Arquivo do extinto blogue Esferovite- a vida em pedaços (13-08-2003/ 4-01-2006)

sexta-feira, dezembro 31, 2004

os sentidos: audição

fazemos assim, eu sento-me aqui nesta cadeira e tu sentas-te ali naquela, ao fundo, sentas-te e quando eu disser, agora, quando eu disser, tu podes começar a contar a tua história, está bem, começas a contar a tua história e eu fico aqui a ouvir-te, a ouvir todos os pedacinhos da tua história, podes dizer onde deixas os parágrafos, onde deixas as vírgulas, as palavras separadas graficamente da frase, tudo o que quiseres, dizes, eu fico aqui a ouvir, a ouvir, a ouvir.

fazemos assim, tu dizes para eu fazer as coisas como tu queres que eu faça, tu dizes quem se levanta primeiro, dizes quem pode falar, quem pode sair, quem pode entrar, tudo isso, está bem? tu levantas-te ou sentas-te, como quiseres, dizes as coisas que tens a dizer, fazes o que tens a fazer, como se fosse uma obrigação, melhor, uma necessidade, uma coisa assim, fazemos assim, é mais bonito, vai ser muito bonito, eu tenho a certeza, sim, tenho a certeza que sim.

disseram-me que nada acontece por acaso, percebeste, nada acontece por acaso, ninguém diz nada só por dizer e então, tu aí sentado vais dizer coisas importantes, como terá que ser importante o facto de hoje me terem dado duas canetas no clube de vídeo, ou de me dizerem no médico, agora já não tem borbulhas na cara, nada é por acaso, por isso, eu fico aqui sentado, está bem, eu fico aqui e tu aí, sentas-te e dizes o que quiseres, como quiseres, podes ter a certeza, ter sempre a certeza, eu vou estar aqui a ouvir, a ouvir, sim, a ouvir-te.

terça-feira, dezembro 28, 2004

urso

Escrevo. E o que escrevo parece-se com a minha ausência de tudo o que esteja ao alcance de filtros de existência. Gostaria de poder pensar em ti como uma pedra que se ausenta do caminho devido à imensa força do nosso frágil olhar. No entanto, sempre que me vejo perante essa dificuldade de classificar as coisas que não faço a mínima ideia onde arrumar, tenho vontade de me esconder dentro do armário grande do sótão onde, quando eu era mais me pequeno, me fechava para pensar em coisas simples. Penso em coisas simples como: chuva. Maçãs. Madrugada. E tenho a boca cheia de palavras que ouvia dizer na rua, por pessoas muito maiores que eu, pessoas que eu nunca conheci. Palavras como: labor. Arvoredo. Rimance. Núpcias.

Já me julgaram louco, eu sei, já me julgaram idiota, também, mas eu prefiro guardar para mim todas as coisas em que penso e que se me tornaram impronunciáveis. Não é nenhuma espécie de recusa do que os outros têm para me dar, pelo contrário, é uma extrema necessidade de receber, de me completar com aquilo que ainda desconheço. Volto atrás e sublinho ainda. Ainda. Espreito para dentro da minha camisa e percebo: tudo em mim aponta para um há-de vir, um futuro construído às amálgamas de massa disforme e bastarda. Queria patrocinar esta procura de, este caminhar para, com alguns milhares de abraços e beijos e olhares simpáticos cheios de força. Não. Tenho caras que se franzem. Pouco importa. Para mim, agora que estou decidido a ter esta cara de coisa nenhuma, pouco importa. Agora.

Porque eu conheço a noite escura onde tudo começa e eu sei que tudo tem um início mais ou menos ignorante, conjugado com um fim mais ou menos conhecido. Poucas sendo as pessoas que nos podem dizer algo de novo, muitas são aquelas que nos adivinham o fim. Não é mesmo nada difícil. Basta ir tentando. Um homem apaga a luz da sala no prédio em frente e eu sinto-o na minha consciência de estar sentado junto à janela. Olho, sobre a estrada, o estore a fechar-se. Não me apetece mais nenhum chá de limão, nem bolachinhas, nem beijinhos de boa noite. Trocava esta obra por ser por uma noite de sexo com alguém tão faminto de tudo quanto eu. Mas não me atrevo sequer a sair do quarto.

