio devagar, silencioso, e a pouco e pouco vou levantando a voz, exaltando a minha leitura.

ligo o carro e conduzo-me por estradas secundárias durante mais de duas horas. oiço rádio. penso em coisas, nas minhas coisas. digo asneiras.

chego sempre a qualquer lado, muitas vezes a lugares em que não me agrada estar. páro. escuto. saio. entro. servem-me um copo de vinho e tratam-me pelo nome que quase ninguém me trata. corto pedaços pequenos de chouriço com uma navalha.

aqui sentado, relembro quem me dizia ontem que todos os escritores são narcisistas. pois. eram onze da noite e ele falava de uma mulher que o amava mais que tudo. pois.

gosto de ficar em silêncio. por não saber muito bem o que dizer.

quinta-feira, janeiro 22, 2004

dn jovem

porque uma boa crítica à minha literatura tem sempre lugar garantido neste espaço, aqui está o que os senhores editores do DN Jovem acharam do texto "fode-me", já anteriormente colocado aqui. (é procurar nos arquivos)

passo a citar...


"Luís Cristóvão - Embora em livro tudo seja possível, dependendo da perspectiva e da responsabilidade do editor e dos distribuidores, num jornal não é admissível um título assim. Quanto ao conteúdo propriamente dito, as opiniões dividiram-se. Houve quem achasse bem articulado, com bom ritmo, ainda que não conduzindo a lado nenhum em termos de ideias, e houve quem achasse banal e sem nada de novo. "

a eles, o meu sincero obrigado.

vladivostok

passo horas a pesquisar na internet para ver se te encontro num dos sites de pornografia. não és especialmente bonita, não és especialmente atraente. aliás, a primeira coisa que te disse foi, fecha essa boca que tens riso de saloia. tu fechaste a boca e abriste muito os olhos como quem pensa que raio de gajo é este que me diz isto ainda antes sequer de me perguntar o meu nome. no entanto devez ter gostado, sentaste-te na mesma ao meu lado no autocarro. sentaste-te e começamos a falar. that's the way good friendships begin.

passo horas a pesquisar na internet para ver se te encontro a despir, fotograma a fotograma, a camisa. sentaste-te no autocarro e começaste-me a falar da tua vida. que te aborreces, que te esqueces, que mandas à merda. tens um namorado tão bronco como tu. não és especialmente bonita, não és especialmente atraente. tens um namorado bronco. como tu. sentaste-te ao meu lado e começaste. a tua vida, a tua casa, a tua faculdade. repeti-te, fecha a boca, não rias. tu pousaste a tua mão na minha perna e disseste que eu era engrançado. tens um namorado tão bronco, como tu.

passo horas a pesquisar na internet para ver se te encontro. porque um dia te apeteceu ir ao fotógrafo e pedir-lhe que te fizesse um ensaio, uma dúzia de fotografias a fazer strip. és tão bronca como a tua mãe e o teu pai, os dois fechados em casa a ver a telenovela e tu no estúdio, a estudar, como se faz nos estúdios (pois!). falaste-me da tua vida, das tuas mamas, das tuas pernas. disseste, és engraçado e abriste a boca que eu te tinha mandado fechar. às vezes apetece-te beijar gajos brutos como eu, mas eu não deixo que gajas broncas como tu me beijem. sentaste-te ao meu lado e eu tenho medo que certas coisas sejam transmissíveis. como tu. o teu namorado tão bronco. a tua vida. o teu sorriso.

passo horas a pesquisar na internet, sites porno, sites porno, sites porno, sites porno. amadoras, amadoras, amadoras, amadoras. convidaste-me para ir tomar café à tua faculdade e eu fui. gente bronca. faço estas coisas porque gosto de me sentir jovem e incosciente como nunca fui. passo horas. como tu. a tua vida, a tua casa, a tua família, a tua. tu. o teu namorado. passo horas na. internet porno. a ver se te vejo, fotograma. fotograma, como tu. sentaste-te ao meu lado e disseste. fecha a boca. às vezes apetece-te beijar gajos brutos como eu. não. o teu namorado, bronco, como tu. disseste-lhe que as fotografias estavam dentro do carro, debaixo do lugar do condutor. não as leves, bruno, não as leves. como tu. passo horas na internet.

