Arquivo do extinto blogue Esferovite- a vida em pedaços (13-08-2003/ 4-01-2006)

sábado, abril 30, 2005

planos de sábado à noite

planos de sábado à noite: fingir que não sei de nada, que não oiço nada, que estou sozinho. planos: beber imperiais num café até ficar farto do mundo inteiro e ficar farto antes das dez horas da noite. planos: fingir que não oiço nada. fingir que não oiço este chato que se sentou ao meu lado e fala, sem parar, do benfica, da comunicação social e das cunhas, como se tu estivesse ligado, formatado, para o lixar. planos de sábado à noite: preferir não existir.

planos de sábado à noite: ler todos os teus textos como se fossem mensagens para mim e chorar. planos: tomar três, quatro comprimidos para dormir e cair na cama, na cama que eu não faço há duas semanas, que está suja e começa a cheirar mal. planos: não arrumar, nunca mais, o meu quarto, deixá-lo assim como está, com roupa pendurada em todas as portas e armários, caída pelo chão, com dois baldes cheios de roupa por passar a ferro. planos: preferir não existir.

planos de sábado à noite: arrastar as pernas até casa. planos: desligar o telemóvel, mesmo quando eu sou incapaz de desligar o telemóvel, porque pode sempre telefonar quem nunca telefona. planos: dizer a toda a gente que sou um falhado e as pessoas começarem a acreditar. planos: porque eu estou cansado de ser diferente e estou cansado de ser igual. planos: deixar-me ficar mal sozinho, assim como assim, ninguém quer ficar mal acompanhado. como nos filmes italianos. FINE.

sexta-feira, abril 29, 2005

Nove passos na escuridão

I
Deixo, em cima da mesa, um caderno em branco onde possas guardar,
Sempre que queiras, coisas da ordem do incomunicável ao próximo.
Depois da morte, voltaremos ambos a estas páginas
E procuraremos renascer no apagar das palavras.


II
O prédio está em silêncio, no seu repouso
Erigido à beira da estrada.
Sou capaz de imaginar alguma brisa,
Folhas de arbustos a correr assustadas.
No quarto ao lado, tu, adormecida e ausente,
Em sonhos. Levanto-me e apalpo
O trajecto reconhecido, a luz apagada.


III
Na cozinha, sento-me perto da janela.
O frigorífico remexe-se, eléctrico e molhado.
Não sei o que espero, quero ler na escuridão
Das casas vizinhas muitas outras sombras sentadas,
O prédio como hospício de pessoas perdidas.
Reconheço a cidade por um avião que passa,
Ao alto. Só nos perdemos assim, silenciosos.
De dia, ninguém ouve os aviões.


IV
Podia fechar os olhos, um escuro mais escuro,
A fingir-se tela de imaginações. Ouviria um rio.
O frigorífico. Pressinto a electricidade, no silêncio
Impossível desta casa. Penso em nomes,
Miguel, Pedro, Sérgio, Alexandre. Penso em movimentos,
Ataque, defesa, subida, descida. Cinco da manhã
De uma noite por existir, não pode haver distracção.


V
Para voltar ao meu colchão, passo pela porta do quarto
Onde dormes. Sim, estás lá. Procuro, no monte de roupa suja
Que deixei na sala, as peças suficientes para sair à rua.
Para não me denunciar, a escuridão. Paro junto à porta,
Afinal irrompe a respiração na ausência de sons.


VI
A casa, de noite, é uma sinfonia.
Nunca estamos sós, apagados.
Sempre alguém, algo,
Para nos dizer que existimos.


VII
Encontro as peças de roupa.
Não faço malas, não sei se me apetece voltar.
A carteira, os pensamentos de que nunca estou separado.
Mantenho as chaves do lado de dentro da porta.
Não faço barulhos.


VIII
Olho o poema, não me entendo na decisão do seu início.
Talvez o poema não comece exactamente na primeira palavra.
Talvez devêssemos virar tudo isto ao contrário.


IX
Deixo, em cima da mesa, um caderno em branco,
O meu recado. Vais fingir que eu nunca existi
E eu não vou voltar a procurar como dizer
Coisas que me doem. Depois da morte,
Talvez.


(Vencedor do Prémio de Poesia Arte Jovem 2005 organizado pela Câmara Municipal de Torres Vedras)

escritores (as)

ah, eles são assim, os escritores, enxotam-se como às moscas com uma cara pouco simpática ou não respondendo às mensagens que eles nos enviam a meio da noite. eles são assim, são mesmo assim, assustam-se com pouca coisa, basta um não e lá vão eles, de volta para a casa de onde nunca saem, escrever poemas sobre a rejeição e sobre os esgotos, é mesmo assim, não há que ter pena nem cuidados,pois, porque os escritores dizem todos que têm traumas de infância e problemas de relação com o mundo, os escritores dizem todos que não gostam da mãe e que precisam mesmo é de uma miúda bonita, vulgo musa, para lhes animar as tardes de ócio. mas com os escritotes faz-se sim, enxota-se, como às moscas, e é deixá-los para aí a beber cervejas em finais de tarde e a fumar cigarros baratos, desleixados da vida e do amor, perdidos, tristes, sim. são todos uns filhos da puta, mais aquela mania de saberem sempre o que as outras pessoas estão a pensar. eles são mesmo assim.

ah, elas são assim, as escritoras, aparecem e desaparecem como as nuvens da primavera, um tipo acorda e elas estão lá, um tipo vai à casa-de-banho e só encontra um "xau" escrito a batôn no espelho do quarto, elas são assim, pensam todas que vivem nos filmes de hollywood e passeam-se vestidas como se fossem estrelas do rock em psico-decadência. elas são mesmo assim, fumam cigarros em bares da moda e bebem sem pagar, coisas de barman estúpido, prometem o mundo com os seus olhos sensuais e acabam por nunca dar nada a ninguém porque as escritoras são mesmo assim, lésbicas encantadas com os seus pénis imaginários e grandes, bêbedas de fumo e de inocência escondida atrás de palavras duras, escrevem em casa quando não têm nada mais para fazer. elas são mesmo assim.

quinta-feira, abril 28, 2005

o livro

se eu poupar estes dezoito euros agora e não comprar o livro, como é que eu me vou entreter quando não tiver o que comer? estou parado em frente a uma prateleira cheia de livros e olhos as notas e moedas que tirei do bolso na minha mão. estou parado e a pensar. comprar ou não comprar. levar ou não levar. sei que um dia vou ter fome e não ter o que comer. tenho que ter alguma coisa para não pensar muito nisso. o livro.

ponho em cima do balcão três notas de cinco e um monte de moedas contadas quase uma a uma. falo em francês com a dona da loja e ela parece mais atrapalhada do que eu. ela guarda o dinheiro na caixa e põe-me o livro num saco. eu penso, parado na porta da livraria. se eu tivesse poupado estes dezoito euros. levo o livro na mão. sei que um dia vou ter fome e não ter o que comer. alguma coisa, alguma coisa nas mãos.

estou parado, em frente à passadeira, a caminho de casa. passam carros de um lado para o outro, sem parar. eu tenho o livro nas mãos e vou trocando páginas, procurando títulos. os carros passam e eu penso. dezoito euros gastos, moeda a moeda, euro a euro. porque um dia virá a fome e não haverá mais nada na dispensa para comer. e eu não vou ficar a chorar na cozinha, não vou. terei com que me entreter. o livro.

