Arquivo do extinto blogue Esferovite- a vida em pedaços (13-08-2003/ 4-01-2006)

terça-feira, agosto 31, 2004

amparo

no dia em que o pai morreu, decidiu colocar um anúncio no jornal que dizia "apareçam todos os herdeiros, temos dívidas para dividir". pode parecer estranha, esta atitude, mas havia várias coisas que sabia do velho já há imenso tempo. primeiro, que sempre fora um pinga-amor. ou melhor. que na incapacidade de aceitar o amor que tinha para dar, acabava por o distribuir por diferentes famílias, algumas casas de mulheres sozinhas e ainda um ou outro filho de uma noite mais entusiasmada. a segunda coisa era que todo este esbanjamento de amor lhe trouxera grandes dissabores orçamentais. daí o anúncio.

o mais normal seria ser surpreendido no funeral por algum filho e uma ou duas amantes arrependidas que aproveitariam o último adeus para apresentar as unhas à herança. mas, com o velho já internado há uma semana no hospital, com os diagnósticos sempre sempre a piorar, decidira-se a procurar o advogado e o contabilista dele. tudo aquilo que já sabia agora confirmado. para herdar, só mesmo as dívidas. e decidido a não causar nenhuma emoção extra-funerária à mãe, que esperta como era sabia do mesmo desde sempre calada, e pusera mãos à obra, ou seja, anúncio no jornal.

escusado será dizer que grande parte dos esperados não apareceu. talvez já lhe tivessem dado um último adeus à mais tempo atrás. ainda assim não deixou de aparecer uma jovem desamparada e a sua pequena, em tudo parecida com o cabrão do velho que o caixão levava, a tentar amparar-se no filho aquilo que não conseguira amparar no pai. ele tirou debaixo do casaco preto uma cópia do jornal e deu-lha para mão. informe-se, disse ele. e lá se foram os amparos com o primeiro punhado de terra.

segunda-feira, agosto 30, 2004

hipocrisia

Tenho a sensação de ouvir um barulho de água ao fundo do corredor. Não sei o que te traz até mim, mas tenho a certeza do que me mantém longe de qualquer tipo de decisão ou de acção sobre o mundo em que nos movemos. Tenho a sensação de ouvir um barulho de água e sento-me no chão, escorregando com as costas coladas pela parede do meu quarto. Olho os meus pés descalços e tento perceber-lhes uma qualquer espécie de poesia. Muitos poetas escreveram sobre pés, sobre caminhos a fazer, caminhos que precisam de ser feitos. Eu não sei desses caminhos, mas tenho a certeza do que me mantém perto dos meus pés. Há uma extrema poesia nesta nossa proximidade. Gosto de os observar descalços. Como muitos outros homens, avalio algumas pessoas pelos pés. Gosto de os observar descalços. Raramente acho uns pés bonitos. De qualquer modo, seria incapaz de os tocar. Um sentimento de repugnância invada-me, associado a esse pensamento.

quarta-feira, agosto 25, 2004

o porco

o porco entra e sai de casa como e quando quer. o porco é assim. anda com as costas tortas mas tem os olhos sempre fixos no interlocutor. mesmo quando não consegue abri-los. o porco não caminha, pisa. pisa o chão com toda a raiva que deus lhe deixou nas marreca das costas e arrota. arrota pelas mesas limpas das casas das meninas que visita. o porco entra e sai quando quer. o porco é assim.

não se pode dizer que cheire mal, o porco tem um cheiro muito peculiar. muitas das pessoas afastam-se dele quando o podem cheirar, apesar de ainda haver quem se aproxime. não se consegue explicar a atracção que um porco pode exercer. olhando bem para ele, numa segunda análise, ele não tem nada que nos possa interessar. mas há muita gente que gravita em volta do porco, que se deixa pisar, agarrar, pelo porco. o porco é assim.

na cama onde prolonga ao infinito as suas noites mal dormidas, o porco balança os seus muitos quilos de um lado para o outro. algures nas escadas do prédio, uma das suas bafejadas, remexe um saco de lixo à procura de provas irrefutáveis das porcarias que o porco faz. o porco ronca, ressona, peida-se. a bafejada ainda não o sabe, mas é tão porca quanto ele. o porco funciona assim.