sms v. 1.0

bardamerda aos meus amores

que agora é que me vieram as dores.


segunda-feira, janeiro 19, 2004

tiros

ela olha-me de soslaio, como se preferisse não me ter visto no café, como se fosse melhor fingir ignorar-me ou ter vindo cá a outra hora qualquer. vai dando passos cada vez mais lentos enquanto se aproxima da minha mesa, onde fumo uma cigarrilha com olhar superior, propositadamente estudado para esta ocasião. acho que isso a enerva, porque começa a sorrir, sem conseguir disfarçar o olhar assustado. aproxima-se de mim e beija-me nos lábios. senta-se. e faz a pergunta: ainda gostas de mim?

eu mando uma enorme bola de fumo para cima da mesa, espalhando-se este por cima do café, do jornal e dos livros que tinha desarrumados entre as migalhas de um bolo e os pacotes de açucar vazios. olhei-a com um olhos paternalistas, como se não estivesse a perceber nada da conversa. "que raio de ideia, claro que gosto de ti", menti-lhe. ela sorriu de novo, ainda mais nervosa. já leste o jornal de hoje, perguntou. eu continuei a fumar como se não a estivesse a ouvir. ela falava cada vez mais baixinho.

abriu-me o jornal na página de opinião onde, curiosamente, estava um artigo meu que mal dizia uma peça de teatro apresentada na última semana. a peça de teatro que ela estava a encenar. a peça de teatro que ela dizia que era a melhor coisa que tinha feito na vida inteira. eu, simplesmente, escrevi o pior que pude sobre ela. porque aquilo era mesmo mau. porque não me apetecia ser bonzinho só porque a andava a foder. disse a verdade. odiei a peça. mas ainda gosto dela. sou capaz de a continuar a foder. embora desvalorize totalmente quem faz coisas de merda quando tem oportunidade de apresentar uma boa obra. dei mais um bafo na cigarrilha e sorri-lhe. ela levantou-se e disse-me adeus. eu desejei-lhe boa sorte.

sábado, janeiro 17, 2004

limpeza automática

estou a arrumar as peças, as coisas, as roupas que deixei espalhadas pelo chão do quarto. tento fazê-lo o mais devagar possível, numa lentidão extremada e incongruente com tudo o que resta de mim. apanho as coisas e olho em volto, como que a procurar o lugar onde pertencem. há certas decisões na minha vida que me pesam, certas definições que imagino nunca vou conseguir encontrar. estou a arrumar as peças. esscrevo-te isso numa mensagem. estou a arrumar. mas não encontro o lugar das coisas. sento-me na cadeira. respiro.

espanta-me pensar na respiração. e também me põe nervoso, acho. é que mais tarde ou mais cedo vou deixar de pensar e depois fico com medo de deixar de respirar também. tudo isto vai originar uns minutos de pânico, entre a incerteza de estar a respirar e o nervosismo de me aproximar um pouco mais da morte. isso aí acaba por ser verdade, em cada momento que passa, em cada mais ligeiro momento, estou um pouco mais perto da morte. geralmente não penso nisso.

ponho-me em pé em cima da cama para tentar substituir a lâmpada que se fundiu. estico o meu corpo pequeno para esse gesto, mas a cama é demasiado baixa e o tecto demasiado alto. ajoelho-me e penso em alternativas. estou a respirar, a respirar cada vez mais perto da morte. e aqui às escuras, nem sei bem porque penso nisso. tenho o quarto desarrumado, com as coisas todas fora dos sítios onde pertencem. noto que cada coisa que penso ou faço pode ter sempre mais que um leitura. normalmente não penso na morte.

quinta-feira, janeiro 15, 2004

querer ir e não saber onde

enquanto puxo o fecho do casaco até ao pescoço, vou descendo as escadas e sorrio por dentro. agora tenho a certeza, tu não percebes nada de gajos. confesso que me conseguiste enganar este tempo todo com as tuas teorias para tudo, as tuas justificações anatómicas, as tuas ideias machistas sobre tudo e todos. mas agora, agora que te vejo tão bem no escuro desta noite que acabou, sei que não percebes um chavo de gajos. mas é que não percebes mesmo nada. procuro um cigarro no bolso das calças mas só encontro um maço vazio. dou um grito. a rua está deserta.