quarta-feira, abril 27, 2005

puxa por mim

estás a ver a minha mão? puxa por mim. não precisas de ouvir a minha voz a pedir-te, nem esperes que os meus olhos reflictam tudo aquilo que acontece cá por dentro sem dizer em palavras simples como as que devem ser ditas às pessoas que connosco partilham os dias. estás a ver a minha mão- e isso basta, acredita, isso basta- estás a ver a minha mão? puxa por mim.

estás a ver o meu e-mail na tua lista? puxa por mim. não precisas de esperar que eu te diga olá, nem esperes que eu me decida finalmente a escrever-te alguma coisa depois de ter andado três dias e três noites indeciso quanto ao escrever ou não- eis a questão, não? estás a ver o meu e-mail na tua lista - e mesmo que eu esteja entre quinhentos e-mails de desconhecidos- estás a ver? puxa por mim.

estás a passar junto à porta da minha casa? puxa por mim. não precisas de saber previamente se eu estou ou não estou, não precisas sequer de esperar que eu te tenha convidado através de carta registada e aviso de recepção com envio de mensagem prévia de confirmação. estás a passar junto à porta da minha casa - e a minha casa é já aí, mesmo já aí- estás a passar, estás? puxa por mim.

terça-feira, abril 26, 2005

na casa onde eu sempre morei

(para quem não sabe as palavras certas)

na casa onde eu sempre morei nunca faltou o pão. em cima da mesa, todas as manhãs, como uma encenação pobre de teatro português, um pão grande cortado em fatias finas. uma fatia para cada um, ouvia eu, ao esticar a minha mão pela segunda vez para o centro da mesa. éramos felizes, sim, também não sabiamos ser de outra maneira. não tinhamos conhecimentos para mais. eu ouvia dizer, cá em casa somos todos felizes, e achava que aquilo que eu sentia era felicidade.

na casa onde eu sempre morei nunca faltou o amor. era servido antes de adormecermos, com beijinhos e rezas, as crianças todas deitadas nas camas, o pai e a mãe em fila de procissão, beijinhos a um, rezas a outro. não era preciso pensar, para termos amor. bastava repetir as palavras na ordem certa. a opção de trocar as palavras, tinhamo-la. mas de seguida, o amor na ordem certa. eu ouvia dizer, amo-te tanto, e achava que aquilo que eu sentia era amor.

na casa onde eu sempre morei nunca faltou o mar. não tinhamos janelas nem portas, mesmo saindo da casa para fora, tudo o que se via eram paredes por todo o lado. cheirava a mofo nos quartos, tudo era escuro como se a casa inteira fosse um canto esquecido. mas depois, chegava um livro fechado dentro de um envelope, e eu abria muito olhos para o conseguir ler. talvez agora, ao olhar para trás, eu perceba que não havia nem felicidade nem amor naquilo que eu sentia. e, mesmo que se mantenha a incerteza quanto ao significado das palavras, eu sei que o mar nos chega pelo corpo inteiro ao simples referir da palavra mar.

segunda-feira, abril 25, 2005

Em resposta ao desafio de Nietschze que chegou via Luís do Rotação dos Tempos

Não podendo sair do Fahrenheit 451, que livro quererias ser?

Prefiro fazê-los a sê-los...

Já alguma vez ficaste apanhadinha(o) por um personagem de ficção?

O Antoine, da Náusea de Jean Paul Sarte... Tinha 17, 18 anos e encontrei finalmente alguém que podia ser eu fora de mim.

Qual foi o último livro que compraste?

Hoje mesmo, numa feira de velharias, em Santa Cruz, "Um homem Só" de Roger Vailland (para mim) e "Lisboa Trágica" de Albino Forjaz Sampaio (para oferecer)

Qual o último livro que leste?

O último que acabei de ler até ao fim foi "Bartleby y Compañía" de Enrique Vila-Matas

Que livros estás a ler?

Estou a ler as "Conversas com Deus-Livro 3", na minha busca espiritual, "Laços de Família" para conhecer Clarice Lispector, "La Nausée" de Jean Paul Sartre, em releitura, devido a um seminário da faculdade e agora em Francês. Tenho outros a meio e perdidos pelas diversas mesas da minha casa.

Que livros (5) levarias para uma ilha deserta?

Na verdade, ia-me sentir muito mal num lugar onde só pudesse escolher o que ler entre cinco livros. O mais provável seria acabar por não levar nenhum. Ou não, não, estou certo que levaria alguma coisa... Mas, como os escolher? Iria ter que deixar isso nas mãos da arbitrariedade. Pegaria em quatro livros que me sorrissem antes de eu sair de casa e compraria um outro a caminho da ilha.

A quem vais passar este testemunho (três pessoas) e porquê?

Não vou passar a ninguém. Vou esperar que quem o leia aqui se disponha a responder e a mostrar-me as respostas. Quem eu gostaria que o fizesse ( e ficam assim avisados) seria a Fabi da Nova Tabacaria porque tem toda a energia explosiva que uma louca deve ter ( e também me parece que vai ser uma grande escritora). A Alexandra do antigo Moro aqui porque este é o tipo de jogos que nós, "os jovens intelectuais" (bleargh), gostamos. A Jani e a Golgona porque, por muito que me falem, eu sei que fica sempre muita coisa por saber.

do lado de dentro

a questão não é tanto não estarmos a fazer o que devíamos, é mais não nos sentirmos culpados por isso. porque não há qualquer dia de trabalho que possa compensar um final de tarde passado a apanhar sol e a ler um bom livro, um final de tarde em que aparecem pessoas e onde a conversa escorre calma e sossegada sem pressa de chegar a lado nenhum. é, então, uma questão de culpa.

de alguma forma somos condicionados a tentar viver a vida por objectivos, como os contratos que toda a gente agora quer impôr. mas, por uma hora que seja, a cada dia, devíamos esquecer o contrato e concentrarmo-nos no objectivo. nós próprios. abrimos um livro na página em que o deixámos, há uns dias, e apanhamos sol sem óculos escuros e sem janelas com vistas tão boas. na rua.

então, podemos deixar de lado a agenda onde assinalamos, com tópicos, todos os deveres e afazeres que temos para o resto da vida. podemos até esquecer que um dia prometemos a alguém que íamos ser famosos ou bem sucedidos na mundo dos negócios. sim, o segredo todo está em conseguir ouvir o nosso próprio coração quando ele bate. o segredo todo, que afinal não é segredo nenhum, é conseguir sorrir sempre, sempre, mesmo que seja só do lado de dentro.

um homem grande

sou um homem grande, ando ao sol dentro de casacos e com o jornal debaixo do braço. sou um homem grande, olho para as pessoas por detrás dos óculos e coço a barba mal feita. sou um homem grande, tenho uma posta de peixe a descongelar na minha cozinha e olho livros velhos em cima de mesas, na rua, ao sol. sou um homem grande, sim, faço negócios. e sigo depois com papéis velhos dentro de um saco.