domingo, agosto 22, 2004

dançar

telefonava-me todas as noites para me dizer, dança comigo, todas as noites igual, sempre mais ou menos à mesma hora, de madrugada, dança comigo, ligava-me de onde quer que estivesse, fosse longe ou fosse perto, dança comigo, dança comigo, dança comigo.

e bem que podia dizer-lhe, estamos longe, bem que podia dizer-lhe, dói-me os pés, bem que podia dizer-lhe, não temos música, ela voltava sempre a ligar, voltava sempre a dizer, dança comigo, pouco interessa, dança comigo, nada interessa, dança comigo, dança comigo, dança comigo.

e mesmo que eu quisesse dormir, e mesmo que eu quisesse gritar, mesmo que eu não quisesse atender, tudo era mais forte do que eu, tudo era mais forte do que eu, aquela voz dela, dança comigo, como se fosse música, dança comigo, como se desse mesmo para entender, dança comigo, um ritmo latino, alegre, dança comigo, dança comigo, dança comigo, enquanto eu batia o pé.

quinta-feira, agosto 19, 2004

acordar

é abrir os olhos e ver só o quarto escuro. é assim que eu acordo. o quarto escuro que me abraça, me aquece. acordo. abro os olhos e não vejo nada. só o escuro. depois, porque os estores não são assim tão eficazes, um pouco de luz da rua. depois, debaixo da porta, um pouco de luz do resto da casa. abrir os olhos, espreitar o relógio. números vermelhos fazem de horas. pego no telemóvel, olho quem me tentou acordar. é assim que eu acordo.

depois, a tua voz. sim, a tua voz. um sorriso espalhado pelo meu cérebro, com o motor do teu carro como ambiente sonoro. a tua voz a dizer-me bom dia. eu, no silêncio escuro do quarto. a sorrir. dizes, gosto da maneira como ris. eu rio. o escuro. a tua voz, a tua leveza feita de mim. eu rio. sinto-te sempre mais leve quando desligas. como se houvesse um peso muito forte que eu fosse capaz de te tirar de cima. a tua voz. sorrio.

é assim que eu acordo. o movimento da rua, os carros. a porta de casa que se abre e se fecha, vezes demasiadas para o meu sossego desejado. é assim que. acordo. a rádio ligada, as notícias, alguma música. assim. feito uma coisa qualquer, como se fosse normal um homem demorar tanto tempo a levantar-se da cama. é assim que eu acordo. sorrir.

acordar

é abrir os olhos e ver só o quarto escuro. é assim que eu acordo. o quarto escuro que me abraça, me aquece. acordo. abro os olhos e não vejo nada. só o escuro. depois, porque os estores não são assim tão eficazes, um pouco de luz da rua. depois, debaixo da porta, um pouco de luz do resto da casa. abrir os olhos, espreitar o relógio. números vermelhos fazem de horas. pego no telemóvel, olho quem me tentou acordar. é assim que eu acordo.

depois, a tua voz. sim, a tua voz. um sorriso espalhado pelo meu cérebro, com o motor do teu carro como ambiente sonoro. a tua voz a dizer-me bom dia. eu, no silêncio escuro do quarto. a sorrir. dizes, gosto da maneira como ris. eu rio. o escuro. a tua voz, a tua leveza feita de mim. eu rio. sinto-te sempre mais leve quando desligas. como se houvesse um peso muito forte que eu fosse capaz de te tirar de cima. a tua voz. sorrio.

é assim que eu acordo. o movimento da rua, os carros. a porta de casa que se abre e se fecha, vezes demasiadas para o meu sossego desejado. é assim que. acordo. a rádio ligada, as notícias, alguma música. assim. feito uma coisa qualquer, como se fosse normal um homem demorar tanto tempo a levantar-se da cama. é assim que eu acordo. sorrir.

quarta-feira, agosto 18, 2004

pegadas de sonhos

Num chão muito muito azul encontrei as pegadas dele.
Grandes grandes grandes como um camião.
Um camião vermelho que transporta, na auto-estrada, todas todas as alfaces que o avô Miguel colheu, no meio das cenouras e dos tomates e das batatas e do milho, no seu quintal e que agora vão ser vendidas no Mercado.