essa tua mania de andares sempre de um lado para o outro a rir, a tentar dar nas vistas, essas merdas, lamento dizer-te, mas isso fica-te mesmo mal. não é nada de pessoal, já te o disse há muito tempo. e se alguma vez te sugeri que te queria levar para a cama, sabes muito bem que foi por nunca ter querido levar-te para a cama. se percebesses alguma coisa de gajos, terias percebido. mas assim não. finges só que não ouviste. finges só que não leste nada do te escrevi nos e-mails. fazes só de conta que tens imensos gajos atrás de ti. eu dou mais uns passos enconstados às montras e sorrio, outra vez. sim, tens um monte de gajos atrás de ti. mas são todos idiotas e estão a olhar para a gaja de mini-saia que está na mesa ao lado da tua.

falas muito mas continuas a beber suminhos naturais, filha. sim, é mesmo verdade. neste preciso momento existem milhares de gajas que sem nenhuma teoria, sem nenhuma provocação, sem nunca sequer se terem sentado numa esplanada a fumar tipo sapo, milhares de gajas, que estão a ser fodidas por outros tantos milhares de gajos que lhes estão a dar um prazer daqueles de subir a paredes e de chorar por mais. e nenhuma delas se está a queixar de no fim ainda ficar com o sémen deles guardado algures entre o preservativo e os lábios. por isso chora, filham chora. porque não percebes nada de gajos. e nem tomates consegues arranjar para beijares a gaja que se atira todas as manhãs ao balcão do café.

terça-feira, janeiro 13, 2004

usos indiscriminados de violência (ou a paranóia do gangster)

eu a tentar ouvir a música e o cabrão o tempo todo nas minhas costas a falar italiano. uma gaja a esganiçar-se ali à frente, com a letrinha toda estudada e à conta para caber dentro da música mal amanhada e o cabrão a dizer que em nápoles isto, em nápoles aquilo. comecei por bater o pé mas o mânfio nada. agitei o rabo na cadeira mas o gajo até parece que cada vez falava mais alto. a rapariga lá à frente a olhar desesperada enquanto parecia contar os minutos para a merda da canção acabar. o gajo a falar dos taxistas italianos e do diabo a sete. tirei a pistola do coldre e espetei-lhe um balázio no meio da testa.

não faz muito o meu género ir tomar café perto de escolas, mas o serviço, às vezes, obriga-me a estas cenas. a meio da manhã, exactamente naquela hora em que o pequeno almoço já lá vai e o almoço ainda não vem. um pastel de nata e um copo de leite, para acalmar as ideias estomacais. um puto a olhar para a televisão e a mandar bocas para as miúdas que passavam do lado de fora da montra. eu tentei saborear o pastel, que até era do dia e tudo, isto de se encontrar pastelarias frescas já não é assim tão recorrente. o puto com merdas, isto, aquilo. eu a beber o leite aos golinhos pequenos, para não queimar a língua. o puto a escarnecer-se todo. pum!

passear, à noite, por um jardim escuro não é, com certeza, o melhor desporto para alguém com os nervos em franja. mas depois de jantar bem em casa dos papás, apeteceu-me essa volta. pensei, porra, há que tempos que não andas um pedacinho a pé, é sempre carro para todo o lado. ando eu sossegado nesta volta escura, e apetece-me um cigarro. um banco no meio de jardim, atrás, uns arbustos. de lá de trás, risinhos abafados de namorados sem sítio melhor para onde ir. eu a fumar o cigarro, a tentar fumá-lo sossegado, e um não me toques aí, ai ai ai, abraça-me porra, estas merdas cochichadas atrás da orelha. um gajo a querer ter um fim de dia calmo, a tentar fumar um cigarro num sítio calmo, e logo alguém que não sabe que na rua há que ter os olhos abertos. dou duas passas mais no cigarro e os gemidinho continua. mão no coldre, outra vez.

domingo, janeiro 11, 2004

funky town

Uns velhos numa esplanada a tomar cafés uns atrás dos outros, ou copos de leite, ou sumos naturais, enquanto dezenas de senhoras mais ou menos novas passeiam as pernas rua acima, rua abaixo.