sou um homem grande, conduzo o carro por estradas secundárias e vou ver o mar. sou um homem grande, telefona-me uma amiga linda e eu falo e sorrio muito a vê-la ali comigo a olhar o mar. sou um homem grande, às vezes sinto-me sozinho, às vezes sinto-me acompanhado. sorrio muito e vejo a minha cara reflectida no espelho do carro. sou um homem grande, tenho o jornal de hoje no lugar do pendura. e sigo depois devagar para o centro da cidade.

sou um homem grande, olhos os livros velhos dentro de uma caixa e um homem diz-me "um euro cada". sou um homem grande, compro por esse preço um livro do roger vailland só porque se chama "um homem só". sou um homem grande, compro prendas para amigos meus e espero por eles na esplanada, em frente ao mar. sou um homem grande, conheço as histórias, as pessoas e as coisas de que se fala a uma mesa. sou um homem grande, é hora de jantar e o peixe já descongelou. e sigo animado para a cozinha, preparando em ideias o jantar.

domingo, abril 24, 2005

ao domingo, romances

ao domingo escreve-se romances. acordamos mais tarde do que nos outros dias e, no telemóvel, não existem mensagens. podemos ficar minutos, muitos minutos na cama a virar o corpo de um lado para o outro da cama a pensar no que fazer. pegamos o telemóvel entre os dedos, olhamos a lista de contactos, fazemos contas à vida. ninguém. não há mesmo ninguém.

ao domingo escreve-se romances. levantamo-nos da cama já resignados com o nada que há para fazer durante o dia. ligamos o computador, enquanto comemos bolachas, mas nem na caixa do correio existem mensagens para ser lidas, nem há ninguém disponível para conversar nas salas de chat. é domingo, porra, é domingo, pensamos insistentemente.

ao domingo escreve-se romances. nada, nada de novo. não há planos que resistam ao ser domingo. nem planos de viagens, nem planos de romances, nem planos de encontro, nada. nada de novo. não existe sequer a possibilidade de estarmos contente seja com o que for. é domingo, é domingo, é domingo. e não há nada, nem ninguém.

a esta hora

fico sempre assim a esta hora, parado, de olhar fixo na parede, no vidro do carro. sempre a esta hora, de noite. eu assim. calado, olhar fixo na parede. tenha sida um dia em cheio ou um dia vazio. a esta hora tudo se esvai, os meus braços caem em direcção à terra, os meus pés que se prendem por dentro dos sapatos. a esta hora, sempre a esta hora.

fico sempre assim a esta hora. o corpo preso à alma que se trava, sem direcção nenhuma para onde ir. é de noite, tarde. eu parado a olhar para a parede, fixamente. tenha sido um dia bom ou um dia mau.a esta hora, e não direi que é a força do relógio porque eu nem uso relógio. a esta hora, e nem direi que alguém me avisa, fico assim mesmo quando estou sozinho.

fico sempre assim a esta hora. se eu fosse dos filmes, tirava um maço de cigarros do bolso da camisa e franzia a testa. eu fosse dos filmes, as minhas mãos em grande plano. sempre a esta hora. os olhos presos à parede, os pés quietos no chão. os pensamentos, sempre a esta hora. toda a razão nos pensamentos.

sexta-feira, abril 22, 2005

a data

está a chover mas não está a chover aquela chuva que molha. os meus sapatos fazem barulho pelo chão molhado e o meu casaco fica cheio de pequenas lágrimas de chuva que se vão transformar em pó. está a chover, não tanto assim. as pessoas andam com a cabeça baixa pelas ruas.

perco-me por entre as prateleiras de uma biblioteca. perco-me e encontro livros e amigos. livros que eu não sabia sequer que queria ler, amigos que insistem em querer-me perto deles. em outra história que escreverei, haverá uma casa de um amigo, mostrada à pressa, dois homens sentados num sofá e palavras antigas. nesta perco-me entre prateleiras.

está a chover mas agora nem sequer está a chover já. o dia é que continua cinzento, o chão é que continua molhado, os meus sapatos que fazem barulho. já não está a chover. as pessoas é que continuam a andar de cabeça no chão. eu, perdido entre prateleiras, ando de costas direitas, para que não me doam na história que escreverei uma outra vez.

algo parecido comigo

de mãos nos bolsos e passo sossegado pela calçada descemos juntos a rua e eu penso, enquanto falo baixinho, que está demasiado barulho, demasiado barulho debaixo deste céu, tanto que não consigo olhar para ti. de mãos nos bolsos, olha de engenheiro, percebo que há muita coisa que muita gente pode esconder, só não é possível é fingir que não se esconde. estás a acompanhar-me?

a descer pela calçada a rua, olhar de engenheiro, eu penso nos planos e planos que já fiz em todos aqueles dias em que pensei demasiado sobre todas as coisas sobre as quais é possível pensar. de mãos nos bolsos, para não ter que segurar um cigarro, para não ter frio. a descer pela calçada a rua, eu sei que nada de melhor me espera quando virarmos a esquina, mas ainda assim, não me apetece desistir nem parar. estás a acompanhar-me.

com o passo sossegado, existem coisas das quais não queremos falar. também, com tanto barulho, com tanto barulho debaixo desta noite, certas coisas não têm mesmo como ser ditas. as mãos nos bolsos, porque não existe mais lado nenhum onde as mãos tenham lugar. com o passo sossegado, e com toda a minha sinceridade, minto, minto por cansaço e falta de vontade de levantar a voz, levantar a voz por cima de todas as fronteiras. tu não estás.

quarta-feira, abril 20, 2005

cidade fumarenta

queres ficar vivo, mas queres ficar vivo para quê?, perguntava-me ele enquanto se despia no quarto, a janela aberta para uma manhã fumarenta, sempre a mesma cidade, sempre a mesma cidade, ele a dizer-me estas coisas, a roupa caída em cima da cadeira, os passos deslocados dele pela carpete do quarto, do corredor, a luz da casa-de-banho que se acende, ele a entrar para o chuveiro, e eu ainda deitado na cama, de cigarro a apagar-se no cinzeiro da mesa de cabeceira, a pensar no que ele diz, já um pouco farto de tudo isto.

queres ficar vivo, mas queres ficar vivo para quê?, dizia ele depois de me propôr pela milionésima vez matarmo-nos os dois, sempre a mesma conversa quando ele chega a casa do turno da noite, sempre a mesma conversa quando eu, ainda por cima, estou só a acordar, o cigarro no cinzeiro da mesa de cabeceira, o barulho do chuveiro e eu que me levanto calmamente da cama e tropeço nos sapatos dele, os meus pés ensonados pela carpete do quarto, do corredor, abrir a janela da cozinha e ver a mesma cidade, a mesma cidade fumarenta.

queres ficar vivo, mas queres ficar vivo para quê?, está bem, isso dizes tu que já tens mais uns quinze anos do que eu, isso dizes tu que és mais velho e experiente, eu sou só um puto, ouviste, só um puto, não trabalho no turno da noite e não tenho problemas em dizer a quem me apetecer que sou paneleiro, agora ia-me matar para quê, ia-me matar para quê?, ele a sair do chuveiro e a pentear-se no espelho da casa-de-banho, eu a fumar um cigarro ensonado pela casa, naquela cidade, a mesma cidade fumarenta.