Nas pegadas dele eu podia fazer a minha casa.
Por entre os altos e baixos da sola do sapato faria uma sala,
Um quarto, a cozinha e a casa-de-banho. O resto da pegada seria
Um jardim. Um jardim da cor dos olhos dele.
Os olhos dele são de uma cor que não existe. Uma cor que às vezes é parecida com a chuva e outras vezes parecida com o vento. Uma cor que vem da água mas que também vem do fogo. Uma cor daquelas que nós nunca conseguimos ver, só imaginar.

Tentei olhar para longe longe, julgo que ainda era possível ouvi-lo.
Num chão muito muito azul encontrei as pegadas dele.
Azul como se diz do céu mas não o mesmo azul, um outro azul, como encontramos nos olhos, um azul como encontramos nas árvores, um azul como encontramos nas flores. Azul como se diz do céu mas não o mesmo azul. Azul como outro azul que não existe.

Nas pegadas dele eu podia fazer a minha escola.
Por entre os altos e baixos da sola do sapato faria as salas,
da Professora Maria, da Professora Joana e do Professor Joaquim.
Uma casa-de-banho, um refeitório e um recreio. O resto da pegada seria
Uma sala gigante. Gigante e cheia de brinquedos.
Como aquelas salas que nós temos nos sonhos, salas onde cabem todos todos os brinquedos, de todos os meninos e meninas, de todos os senhores e senhoras, brinquedos de todas as formas e tamanhos, brinquedos de todas as cores, possíveis de fazer todas as brincadeiras. Como aquelas salas que temos nos sonhos.

E eu corria corria, atrás dele, pelo caminho azul azul azul.
Tentei olhar para longe longe, julgo que ainda era possível ouvi-lo.
Ou então era uma música, a tocar muito muito baixinho, num rádio de pilhas, num quarto de um outro menino ou menina, lá longe longe, muito muito longe, na terra onde vivem os sonhos.

segunda-feira, agosto 16, 2004

livro de memórias

não escrever nunca um livro de memórias, deixar que o tempo se encarregue, docemente, de apagar todas as pequenas coisas de que não nos vamos lembrar nunca mais, todas as grandes coisas que se constituirão como surpresas quando forem recuperadas, nunca escrever um livro de memórias, nem guardar os diários de bordo, nem a agenda de reuniões, trabalhar só para o futuro, o passado vem connosco.

sair de casa sem levar as canetas nos bolsos ou papéis soltos dentro de livros, não usar livros para tirar apontamentos, não riscar as paredes dos outros, das casas de banho, nem as mesas dos cafés ou as revistas de biblioteca, ser uma pessoa normal, não usar referencias literárias nas conversas com o empregado do café, não discutir o final de nenhum livro numa agência bancária, resguardar conhecimentos e loucuras. ainda assim, permitir-se andar despenteado.

ter em mente, sempre, que as outras pessoas vêm as coisas de um modo diferente. não serão diferenças culturais, de educação, nada disso. é só tridimensionalidade. se eu te vejo o braço esquerdo, alguém te verá o braço direito. tendo isso em conta, nunca gritar para desconhecidos, nunca dizer, com toda a certeza do mundo que se tem razão, ainda assim, pode-se insultar o bandeirinha de um qualquer jogo de futebol. não vou escrever livros de memória, não vou. a última indicação diz que não se devem prolongar as mentiras.

domingo, agosto 15, 2004

sensual

no dia em que descobres que és sensual, as mulheres abrem mais os olhos quando passas e podes insistir num olhar mais penetrante, que elas o sentem como se fosses um mágico. nas mesmas mesas de café, estão os maridos delas que passam a olhar para ti desconfiados de que o espelho lá de casa poderá andar a dizer que há alguém mais bonito no mundo do que eles. tu endireitas as costas, escolhes, perversamente, uma mesa de café onde não só ela, como o marido, te possam ver. e depois enfias os olhos no jornal, como se nada fosse.

no dia em que descobres que és sensual, os teus amigos perguntam-te, desiludidos, se agora decidiste ser bonito. tu sabes que o esforço é mínimo. pentear o cabelo, colocar um pouco de gel, todo o restante ar desleixado e barba por fazer só ajudam ao teu brilhantismo. tu andas de carro, de um lado para o outro e páras nas passadeiras para poderes ver os desfiles dos modelitos das meninas. sorris, atrás dos óculos escuros e olhas de novo para elas, quando arrancas com o carro. elas pouco te vêem, nada sabem de ti. mas ficam a pensar.