Um Sr. Dr. a espreitar da janela enquanto devia estar a ler um processo porque o cliente já estacionou na rua das traseiras do prédio e o julgamento é na próxima semana e, diga-se de verdade, o Sr. Dr. ainda nada leu, nem sequer lhe interessa, porque é preciso espreitar pela janela para ver se.

A menina da loja em frente está com vontade de, talvez hoje à noite, lhe dizer que sim para irem tomar um copo, cá não, talvez seja melhor irmos a Lisboa, vamos estar mais à vontade, e a menina sabe, em Lisboa é tudo mais arejado e há sítios tão engraçados, muito melhor do que cá.

O polícia a vigiar os cães que passeiam vagarosos pela relva e umas quantas crianças que saem a correr da escola em monte e acabam dispersas em carros onde há pais que não sabem quem são as outras crianças nem os outros pais, só sabem do colega do Golf cinzento e da menina do Yaris verde.

Muita muita gente fechada em casa a dizer que na rua não há nada. Muita muita gente a andar pela rua a lamentar-se de que em casa é uma tristeza.

Won’t you take me to funky town

sexta-feira, janeiro 09, 2004

da validade de comprar guarda-chuvas num dia de sol

Ainda que a protecção civil nos avise da tempestade que vem aí, insisto em caminhar vagarosamente pelas ruas de uma cidade que, assim, em dias de escola, me custa a reconhecer, por tanto gostar de caminhar, nas noites de nada, pelas ruas vazias que componho com passos de interdito prazer. Desci ainda há pouco do vagar de estar embrulhado em mantas(mantras?) e lençóis de um azul bebé capaz de fazer envergonhar o mais macho latino dos recém-nascidos no hospital distrital. Sentado num arrevesado banco do café, oiço na renascença ( período áureo da pintura neoclássica) o porta-voz dos bombeiros sapadores a fazer o relato exacto daquilo que a directora dos serviços de protecção civil acabara de lhe comunicar via telefone vermelho( afinal ainda existe!).

Vem aí uma tempestade dos diabos e eu preocupo-me em chegar mais devagar à passadeira do que o condutor de um toyota yaris descontrolado que se encontra ainda a quinhentos metros da minha existência na beira do passeio. Enquanto paro, para poder pensar, revejo-me naqueles idílicos dias de inverno em que na realidade chove e faz frio como nos verdadeiros e idílicos dias de inverno em que é quase natal e nós estamos fechados em casa com cinquenta graus de febre. O toyota yaris atropela uma poça de água que só por obra do divino ( Senhor! Senhor!) não me atinge as calças acabadas de passar a ferro. Sigo engomado pela avenida e sinto o sol que se encosta nos vidros dos edifícios a ferir-me a vista e a tentar fazer de mim um borgeano antes de tempo.

Contra todas as previsões que fui capaz de recolher nas estações de rádio locais e nacionais hoje faz sol. E a protecção civil aproveita para nos avisar de que, sim, a verdadeira, a real, tempestade, chuva frio vento tudo junto, vem aí. Acendo um cigarro e olho para o sorriso das meninas ( todas têm mais de dezasseis anos) que saem da escola e vão apanhar o autocarro para a casa delas. Entretenho-me assim nestes dias enquanto não fico irremediavelmente deprimido para o resto da vida e me fecho em casa ao lado de dez garrafas de vinho e um papel do médico a dizer que agora, sim, agora já posso ser maluco á vontade. São duas caixas de prozac, Sra. Farmacêutica.

A verdade é que na última semana apanhei umas quinze molhas, o que me levou a chegar atrasado e demolhado a outras tantas combinações com amigas, amigos, familiares, presos políticos, sardas, bancos de jardim, beatas esquecidas e um cinzeiro verde e amarelo que falava mandarim. Ao cabo destas aventuras fui obrigado a riscar do meu caderno de conhecimentos várias referências incontornáveis da literatura actual. Ao mesmo tempo perdi uma boa oportunidade de fazer amor com um cinzeiro, desiderato que perseguia há várias centenas de décadas. Hoje sou um homem mais constipado do que antes.