terça-feira, abril 19, 2005

quadro realista de autor desconhecido datado provavelmente do séc.XX

Bartleby, olhando da janela do seu escritório, dizia num baixo tom de voz a todas as requisições que lhe eram feitas: "prefiriria não o fazer". não sei ao certo as suas motivações. não seria preguiça, com certeza. muito provavelmente um sentimento de conforto na manutenção de todas as coisas como elas sempre foram, pelo menos para ele. Ligam-lhe para o telefone e é isso que ouvem. Vontade de ficar no mesmo lugar.

olhando da janela, o que se vê, é o mar ao longe entre paredes que resguardam outras pessoas que olham pelas janelas. a voz baixinha, um tanto trémula, "preferiria não o fazer", as mãos para trás das costas, um cão ou um gato a passear-se à volta das suas pernas. há um certo reconhecimento com ele próprio, ao remeter-se assim à inacção. mudar alguma coisa pode ser assustador, por isso mais vale ficar por ali.

num baixo tom de voz, perante qualquer requisição que lhe fosse feita, já nem sequer no escritório, em casa, numa interminável baixa que se impusera a si mesmo e ao seu médico, respondendo ao telefone que, apesar de tudo, ficar em casa, apesar de tudo, ficar ali, porque a qualquer coisa que lhe apareça, ele, "preferiria não o fazer", a qualquer requisição, pedido, um não, não bem um não, mas um sinal evidente de que as coisas vão ficar por ali.

segunda-feira, abril 18, 2005

cadernos

e um dia voltamos a entrar numa papelaria com um ar solene, a percorrer pequenos trilhos entre prateleiras cheias de coisas de todas as cores e feitios para, com a mão envelhecida e conhecedora, pegar no caderno com o ar mais simples e tosco de todo o estabelecimento, medi-lo bem com os olhos e as pontas dos dedos, bater com ele duas vezes na palma da mão aberta e seguir até à caixa.

e nesse dia olhamos em nossa volta e, na papelaria, existem pequenos seres muito pequeninos iguais a nós quando não éramos nem tão velhos, nem tão experientes, a pisar, com uma timidez reverencial, os mesmos trilhos entre prateleiras, com os olhos mais perdidos, enfim, por todas as coisas e não só pelas coisas simples, com os apetites distorcidos, enfim, por todas as pequenas guloseimas que se encontram numa papelaria, ou seja, olham os cadernos mas compram uma revista.

e por volta desse dia sentamo-nos numa mesa de um café a olhar para o infinito, a coçar os cabelos por debaixo de um chapéu esverdeado, a beber águas com gás e cafés, a medir o vento com as bochechas, a medir as pernas das meninas por detrás dos óculos, com o caderno e a caneta em cima da mesa, a pensar que pode sempre chegar alguém e sentar-se ao nosso lado, a olhar para as nossas mãos velhas e experientes, que já não escrevem poemas tristes de adolescência, escrevem simples poemas de amor.

sexta-feira, abril 15, 2005

o que eu não faço em tua companhia

estás do outro lado da mesa a sorrir vida para mim, enquanto eu me tento esconder por entre os papéis e me engasgo, como sempre, a cada frase séria que tento dizer. não sei como acabo a fazer sempre o contrário daquilo que tento. quando quero vender, acabo a comprar. quando quero comprar, acabo a vender. eu uso as frases todas que não cabem no meu personagem. tu sorris vida do outro lado da mesa.

a sala está escura e eu deixo os olhos caídos sobre a mesa, onde me é tão mais confortável tê-los. tu brilhas, ou pelo menos é essa a sensação que tenho desde que cheguei. conto os anéis que tens nos dedos. nunca sei o nome dos dedos. tens um anel naquele dedo onde toda a gente usa os anéis, mas não é uma aliança, talvez uma prenda do teu namorado a fingir casamentos. e depois tens uma série de outros anéis presos uns nos outros pelos dedos.tanto brilho.

estás do outro lado da mesa a tentar fazer-me interessado naquilo que tu dizes. eu olho para o tampo da mesa, para os teus dedos, digo que sim a tudo, digo que sim a tudo, e repito os finais das tuas frases, para te assegurar que estou a ouvir. não posso contar isto a ninguém, porque ninguém compreende porque se fica triste por haver uma rapariga bonita a gostar de nós. também ninguém saíria da sala sem ter o teu número de telefone, depois de teres piscado o olho. eu entro no carro e apetece-me chorar.

papéis velhos

ponho-me a mexer em papéis velhos, de quando eu escrevia poemas de amor e chorava noites inteiras. ponho-me a mexer em papéis velhos, olho-os um pouco como um estranho, um pouco como um irmão mais velho. na verdade, não tenho grande vontade de lá voltar, aquele tempo. sei bem pelo que passei, sei bem o que senti. hoje compreendo tudo isso. mexo nos papéis mas não me apetece ler. a mim não me dizem nada.

ponho-me a mexer em papéis velhos e compreendo porque é que várias pessoas na história da literatura, e da vida pessoal de cada um, queimaram o que tinham escrito. de algum modo, é um pedaço daquilo que fui que está ali, ali dentro de uma mala, a um canto da sala. e se eu não tenho vontade de lá voltar, há quem tenha medo de que o passado exista. por isso queimam os papéis. eu deixo-os ficar, para depois.

ponho-me a mexer em papéis velhos e deixo de pensar em mim agora e em mim antes. penso nos outros, nos que me podem ler, agora antes e depois, e encontrar-me em diferentes maneiras, em diferentes tempos, em diferentes eus. não me posso impedir de aprender, de reconhecer. não me posso impedir de saber o que dizer quando tantas coisas já foram ditas. eu chorava noites inteiras. os papéis velhos.

falta de jeito

ajeito o casaco nos ombros e olho para o espelho para ter uma ideia de mim antes de sair de casa. é cedo, ainda é muito cedo, existem muitas coisas para fazer. ajeito o casaco nos ombros, despenteio-me ligeiramente, vejo bem as marcas que tenho na cara. sim, este sou eu. e depois ainda sou capaz de sorrir e virar costas. também eu tenho sorriso de malandro.

componho-me em frente ao espelho do elevador. componho-me no meu fato e gravata usados já demasiadas vezes. ainda é cedo, é sempre tão cedo para sair de casa. e em frente ao espelho do elevador eu dou um último jeito à minha composição. é tudo uma questão de imagem, diria a técnica do centro de emprego. eu nunca acreditei.

olho-me nos vidros de todos os carros estacionados por que passo. olho-me a tentar descobrir um desalinho ou uma identificação. olho-me em todos os vidros de carro, mesmo até junto das passadeiras. olho-me. ainda é cedo. está muita gente na rua mas ainda é cedo, é sempre tão cedo. é tudo uma questão de despertadores. ajeito-me.

quinta-feira, abril 14, 2005

portas abertas

temos que deixas as portas para que a casa fique arejada. no tempo das portas fechadas havia bichos feios por todo o lado. a casa cheirava mal e era fria, tinha esqueletos e pó. temos que deixas as portas abertas. para que o vento passe, de uma ponta à outra, para que as histórias aconteçam, para que se veja quando sentimos. as portas abertas.

vamos deixar as portas abertas para que se veja o antes, o durante e o depois. para que as pessoas possam sair e, sobretudo, entrar. para que fique molhado quando chove, para que fique brilhante quando está sol. as portas abertas. para se sentir todo o tempo que acontece. e ser mais fácil saltar, correr, brincar.