no dia em que descobres que és sensual, as pessoas deixam-te passar nas portas, são mais simpáticas para ti, pensam sempre que és melhor do que na realidade és. tu abres e fechas livros quando estás em casa, podes até ser bruto entre os teus amigos. mas sabes que, quando olhas uma rapariga, ela percebe muito bem que a estás a olhar. e garanto que não é asco o que ela sente. nota-se isso pelo sorriso. por isso é que quando os maridos delas se levantam das mesas dos cafés, tu levantas os olhos do jornal que não estavas a ler e percebes que ela finge estar a arrumar sabe-se lá o quê na mala, só para ter o prazer de ser vista por ti mais uma vez.

sábado, agosto 14, 2004

|fragmento de diário|

onze da manhã: acordei com os dedos frios, a janela semi-aberta, o meu corpo abandonado sobre a cama que nem estava aberta. vestido, só as calças, as mesmas calças com que me lembro ter chegado a noite passada. ainda assim, abertas. levantei a cabeça da cama e senti o peso de tudo aquilo que não ficou por beber umas horas atrás. sim, sim, ressaca. só a muito custo consegui sair da cama, caminhar, arrastando os pés pelo corredor, até à casa de banho e aí, perante aquela luz fria, cair de joelhos. vomitei na sanita.

meio dia e vinte cinco: consegui tomar um duche, embora me tenha sido difícil entrar na banheira, tal a inércia de todos os meus membros e a fragilidade que se apoderou do meu cérebro desde que acordei. sento-me no sofá e tento reconstruir a noite. lembro-me de ter voltado a casa com as mesmas calças com que acordei. começar do fim. humm... estava com os copos, isso é claro. mas como? começar do início. fui jantar fora. éramos uns quantos, tudo malta lá da empresa. depois... bem... depois.

treze e quarenta e quatro: sim, o bar do andré. o bar do andré estava cheio de miúdas giras. sim. eu já estava com os copos nessa altura. o jantar foi para festejar a minha promoção na empresa. vou ser chefe de gabinete. o marcelo e o vitor também se embebedaram muito depressa. o lino levava o carro. falta aqui alguém, lembro-me de se queixarem que iam muito apertados no banco de trás.

catorze e vinte cinco: lembro-me que acordei com os dedos frios. e que ontem me esqueci de tudo. telefonei ao marcelo, estava desligado. o lino, o lino disse que me deixou à porta de casa com a joaninha. a joaninha... é a uma miúda do escritório, disse-me ele. hum hum... não faço a mínima ideia.

quinze e seis: vomito.

quinze e trinta e quatro: desligo o computador, arrumo alguns papéis de deixei em cima da mesa, de outros trabalhos. saio de casa. tenho que aquecer os dedos com o sol.

sexta-feira, agosto 13, 2004

direitinho

eu faço-me direitinho, para as fotografias. não é para ficar bem, mas lembro-me de ouvir uma avó ouvir que as fotografias são para sempre. portanto, faço-me direitinho. corto sempre a barba, visto sempre o meu melhor casaco, a camisa engomada. as fotografias são para sempre e eu vou ter muita gente para olhar pela minha entrada na eternidade. imagino filhos, netos, bisnetos, amigos, conhecidos. muita gente até que um dia alguém vai olhar para o papel e só ver uma foto velha. e eu quero estar direitinho.

hoje chamei o sr. andrade da máquina fotográfica. é ele o dono do salão fotográfico que abriu na praça central. ele apareceu depois do meio-dia, com a traquitana toda atrás das costas. não das dele. eram as costas do joãozito, um rapaz que trabalha comigo no campo. ele apareceu depois do meio-dia, depois da missa. eu nunca vou à missa. lembro-me de ouvir uma avó dizer que o padre lá da terra dela gostava de se agarrar às miúdas pequenitas, pedindo-lhes beijos em troca de rebuçados. nunca fui à missa. quando o sr.andrade chegou, eu estava no quarto a vestir o casaco.

faz hoje dois anos que morreu a Suzete, a minha mulher. era uma boa mulher, sempre atenta. hoje faço trinta e dois anos e estou no meu quarto a procurar um casaco. o sr.andrade prepara uma cadeira debaixo do alpendre, estuda a localização do sol, dá ordens à empregada para arranjar a roupa dos miúdos. pego no casaco. é castanho. ao chegar à sala olho-me ao espelho e treino a posição certa. experimento um sorriso. lembro-me de ouvir uma avó dizer, sorri sempre que sentires o coração apertado. debaixo do alpendre, lembro-me das coisas que já não vejo senão quando fecho os olhos. sorrio. faço-me direitinho.