Ao passar em frente do comércio de origem asiática da minha rua levantou-se-me a questão de comprar um guarda-chuvas que me proteja de futuras tempestades, mas o sol cega-me a vista e o pensamento. Estamos em pleno inverno e nada me incomoda mais do que a chata da minha vizinha a enganar-se constantemente na porta e a acordar-me aos murros na dita e a gritar, ó Joaquim com que puta te fechaste aí dentro! Certamente continuará a chover pelo inverno fora e a minha vizinha não vai ter nenhum acréscimo de inteligência ( nem de ordenado) com o novo orçamento de estado. Resta-me voltar ao monte de mantras ( mantas?) que deixei sobre o sofá da sala e pôr o termómetro em alegre convívio com o meu sovaco direito.

Hoje faz sol.

quinta-feira, janeiro 08, 2004

ler a vida dos outros

para quem não o costuma fazer, vale a pena rever o blogue www.intensidez.blogger.com.br onde, numa chamada do dia 7 de janeiro, está um dos mais belos textos escritos sobre mim! obrigado, ana.

valium

chega o autocarro à paragem quando estou a apagar o cigarro na beira do passeio. tu já te foste embora há um bocado. fecho o livro sem acabar de ler o poema que me ocupava e procuro nos bolsos do casaco a carteira. certamente não a perdi, embora seja isso que eu pense de cada vez que ponho as mãos nos bolsos. como num pânico constante. retiro o passe e mostro-o ao condutor. tenho sempre o cuidado de desejar boa tarde ao homem. não sei bem porquê. talvez seja por ter consciência de que pode ser ele quem me vai matar.

recosto-me no lugar da janela e fico a olhar para os pombos a passear sobre a poluição deixada pelos autocarros na paragem. num dos bancos está sentada uma rapariga que conta os trocos com uma mão e mexe, nervosamente, no cabelo com a outra. tem um ar magriço, abandonado. a pele está marcada por muitas outras noites em que só o cabelo a impediu de se apertar o pescoço. conta os trocos convulsivamente, pois não tem moedas que justifiquem estar há tanto tempo a contá-las. olho para ela e penso que não terá frio esta noite. nunca tem frio quem já gelou.

sabes, o que eu penso sempre, sempre sempre sempre, é que estou fora do meu lugar. mesmo aqui, neste autocarro, rodeado por pessoas que eu não conheço, penso que não pertenço aqui. a viagem segue pelos altos e baixos da estrada, a rádio vai ligada passando músicas de que eu não gosto, por momento páro a olhar para o rabo de cavalo da mulher que vai uns seis lugares à minha frente, depois olho o forro dos bancos, o pé do homem que vai sentado ao meu lado, e o que penso, o que eu penso sempre, é que não pertenço a este lugar onde estou, não pertenço. no entanto, isso não me causa a menor perturbação.

quando chego à minha rua, saio do autocarro e surpreendo-me por não estar frio. aperto o cachecol à volta do meu pescoço e penso que não está frio. vejo pessoas a andarem muito mais depressa do que eu, em direcção a sítios que eu não conheço. oiço vozes a gritarem para telefones, a pedir ajuda, a resolver recados. há um carro que passa muito devagar mesmo ao meu lado mas não consigo descortinar quem o guia. sabes, tenho sempre a sensação de que está alguém a olhar para mim, alguém que me conhece e que está a ver, em directo, naquele momento, sem intermediários, todas as coisas que eu faço. quando fecho a porta do quarto é porque ainda sei o que é dormir descansado.

terça-feira, janeiro 06, 2004

sem gelo

desço a rua, que a esta hora é muito escura e está cheia de carros em cima do passeio, a pensar que não sou importante para o mundo coisa nenhuma, a pensar que mesmo que tivesse essa oportunidade eu iria dizer não, porque não me apetece, porque não quero ter que estar disponível, não quero estar acima de ninguém, o que agora me está mesmo a dar vontade de fazer é poder estar sossegado em casa, fechado no quarto, a ler, a ouvir música, a receber aqui e ali uma mensagem com uma palavra qualquer que me faça sorrir. sinto-me pequeno e é assim pequeno que me sinto bem.