as portas assim abertas. e depois vai cheirar bem, vai cheirar a dia de dia e a noite de noite. e depois as pessoas vão ver tudo. entrar e sair quando quiseres. sentir o que se sente dentro de portas. as portas assim abertas. sem esqueletos, sem pó. temos e vamos ficar assim, de portas abertas. para ser mais fácil.

quarta-feira, abril 13, 2005

penso

penso: uma e quarenta e cinco de um dia qualquer, o céu nublado, as pessoas que estão na rua e eu pareço não as sentir, trânsito, muito trânsito, fazer as coisas como se a vida tivesse banda sonora, ver-me, a mim e aos que estão comigo como num plano de câmara, um dia qualquer, penso, penso, hoje não é um dia qualquer.

penso: eu a andar pela terra, devagarinho, entre os mortos. pensava que tinha medo de entrar no cemitério porque toda a gente tem medo. pensava que tinha medo de espreitar para dentro do caixão porque ninguém quer espreitar. eu a andar pela terra, os pés entre os mortos. enquanto o buraco ia sendo tapado, eu à espera. nem o meu avô, nem ninguém, não está aqui ninguém.

penso: as lágrimas que caem dos olhos das pessoas. o meu irmão lá ao fundo, à porta do cemitério, ainda tem medo. a minha avó e o meu pai ainda têm medo. as pessoas quase todas têm medo. eu estou em paz, infinita paz. não está ali ninguém. nos funerais choro sempre mais por ver chorar. eu estou em paz.

penso: uma e quarenta e cinco deste dia apagado do calendário. saio do cemitério ao lado do meu pai e uma ave sobrevoa-nos. ali está alguém, eu sei, alguém que veio ver. a minha cabeça cheia das frases todas destes dias. eu a ver a vida como se tivesse banda sonora, num filme. os sapatos sempre um pouco sujos. hoje não é um dia qualquer.

terça-feira, abril 12, 2005

sapatos sem brilho

agora estou aqui, estou aqui com tantas coisas que não me saem da cabeça. agora estou aqui, estou mesmo aqui, a viver a vida toda em rewind, a viver as frases todas em alta velocidade, estou aqui, estou mesmo aqui, com tantas e tantas coisas que não me saem da cabeça.

agora estou aqui. também estou no eu assustado a espreitar pela porta da garagem do meu avô. também estou no elevador a imaginar os passos da minha avó. agora estou aqui. também estou à porta da agência funerária a ouvir dizer do meu pai, "o meu pai morreu". estou aqui. na janela da sala a fingir que não estou a chorar.

agora estou aqui. e também estou na minha avó a gritar o nome do meu avô quando volta a casa. quando abre a gaveta e escolhe umas meias por estrear. quando olha, parada, a loiça que ele lavou, a última loiça que ele lavou. estou aqui. estou também no café onde colo, na montra, o anúncio do funeral. onde homens me apertam a mão e olham o chão. agora estou aqui.


chorar

faço-me de forte.

não choro quando sei da notícia. não choro quando vejo os olhos vermelhos do meu irmão. não choro quando conto à minha irmã. não choro quando abraço e beijo o meu pai.

faço-me de forte.

não choro quando entro no hospital. não choro quando vejo a minha avó. quando abraço e beijo a minha avó. não choro quando oiço a respiração chorosa do meu irmão.

faço-me forte.

digo sempre que está tudo bem. digo sempre que está tudo bem. digo sempre que está tudo bem. digo sempre que está tudo bem. digo sempre que está tudo bem.

faço-me forte.

só consigo sozinho. estive-me sempre a aguentar. só consigo sozinho. sozinho, no silêncio. a voltar atrás. a voltar atrás. porque não quero chorar a morte de ninguém.

só quero chorar a vida. a vida inteira. a vida inteira cheia de pequenos momentos que me ficaram na memória. faço-me forte, eu sei. só por assumir tão grande fraqueza.

Tiago Alfredo Cristóvão - In Memoriam

Escrevo esta história de memória, a maneira como se contam todas as boas histórias. Como não me lembro de muita coisa, e de muitas outras nem nunca soube o rasto, escrevo aquilo que lembro e imagino aquilo que ignoro. Quando nasceu, nos anos vinte do século de mil e novecentos, este rapaz não fazia ideia de que o seu nome, Tiago Alfredo Cristóvão, iria ser tão marcante para os homens da sua prole. Sem que o quisesse, os seus irmãos, o seu filho, os seus netos, passariam a ser reconhecidos todos por Tiago, uns por nomeação de nascimento, outros por ligação familiar. A mim, pessoalmente, sempre me soou particularmente confortável ser conhecido por este nome, uma maneira qualquer de ser identificado a um grupo, a uma tradição, uma forma agradável de ser reconhecido pelos outros. Para o bem e para o mal, os Tiagos sempre ficaram conhecidos por serem pessoas de bem, de trabalho, de concretização e de trabalho.

São várias as histórias que eu lembro do meu avô. E várias delas me assaltam a memória quando tento ver, lá para trás, quem ele foi. Nasceu no Casal da Parafuja, casal que para mim sempre foi só um moinho que eu via ao longe, porque nunca subi lá acima. Não sei bem porquê, sempre fiquei do caminho, em baixo, a ver, a imaginar, o que seria lá em cima o Casal da Parafuja. A história mais antiga que eu conheço dele, teria ele nove anos, e foi com o pai para Santa Cruz, numa viagem que demorava um dia inteiro, com o objectivo de trabalhar naquilo que sempre foi o seu trabalho, a construção. Sempre que ele falava desta história, os seus olhos pequenos voltavam aos nove anos assustados, que de manhã, ao acordar, sentindo o pai por longe, avistaram pela primeira vez o mar, e toda aquela confusão de branco, espuma e névoa, lhe pareceram casas que caíam. O primeiro sonho do construtor, casas em destruição. Depois, como eu o imagino, cresceu com aquele ar de marialva que sempre trazia consigo. Começou a fumar aos doze anos, dizia sempre orgulhoso ao acender de cada cigarro, devia andar por bailes, com o cabelo penteado, puxado para trás, devia trabalhar que se fartava, empreiteiro de uns e outros, e assim foi fazendo a sua vida, ganhando experiência e confiança por entre aqueles que partilhavam o mesmo labor. Casou tarde, ao que sei, já perto ou depois dos trinta, e não me parece que alguma vez tenho o casamento retirado algum brilho aqueles olhos pequenos, travessos, que sempre voltavam aos nove anos.

Acho que sempre o tratei por tu. Lembro-me de o tratar só por Tiago, como se fosse um amigo do prédio ao lado, um colega da escola. Ele ia comigo ao futebol e nunca dizia de quem gostava, a não ser do Belenenses quando tinha sido campeão. Ele estava sempre nas obras e andava sempre com malandrices, fossem cassetes de anedotas, posters de miúdas, conversas daqui e dali. Nunca dizia o nome quando tocava à campainha. Era um “oi”, um “oi” esticado e sonoro que, mais que anúncio, era um grito de guerra que eu ouvia sempre que o escutava no intercomunicador. Ele, permanecia calado, e ria. Era um malandro encartado, que bebia o seu copo, que brincava com os talheres em cima dos pratos para marcar ritmos de cantigas. Era também o patrão implacável, sempre a marcar em cima, rabugento, mandão. Se alguma coisa fica em mim dele, é essa rabugice intrínseca de quem acha que sabe o que está a fazer (e ele, a maior parte das vezes, sabia) e quer que as coisas fiquem a seu jeito. Era fácil ser neto dele, era mesmo muito fácil, até porque ele nunca ficou velho, nunca ficou velho a sério até ter ficado velho demais.