terça-feira, agosto 10, 2004

curta-metragem

acho que se começa por apagar as luzes do tecto e deixar que a imagem do écran ilumine toda a sala. acho que é assim que se faz. de alguma maneira, tenho sempre presente a dúvida de estar a fazer as coisas certas, ou a fazer as coisas da maneira certa. acho que é assim que se começa. depois, ouve-se um som. ou pode não se ouvir som nenhum. pode ficar só um silêncio que não se percebe muito bem de onde vem. pensamos: de onde vem o silêncio quando nos apetece falar. olho à minha volta, estou sozinho.

depois sim, as imagens. uma atrás das outras. existem paisagens e existem pessoas. primeiro paisagens, como se voássemos, planando feito pássaros por cima de campos ou cidades. lá em baixo, muito em pequenino, uma pessoa. aproximamo-nos, tão perto que parece que os vamos beijar. aproximamo-nos e sim, essa pessoa tem algo de familiar. no entanto, só se ouve o barulho das folhas das árvores a tocarem-se mutuamente. pensamos: de onde vem o barulho das árvores quando vemos uns olhos bonitos. olho à minha volta, há uma mensagem de telemóvel por enviar.

no escuro não podemos ver as horas nos relógios. temos um livro pousado sobre os joelhos e apetece-nos esticar as pernas. de um lado e de outro, pessoas mexem-se irritantemente, como nós estamos irritados. as pessoas falam. as pessoas vivem. aquele alguém que nos parecia familiar, afinal, é só alguém muito distante. num outro dia qualquer, vamos vê-lo outra vez, a fazer-se passar por alguém ainda mais diferente, mais longínquo. isso pouco importa. é assim que eu acho que as coisas são.

sábado, agosto 07, 2004

ideias

podia ser uma dor de barriga ou uma ideia mal formada encostada à fronteira do meu crâneo. era ainda uma outra coisa, um carro a andar numa estrada escura, onde não passam mais carros, onde ninguém espreita de dentro das casas. podia ser vento, podia ser um beijo, podia ser do calor também, uma vontade maior do que as pernas, maior do que os olhos. uma ideia mal formada quando ainda estávamos no elevador. abrir a porta, correr para a casa de banho.

ainda assim, acho que me fica muito mal para a olhar para dentro da sanita, como se fosse um filme, aquela ideia de procurar-me por dentro, aquela aproximação às fezes, doentia, repetia o médico, acção doentia cíclica, e o mar alto cheio de marinheiros de barbas, com camisas brancas cheias de nódoas e um parto inesperado algures no meio do pacífico. passei a noite toda a sonhar com a minha filha, uma coisa pequena que me deixou a cabeça em água. sim, acordei preocupado, mas sosseguei ao reencontrar-me solteiro e só.

podia ser só uma dor de barriga, mas era muito mais que isso, sonhos e sonhos e sonhos, repetidos como frames de videocassetes velhas, o leitor de vhs que está avariado há anos, os velhos filmes italianos gravados da rai uno quando eu era a única pessoa com antena parabólica, a minha filha a passear-me sobre os livros, o meu quarto reduzido a um aspecto de pensão, podia ser uma dor de barriga, eu levantando-me da sanita aliviado, o suor a resfriar-me nas sobrancelhas, mas uma ideia mal formada, germinada, no meu crâneo.

quinta-feira, agosto 05, 2004

ao tirar dos óculos

vi-o no jornal, há uns dias, numa fotografia de há muitos anos atrás. estava sentado, calmo, calmíssimo. na mão direita, um copo de vinho, pela metade. pode-se, à primeira, pensar que o vinho se irá entornar, existissem uns olhos de sono atrás daqueles óculos, debaixo daquelq chapéu de lavrador. mas olhando bem, o que há por ali é harmonia. não sei porquê, mas imagino aquela sala a meia luz, silenciosa. só o clack da máquina fotográfica. sim, vivíamos nos anos setenta.