não olho para a calçada porque sei, garantidamente, que ela continua por lá, exactamente no mesmo sítio.sinto-me despenteado e isso agrada-me. está um frio exagerado e fecho o casaco até ao queixo. penso que me sinto bem com este lugar, com estas ruas, com estes carros. penso que me faz bem falar, conversar, manter esta actividade de estar constantemente a inovar coisas cá por dentro. sinto que isso me garante alguma saúde mental ou, pelo menos, uma saúde mental minimamente exigível para nunca me sentir perdido. quanto muito, saberei o que me falta.

agrada-me a ideia de viajar, ainda mais para uma aldeia. agrada-me a ideia de passear por entre as árvores, ouvir o nada, saber que alguém caminha ao meu lado e que a conversa é agradável. é bom ouvir dizer que "é para isto que tenho amigos rapazes" e poder-te sugerir que um dia vamos ter sexo, mesmo sabendo que isso nunca irá acontecer. são coisas destas que me fazem pensar que há algures um mundo onde eu gosto mesmo de viver e que aí não é preciso nada ser importante ou fundamental. aí basta caminhar sabendo que a calçada está lá em baixo, no lugar de onde crescem os sonhos.

domingo, janeiro 04, 2004

agora que me decidi

a solução, basicamente, passa por não pensar muito nisso, agora que já me decidi a falar destas coisas aqui em público. aquilo que durante muitos anos guardei para mim, para os meus íntimos pensamentos, passo entretanto a divulgar publicamente, como se não tivesse qualquer controlo sobre as coisas que digo ou escrevo. o primeiro sintoma disso mesmo foi quando no elevador, ao dar de caras com uma vizinha minha, casadíssima à anos com um gajo que até é muito simpático, lhe disse que ela estava a ficar velha, que agora já não valia nem metade daquilo que ela era quando a conheci, há uns seis ou sete anos. ela ficou um bocado escandalizada, chamou-me estúpido, e acredito que agora me deixe de falar. mas o que querem eu que faça?

simplesmente não sou capaz de me controlar. chego ao café, ao pé de amigos meus, e insulto-os quando me dão as boas noites. agora digo tudo o que penso. chamo careca ao dono do café, que até usa capachinho, e faço manguitos para os velhos que se sentam na mesa ao lado, só porque eles são do benfica. digo a jovem que entra por lá que não o suporto e cuspo ao sair do café, digo que aquilo me mete nojo e coisas assim. é mau, as pessoas vão deixar de gostar de mim.

o pior de tudo foi o telefonema que recebi esta manhã. " Luís, o meu marido leu aquilo que escreveste, e está super chateado comigo. quer saber o que é que significa isto que escreveste. ele gosta de te ler, mas, se bem te lembras, em 98 já eu namorava com ele, certo?" eu fiquei atrapalhado, mas o que queres que eu faça? ainda tens o meu número, óptimo, vamos sair. mas ela é casada, fiquei a saber que tem um filho e que está farta destas minhas merdas, de eu estar sempre a voltar ao mesmo assunto, depois de lhe passar uns tempos sem dizer nada. mas agora que eu me decidi a fazer isto, o melhor é não pensar mesmo nisso. as pessoas vão deixar de me falar, mas, o que é que querem que eu faça?