É fácil gostar dos mortos. É fácil gostar dos mortos porque houve sempre coisas que ficaram por fazer, coisas que ficaram por dizer. Durante a vida, o meu avô Tiago não foi um homem fácil. Porque nunca se é fácil quando se sabe muito bem aquilo que se quer fazer. Sabe-se tão bem que se acaba por fazer a maior parte das coisas sozinho. E isso chateia e magoa os outros. Mas também, como todos aqueles que se fazem sozinhos, o meu avô Tiago soube amar incondicionalmente aqueles que o rodeavam. E tenho a certeza que amou até aos últimos momentos. Não somos homens muito fortes, nós, os Tiagos. Andamos constantemente perdidos entre aquilo que achamos que tem que ser feito e aquilo que achamos que temos que fazer. A última construção do meu avô foi um sopro, um sopro que ele deu quando se atirou da vida abaixo. Partiu assim porque não há satisfação possível para um Tiago nesta terra. Vamos sempre fazer decididamente por nós aquilo que nos haverá no fim de nos fazer sentir sozinhos. Sozinhos com as ruínas de nós mesmos e com o amor que sentimos pelos outros.

É esse peso que sentimos nos pés hoje, ao sair daqui. Esse peso que nos acompanha em todos os dias da nossa vida. O primeiro Tiago, talvez o mais corajoso, talvez o mais descontraído, morreu. Já não temos um “oi” que nos ponha em sentido. Já não temos quem nos marque o ritmo das cantigas com os talheres. Já não temos o marialva de cigarro ao canto da boca. Já não teremos mais histórias para nos lembrarmos no futuro. Agora, só nos restamos a nós.

segunda-feira, abril 11, 2005

disse

eu escrevo histórias. foi isso que eu disse, assim seco e directo, como muitas vezes me faço, seco e directo, a fugir de dentro, para não ter que ver como é o meu corpo por dentro quando digo alguma coisa, a boca a movimentar-se a mando do cérebro e todas as outras funções num vómito que se estende e se estala por mim inteiro. eu escrevo histórias. quando estou cansado e rebentado do dia, escrevo. quando não fazia nada o dia inteiro, não escrevia.

eu escrevo histórias. sim, mesmo depois de me puxarem os cabelos e os dedos em reuniões feitas em escritórios. sim, mesmo depois de me fazerem perguntas sobre coisas que eu nem sequer imagino. sim, mesmo sendo segunda-feira, mesmo sendo o dia a seguir a um fim-de-semana em que o descanso me cansa sempre mais que o cansaço habitual. sim, eu escrevo histórias. como um velho jogador de futebol, no final da sua carreira, já sem ser capaz de correr, mas ainda a fazer as mais belas assistências para golo.

eu escrevo histórias. no final da tarde em que os meus olhos já se custam a abrir. onde uma dor me povoa a cabeça de ponta a ponta. onde ainda vou ter que sair de casa, encontrar pessoas, ter opiniões, fazer coisas. escrevo, sim, histórias. disse isso. disse mesmo isso. assim, seco e directo. como sempre sou quando não quero que me façam perguntas. como sempre sou quando não gosto das pessoas com quem estou a falar. como sempre sou com as pessoas de quem gosto mas não quero que me falem. seco e directo. uma história.

olhos

abro os estores e olho para a rua, o céu ainda a tentar acordar para o dia, como eu também a tentar forçar os olhos abertos em frente ao espelho da casa-de-banho, abro os estores e os olhos, custa-me sempre a levantar, não é que na cama seja bom, mas sair, abrir a porta e sair do que se sonha para o que se vive, bem, custa-me, custa-me, apesar de ser tudo a mesma coisa.

abro os estores e a rua pareceu-me céu pesado de nuvens e depois saio da porta e o vento leve, o sol quente, as pessoas a correr de um lado para o outro, eu a tentar manter-me direito dentro do casaco, a rua assim de vento leve, eu assim de olhos a abrir, e ainda não sei se vou no sonho ou já na vida real, porque a vida real é feita de sonhos também, eu apenas faço o balanço do que me passou na cabeça durante a noite.

abro os estores e a rua, bem, a rua é sempre a mesma, só mudam as cores, assim um pouco ao estilo dos casacos que se vendem nas grandes superficies, assim um pouco no rumo do é tudo sempre igual, mas não é, porque os olhos abertos que se fecham ou os olhos fechados que se abrem, a vida real dos sonhos e os sonhos da vida real, bem, mesmo que um tipo se habitue, está sempre a sentir surpresas por dentro.

energias

ou sendo de apanhar muito sol durante a tarde ou de outra coisa qualquer, a verdade é que estamos a nascer muito mais do que quando éramos só nós, sem nada do outro lado da linha. não interessam as tardes que ficamos enterrados na cama ou no computador, não interessam as noites em que não havia objectivos. agora, agora estamos para nascer e é bom.

ou sendo de sorrirmos muito muito mesmo mais ou de outra coisa qualquer, a verdade é que nos é bem mais fácil adormecer e ter sonhos limpos. porque os banhos que tomamos na banheira ou nos lagos nos servem também para alimentar as raízes e nos arrumar os sonhos. como se os sonhos pudessem ser arrumados.

ou sendo de esticarmos as pernas e tocarmos o azul ou de outra coisa qualquer, a verdade é que nos deitamos juntos numa cama pequena e nos sentimos a respirar ao mesmo tempo do outro. fechamos os olhos e sentimos (ou não) a presença de quem queremos. é uma coisa simples, esta a das energias que se trocam à distância. um sorriso, um sorriso feliz.

domingo, abril 10, 2005

escolher

aos primeiros passos é estranho. pensas que vais cair, pois claro, não foi sempre assim até agora? aos primeiros passos, que nem são bem passos, são medidas muito pequenas entre os dois pés, vagarosos e inseguros, sem saber bem onde pousar, as mãos a tentar ajudar ao equilíbrio, aos primeiros passos é como se nunca estivessemos estado por aqui.

estavamos habituados a um certo conforto de nunca nada bater certo. estavamos habituados a um certo conforto de ficar sempre pelo pior. e agora, agora que ensaiamos passos pela felicidade, soa a estranho. pensas, pensamos que vamos cair. mas não. os pés que ganham confiança, as mãos que acertam as medidas, sim, estamos a aguentar. e já não é estranho, é assustador.

agora temos o sorriso vivo nos lábios, as mãos seguras um no outro. seja o que for é algo de forte, mais forte que todas as pessoas do mundo. estamos felizes, é essa a nossa maneira de ver o mundo agora. e entre o estarmos assustados e o estarmos nos braços um do outro deliciamo-nos com esta coisa tão fácil de escolher viver as coisas boas.

hoje

hoje volto a vestir os calções e a pegar na chave do carro, é, levo uma mala com livros para ler e os óculos escuros pendurados em cima do nariz. vou em direcção ao mar, ao mar azul, o imenso mar salgado, o que fica já ali. levo o rádio ligado, sim, levo a música alta, sim, e os meus braços com os pelos arejados pelas janelas abertas. ali, aqui vou eu.