naquele tempo a música ouvia-se em gira-discos e os amigos encontravam-se uns aos outros junto à porta de casa de cada um. certamente não haveria muito para onde ir, a concentração era inevitavel. as pessoas, essas, eram também em menor número. mas isso agora não me interessa nada. o que me interessa é o facto de naquela noite, sim, porque só à noite se bebe vinho à média luz, naquela noite ele ficou só em casa, bebendo vinho, com alguém que lhe tirava fotografias. fosse quem fosse, estava por ele apaixonado. não tenho dúvidas. mais ninguém capta almas com máquinas fotográficas. só os apaixonados.

passados todos estes anos, olho a fotografia e apaixono-me. apaixono-me involuntariamente, rapidamente, como sempre me apaixono. esta semana a palavra amor rodeia muitas das palavras que profiro. não consigo explicar, só desconfio que me queira apaixonar. quanto mais impossível uma coisa nos parece, mais a queremos próxima de nós. e por isso vos lembro esta fotografia. não pelo homem, nem pelo vinho. pelo amor. pelo amor de uma lente fotográfica.

terça-feira, agosto 03, 2004

se até eu me faço mal

eu poderia antes dizer: tu vês a maneira como aquela pessoa anda pela rua: mas não, digamos que existem umas centenas de pessoas iguais a passar por aqui e por isso não adianta explicitar nenhuma característica desta pessoa em particular: ainda que a maneira como ele anda é evidentemente desastrada: mas também me parece muito mais importante destacar os escaldões deitados na praia neste dia de chuva: sim, chouveu lá na minha terra, há quem diga que pouco, eu não me molhei.

o que se vê da marginal são um monte de prédios separados por correntes de ar: lá ao fundo vê-se sintra mas só quando não faz nevoeiro: pela trafaria passam barcos grandes de milionários, embora não exista nenhum milionário na trafaria, nem nenhum milionário saiba que aquela esquina entre o rio e o mar tem esse nome: quando eu era pequena corria para as praias do fundo: na paragem do autocarro estão uma dezena de pessoas como as do parágrafo de cima, estão à espera do autocarro dos TST, estão infelizes, chove-lhes em cima: assim na rua como em casa, amén.

escrevo no caderno dos recados: vim o caminho todo até casa a gritar com a cassete dos beatles e sim, chorei: estava sozinho no carro e pûs os óculos escuros para ninguém ver: eu diria sempre que não mas hoje: é normal, meu querido, é normal: chorei mais quando ouvia o all you need is love: é normal, meu querido, é normal: abri a janela do carro, tinha óculos escuros, gritei: love, love, love: para uma senhora que via passar os carros e agora digo: é normal, é normal, se até eu me faço mal.

domingo, agosto 01, 2004

vila nova bossa nova

deixa cair as tuas mãos sobre as pernas, prende a viola debaixo dos braços e levanta os olhos para mim. eu, que estou aqui desde o início dos tempos, não deixarei de marcar o compasso na bateria, mas queria que fizesses um pequeno sorriso, um pequeno pequenino sorriso, como quem diz, estou aqui, vejo-te e sei que me amas. ou talvez preferiramos um outro qualquer exagero, talvez ficar a tocar a noite toda, a cantar a noite toda, essa nossa maneira de ficarmos calados.

larga a caneta, larga o bloco, larga o dicionário de rimas, larga tudo. podes deixar que tudo caia no chão, não há problema. levanta os olhos para mim. eu continuarei a tentar encontrar o tom certo para as tuas palavras, não as escritas, mas aquelas que tu irás ensaiar no momento em que sentires uma pequena, pequenina lágrima a cair pela tua face. sim, amo-te. tudo isso deveria ser tão fácil como encontrar o número de sílabas certas para fazer uma canção de amor.

olha, vamos sair daqui, procurar pela rua, mesmo que sejam já cinco e meia da manhã, um café, um bar, uma coisa qualquer, um sítio onde nos possamos sentar frente a frente, com uma justificação qualquer como, apeteceu-me hoje estar contigo, apeteceu-me hoje ver a tua cara, apeteceu-me segurar a tua mão, dizer amo-te, segurando uma chávena de café ou um copo de cerveja. ou então deixemo-nos ficar por aqui até que o sono seja mais forte do que as notas que tentamos tocar, e depois podes guardar o bloco na sacola, a viola na caixa e sair, como se sai para um dia normal.