sábado, janeiro 03, 2004

isto sou mesmo eu II

ponho-me, às vezes, a pensar, que tipo de coisas é que eu ando a fazer por este mundo. no meio de um livro que arrumado na minha estante e que agora retiro em busca de um poema ou de uma ideia, encontro cartas, cartas escritas como já ninguém me escreve, daquele tipo de cartas que eu também deixei de escrever. A carta que me chama a atenção data de 1998, e vem de alguém com quem eu já há algum tempo não tinha contacto a não ser um telefonema no sábado anterior. Não sei se a memória me trai, mas julgo que nesse sábado, passei a tarde a jogar computador. A certa altura, toca o telefone e alguém (ou a minha mãe ou o meu irmão) traz o telefone até ao andar de cima e entrega-mo dizendo, "é aquela tua amiga". lembro-me de ter ficado a falar com ela ao telefone durante algum tempo, primeiro meio envergonhado por não saber dela há tanto tempo, depois retomando a amizade que nos ligava, apesar de só conhecermos um do outro a letra e a voz via telefone. Esse telefonema foi interrompido pela hora de jantar, com um grito parental do andar de baixo.
o que eu estranhava nessas conversas, era a dose de intimidade que tão facilmente parecia eclodir de um mero encontro de ideias semelhantes. e é esse tipo de coisas que me continua a exaltar interiormente. na verdade, como é que eu posso ser tão fraco, tão frágil ao ponto de me sentir assim ligado às pessoas que ainda não se me mostraram? o que eu estranhava, e continuo a estranhar, é a minha facilidade em me entregar a alguém a quem não me estou a entregar minimamente. Não, não é para enganar, para trair a confiança dos outros. eu continuo a achar que é uma fraqueza minha. entrego-me para não perceberem que eu não me sei entregar. ao ler esta carta, agora que já passaram quase seis anos, apeteceu-me ir procurar o número de telefone dessa pessoa, dizer-lhe qualquer coisa, saber dela. apeteceu-me voltar a ouvir uma voz que eu não sei como é que sai de uns lábios que desconheço. apeteceu-me ir a correr dizer a essa pessoa, eu não fugi. eu nunca fujo. só para que ela pudesse pensar que isso é verdade.
espreguiço-me, entrecortado entre diferentes janelas do computador. estendo as mãos para a capa de um cd, e abro-a na página onde guarda a letra de uma música que me tem feito pensar. apetece-me transcreve-la. "não, ele não vai mais dobrar, pode até se acostumar, ele vai viver sozinho. é, desaprendeu a dividir, foi escolher o mal-me-quer, entre o amor de uma mulher e as certezas do caminho. ele não pôde se entregar e agora vai ter que pagar com o coração, olha lá, ele não é feliz, sempre diz, que é do tipo cara valente. Mas veja só, a gente sabe, esse humor é coisa de um rapaz que sem ter protecção, foi-se esconder atrás da cara de vilão. então não faz assim rapaz, não bote esse cartaz, a gente não cai não. Ele não é de nada, essa cara amarrada, é só um jeito de viver na pior. Ele não é de nada, essa cara amarrada, é só um jeito de viver nesse mundo de mágoa." isto veio da cabeça de um rapaz, brasileiro, chamado Marcelo Camelo, e está na voz da Maria Rita. a única coisa que consigo dizer depois disto é que não gosto nada de me fazer de coitadinho, portanto, não é por aí.

i'm a...

É assim: imagino-me a cantar num bar pequeno, fumarento, com um palco instável e na assistência algumas pessoas que não me dão crédito nem atenção. o dono do bar parece adorar-me, aliás, é essa a única explicação para eu ainda ter trabalho aqui. as pessoas parecem já bem fartas. talvez não seja de mim, talvez seja da vida. mas eu também não ajudo nada. repito o meu maior sucesso e esganiço-me para atingir o tom de " i'm a perverted..." os clientes habituais bocejam. os recentes, acendem cigarros. eu canto e penso que este bar é triste como o caralho.

quando arrumo o material, já a pensar como é que me vou meter no carro outra vez assim besano como estou, o dono da espelunca convida-me para mais um copo, diz que eu sou genial e pergunta-me se eu não lhe quero ir ao cu. eu já tinha percebido que tanta admiração tinha que meter sexo. eu agradeço a bebida e a genialidade. quanto ao cu, agradeço a simpatia, eu até ando com vontade de esgalhar uma, mas o cu deste gajo não me parece que seja solução. acendo um cigarro e pego na mala da guitarra. para a semana volto cá.

o resto da semana é sempre a mesma treta. uma série de velhos amigos donos de bares a aconselharem-me a mudar de reportório ou a arranjar uma banda que toque uns covers. eu a tentar ganhar para o tabaco a contar pulhas na saída do metro e a distribuir panfletos do dentista imparcial e do professor catapumba. e os gajos a mandarem tocar-me covers. mando-os para o caralho e passo as noites a tocar guitarra eléctrica agarrado aos phones, para não chatear a velha do andar de baixo. pego num copo de whisky marado que uma gaja me ofereceu no natal e escrevo umas merdas. olho para a janela mas é de noite e não vejo nada. um destes dias ainda acabo por ir ao cu ao gajo do bar. gosto de dormir sossegado.