hoje volto a sorrir para o sol que me queima a testa, as faces, o cabelo dentro de um panamá de medida certa, sim, os passos confiantes e acertados pela marginal e o vento, ai, sempre o vento a mesma coisa. pequenas porções de água a colar-se-me à cara, os óculos a ficarem sujos e salgados, ou só salgados, os livros abertos mas só a boca lê.

hoje, sim, hoje, como um dia de verão ou um dia grande, como um sossego consistente, uma paz, hoje volto a fazer e a ser tudo isso, sim, depois de acordar da noite inquieta, depois de despir os casacos da depressão, hoje eu vou, de calções, as chaves do carro, a mala, sim, hoje, hoje volto a, volto assim, sim.

sábado, abril 09, 2005

sempre os ventos adesivos

sempre os ventos adesivos, que se colam nos cabelos penteados, nas manhãs de primaveras indecisas, no espaço dos meus dedos entrelaçados. sempre os ventos adesivos, quando na rua uma cara me olha de soslaio, um pé ante pé mal medido, a calçada portuguesa, mas suja. sempre os ventos adesivos, quando se compra um jornal por oitenta cêntimos, quando se paga o café com uma nota grande, quando se diz bom dia a uma vizinha velhota, sempre.

sempre os ventos adesivos, os cabelos a pararem no ar como nas fotografias, os nossos olhos a deixar cair lágrimas que no chão, marcas de uma passagem mais que de um passeio. sempre os ventos adesivos, quando o carro pára junto à falésia, todo aquele mar até ao fundo do cenário, homens pequeninos lá em baixo, na areia, as nossas mãos que se encontram. sempre os ventos adesivos, beijos como tatuagens, cabelos que se trocam pelos ombros, um do outro.

sempre os ventos adesivos, a empurrar os nossos corpos pela beira do mar, a roubar-nos as palavras que nos saem da boca, e lá vai um adoro-te a voar pela praia fora. sempre os ventos adesivos, nas roupas que se deslocam junto à pele, no livro que volta a casa com areia dentro, dos sapatos que, descalços, nos apertam. sempre os ventos adesivos, no meu braço por cima dos teus ombros, do encolheres-te porque perto de mim é abrigado, e depois me envolveres com os teus olhos, os teus olhos que me amam fixamente.

vezes

às vezes pareço um senhor, assim um senhor com cara feia e ar de mau, assim um senhor grande e ríspido, a ralhar, a ralhar, assim um senhor a dizer como se devia fazer, sim, às vezes pareço que sei tudo e que domino tudo e que como eu digo é que é. a maior parte dessas vezes, tremo por dentro.

às vezes pareço um menino, de voz calada pelo barulho da casas, a tentar soletrar poemas que saem tortos, a tentar olhar com decisão qualquer coisa que me assusta, às vezes pareço um menino, com as minhas mãos inábeis, a minha voz que gagueja, os meus olhos caídos, às vezes pareço que não sei nada. a maior parte dessas vezes, tremo por dentro.

às vezes pareço um homem, mas tenho voz de puto, pareço que digo as coisas acertadas, mas gaguejo por fora, pareço que tenho cara feia, mas sorrio com doçura se te vejo, às vezes pareço um homem, mas não te engano, a voz de puto, às vezes, as coisas trocadas, uma ordem fora de todas as ordens possíveis, a desordem equilibrada. a maior parte das vezes, eu estou aqui.

quinta-feira, abril 07, 2005

princípio da história que nunca acaba

sou grande, apercebo-me disso pelo tamanho do meu casaco pendurado com o teu no mesmo cabide. sinto os pés pesados pelo soalho da casa que acorda. estou despenteado, a barba salta da minha cara, tenho os olhos inchados. na minha cama, sim, na minha cama tu brilhas, num sono sossegado. é de manhã.

vou devagar até à cozinha, devagar com os meus pés pesados. olho a rua pela janela e abro um armário onde tenho tostas e doce. faço chá, um chá vagaroso e fumarento. olho de novo a janela, apesar de ter a cabeça na noite passada, nas tuas mãos sobre o meu peito, nos teus lábios que não me largaram até eu adormecer. na minha cama, tu brilhas.

deixo as coisas sobre a mesa da cozinha. os meus pés pesados pelo soalho da casa, até ao quarto onde tu estás. abres os olhos, um de cada vez, cheia de sono. abres a boca e eu sorrio. sento-me na beira da cama e deslizo as minhas mãos pelas tuas pernas, pelo teu tronco, até ao teu cabelo. não preciso de dizer nada, tu percebes tudo.

quarta-feira, abril 06, 2005

lição n.º 1

podes sossegar, sim, respira fundo, respira fundo enquanto eu, com a minha mão aberta nas tuas costas, te amparo, sim, sossega, podes sossegar, ouve o que sussurro, respira fundo, sente a minha mão, podes sossegar, sim, sossega, respira fundo. eu vou-te mostrar.

fecha os olhos, sim, fecha os olhos, amor, deixa-te levar pela vertigem que te puxa para longe de ti, sossega, deixa-te levar, as mãos que parecem levantar, mesmo que parada, o meu toque que se exagera ainda que quieto, fecha os olhos, deixa ir, deixa ir, deixa ir. eu vou-te mostrar.

porque, medo de quê, medo de quê, não é, medo de quê, deixa ir, respira fundo, respira fundo, sossega, o teu corpo que te impele para o desconhecido, isso, as coisas todas a uma velocidade muito maior, em movimentos sempre mais complexos, sim, isso tudo, e, sossega, respira fundo. eu vou-te mostrar.

outra vez eu

tenho a certeza que alguém, alguma vez, terá escrito, oh l'aventure, rien que l'aventure. tenho a certeza, embora o meu jeito filológico e a minha preguiça institucional me impeçam de o encontrar. tenho, mesmo assim, a certeza, de que alguém os fez. é o que nos dá a idade. a certeza de não sermos originais.

tenho a certeza porque nada melhor para fazer com que os nossos corações se mantenham vivos. sim, a aventura. com palavras, com olhares, sozinhos em casa. a aventura. apesar da minha preguiça e da minha falta de jeito. apesar de tudo, de tudo. querer ficar bem na fotografia e acabar sempre a olhar para o lado. sim.

esta tarde, no café, um amigo meu, pouco dado a literaturas, apontava o dedo à melancolia dos meus textos. eu sorria como quem acertou no alvo. sim, era isso mesmo. era isso mesmo que eu precisava que ele dissesse. agora que não sou original, precisava de ser igual a mim mesmo. e foi isso que ele me mostrou.

a aventura, a aventura em francês. corações vivos, aos saltos. já passa da uma outra vez, mesmo que amanhã me tenha que levantar de madrugada para ir lutar por um lugar no centro de saúde. por um lugar na cadeira de um consultório onde vão olhar para mim a correr e despachar-me para a rua. se não se pode ser original, penso, pelo menos que se tenha umas respeitáveis olheiras.

terça-feira, abril 05, 2005

because...

olho, com as olheiras pesadas do costume, a caixa do outlook. estou à espera de qualquer coisa, uma carta tua. fico sempre até tarde, até bastante tarde. ando e ando com os dedos deformados pelo rato do computador, pelo teclado mais sensível que as minhas mãos. estou à espera de uma carta tua. porque um dia te encontrei, sei lá, por aí, e talvez até tinhas sido tu quem me encontrou. eu fico sempre até tarde.

é assim que as coisas me acontecem, por acaso. e eu, que deixei de acreditar em coincidencias, olho espantado para a soleira de uma casa, com vista para um verdejante asiático. sim, estavamos por aqui. algum dia. é de noite, eu na minha sala, os dedos colados ao teclado, a luz que me fere os olhos, isso tudo, o de sempre. é porque quero viajar, sim, na carta que vou receber. fico sempre até tarde.

tinha que avançar, sim. tinha que dar um salto e aterrar junto de ti, sejas tu quem fores, faças o que fizeres, eu quero saber. e por isso sussurro palavras absolutas. sim, meto toda a força das coisas em mim, toda a minha força nas coisas. espero as respostas para já. porque só existe o presente, é sempre no presente que eu estou. e, com os dedos menos sensíveis que o rato do computador, volto e volto às páginas de sempre, deixo-me ficar, com as olheiras pesadas do costume, a olhar a caixa do outlook. para que saibas. eu fico sempre até tarde.

em francês diz-se "tant pis!"

ando pela rua com ar distinto dos empresários, com os olhos malandros dos artistas, com o jeito desfeito dos gordos, ando pela rua como uma mistura de várias coisas que me sopram ao ouvido que eu sou, de manhã, com pastas de documentos debaixo do braço, de tarde, com livros que ficaram por ler nas noites passadas, ando pela rua, assim, sem que ninguém me compreenda realmente.

ando pela rua como eu sou e é nesses dias que estou mais confiante. não sinto o peso do céu sobre os ombros nem que me queima os pés o inferno. ando pela rua e entro nas repartições, de peito feito e casaco abotoado. as pessoas tratam-me com uma ligeira reverência de quem sabe ao que vai, e o meu jeito négligé ajuda a retirar qualquer tipo de importância ao que está a ser feito. como se eu tivesse muito mais que fazer.

ando pela rua com o ar distinto dos empresários, deve ser do casaco, com os olhos malandros dos artistas, deve ser das calças de ganga rotas, com o jeito desfeito dos gordos, deve ser dos ténis, ando pela rua sem um jeito definido e penso em cowboys e detectives, imagino cigarros e o fumo de um tipo que passa faz-me tossir, falo às pessoas, como se nada fosse verdadeiramente importante, como se nada fosse realmente decisivo, para o lugar onde eu levo a minha vida.

segunda-feira, abril 04, 2005

onde moras?

seria sempre uma possibilidade, nós os dois sentados no sofá a ver um filme, o cão a deixar-se adormecer a um canto da sala, e o mundo acabar, ali, solene e distraído, como uma brincadeira de namorados. uma possibilidade, sim, como outra qualquer, como tocarem à porta, como ao telefone, como faltar a luz. acabar o mundo, nós os dois sentados no sofá, antes de terminar o filme. as coisas grandes não dão avisos.

seria sempre uma possibilidade, encontrar alguém que mexe connosco nas ondas perdidas da internet. no final de um dia cinzento, com o trabalho todo para fazer amanhã, as pernas doridas e os olhos cansados. uma possibilidade, pois, como outra qualquer, andar na rua e cair nos braços de um desconhecido, achar tanta graça aquela amiga fofinha de uma nossa prima distante. encontrar alguém, por entre o cansaço, no meio da mediatização. nem todos os espectáculos têm fogo de artifício.

seria sempre uma possibilidade, vestir agora qualquer coisa a correr, sair desprotegido para a chuva e apanhar o comboio. afinal é segunda-feira de manhã, todos os recados que temos para fazer podem ser feitos numa outra segunda-feira. uma possibilidade, sim, apanhar o comboio, comprar um bilhete para longe, levar só um livro no bolso e ficar a olhar pela janela com um dedo nos lábios. são sempre as coisas inadiáveis que ficam por fazer.

sábado, abril 02, 2005

sou um patife!

A Patife On Line, Revista Literária Brasileira, acaba de publicar o especial "Em nome do pai, da mãe e do filho" em http://www.patife.art.br/editorial.php onde poderão encontrar um texto meu, para além de muitas outras coisas preciosas.

o mundo. as pessoas. os olhos.

ou talvez seja dos nossos olhos ou o mundo está mesmo cheio de pessoas. não, não aquelas todas as pessoas de todas as terras, mas as pessoas que chegam junto de nós, as pessoas que nos tocam, as pessoas que olham para nós, sim, o mundo, esse mundo muito pequenino, está cheio, está mesmo cheio de pessoas. ou talvez seja dos nossos olhos, o que eu, primeiro, não acredito, o que eu, segundo, acho que tanto faz. seja dos olhos ou do que for, o mundo está cheio.

ser cada vez mais difícil sair de casa sem que, ao longo da rua, a cabeça acene, quase só por si própria, um olá, um bom dia, um como está, ser cada vez mais difícil sair de casa sem que, o chapéu na cabeça, a barba bem feita, a camisa engomada, o casaco a ficar bem com tudo o resto, ser cada vez mais difícil fazer as coisas devagar, pois, porque o mundo, ai, o mundo está mesmo cheio de pessoas, é, e ao abrirmos a porta, uma a uma, em grupos, as pessoas vêm, sim, as pessoas.

ou então será da chuva, ou então será da seca, ou então será de viver no bairro mais popular da cidade, ou então será de viver as coisas todas como se fossem muito simples, pois, é o sair de casa, da porta aberta, e as pessoas, e as pessoas, uma a uma, em grupos, pessoas que nos tocam, pessoas que nos falam, pessoas que nos olham, pois é, o mundo, o mundo está cheio, mesmo mesmo cheio de pessoas, é isso que eu acho, é, o mundo, ou talvez seja dos nossos olhos, sim, dos nossos olhos pequenos.

horas

não sei que horas são, só sei que estás à minha porta, a tocar à campainha, muito muito, sim, a tocar até me acordar, até me acordar e depois tirar-me da cama, pois, não sei que horas são, é de noite, sim, a dormir, eu, pois, não sei, tu lá fora, a tocar, a tocar, a tocar, eu aqui, no quentinho da cama, e tu lá, a tocar, não sei que horas são.

eu estava a sonhar, estava, estava a sonhar com qualquer coisa que não me lembro, a pensar numa dessas coisas que nunca se pensa quando se está acordado, e tu, tu, tu a tocar, a tocar, a tocar, até, pois, até me fazeres sair, isso, até me fazeres sair da cama, e eu, eu, eu lá fui, a dormir ainda, em pé, a dormir ainda, e tu, a tocar, a tocar, a tocar, sim, pois, e eu, eu, eu lá fui,

não sei que horas são, três, quatro, cinco, seis, de noite, não sei que horas são, não, e tu, tu, tu a tocar, a tocar, a tocar, sim, tu, e eu, eu, não sei que horas são, a campainha, a campainha, eu, eu a dormir, sim, a dormir em pé, e tu, tu lá, a tocar, e eu, eu, pois, eu a dormir em pé, sim, a ir lá, lá, lá à porta, e tu, tu, tu a tocar, e eu, eu, eu não sei que horas são.