sábado, dezembro 25, 2004

cravos

mas que horas são, que horas são? é de noite ainda e chove. lembro-me de ter andado pela rua, de ter estranhado, tanta gente a andar de um lado para o outro. falava, sim, falava ao telefone como quem voa, na madrugada do pai natal. sim, chovia, mas eu não dei por nada. bêbedo que nem um cacho, sinto no corpo o calor agradável do vinho do jantar.

abro a caixa de correio e em vez de cartas pedras, em vez de mensagens fugas, em vez de anjos corvos marinhos. estendo as pernas no sofá da sala, doiem-me as costas. é bom saber que se lembram de nós, mesmo quando se lembram de nós. eu tenho a pele das mãos seca, pergunto-te se a chuva ajuda, mas tu só sorris e coras, como as bonecas do cinema.

um dia ainda uma pedra me vai acertar, penso eu, enquanto acendo um cigarro e o deixo queimar-se no cinzeiro da sala. tenho um homem de guitarra a tocar-me ao ouvido e eu finjo que sou mais alto que o mundo, mais crente que a própria religião. digo coisas em que ninguém acredita e acredito que existem coisas que ninguém diz. em alguma parte de tudo isto eu hei-de ter razão.

sexta-feira, dezembro 24, 2004

o número doze é o que está de fora

as minhas histórias são recantos do campo onde a bola nunca chega. entras no jogo, feliz de seres escolhido e não percebes que nunca te vão passar a bola. estás lá para fazer número, estás lá para completar o onze. o teu olhar de confiança mete medo aos teus colegas. pensas para fora, coitado. pensas para dentro, devia estar-me a cagar. e não estou.

penso e repenso nessas coisas, agora e sempre. se eu tenho um entusiasmo, encolhem os ombros, se marco um golo, foi só normal. tudo o que fazem é muito melhor, muito bom, muito tudo. eu sou o outro, o que está para fazer número, o que ninguém sente falta nem assina autógrafos de meninas histéricas. não faço papel de dono da bola. peço para cagar e saio.

por muito que me custe, eu também não gosto de nenhum deles. isso atrapalha-me mais do que me ajuda. sempre que corro ao lugar de outro, para tentar chutar a bola, não sei como se faz, tenho medo, chuto ao lado. parece que jogo mal, parece que me desajeito. eu sou o que faço número, o que está por ali. "conta-lhe a história a ver se ele percebe". quando nenhum deles percebe que o meu campo já nem é dali.

segunda-feira, dezembro 20, 2004

the man who

do alto da minha torre, eu vejo o mundo, do alto da minha torre. estou fechado, isto não é uma queixa, estou fechado. no alto, inacessível, alto. nú, eu, despido, sim. enfim. do alto da minha torre, exaltação do afastamento.

eu não sei se consigo ver a rua, tão longe de mim, não sei se eu consigo. estou ausente, isto não é um chamamento, estou ausente. a palavra longe, a palavra longe, a palavra longe. nem em mim, nem por mim, nem de mim. uma exasperante falta de trânsito.

do alto do meu eu, assim, do alto do meu eu. sem o mínimo, mínimo sorriso. umas dezenas de músculos fora do seu ramo de actividade. nem sequer falo, não, nem sequer falo. do alto de, do alto de, do alto, este sítio tão longe de tudo. eu vejo o mundo, eu não sei se consigo.

quinta-feira, dezembro 16, 2004

uma placa a dizer-te a ti

eu não desapareci, não, tu é que não estás aqui. chego tarde mas a horas, olho para todos os lados e nem um sinal de ti. falam-me de umas casas ao longe, os outros, os que ficaram, mas eu não vou subir e descer ruas, nem das estreitas nem das delgadas, para te encontrar. eu não desapareci, escrevo em letras pequeninas numa porta velha de uma casa de banho pública.

vesti uma camisa de domingo e umas calças apertadinhas, quero parecer um menino bonito quando passar à porta da igreja e vou levar ramos de flores garridas nas mãos, um lenço cor de rosa dobrado no bolsinho do casaco, o cabelo penteado, alguma brilhantina. quando finalmente me vires vais dizer, ainda bem que vieste e eu vou sorrir, com orgulho.

está sol e está frio, as flores ficaram em cima da esplanada, com o vento que está, já eu estou despenteado, já o ramo deve ter voado, os outros, os que ficaram, falam de casas grandes e altas, de ruas cheias de gente feia, eu volto para casa, orgulhoso e calado, de mãos a abanar como o vento, as mãos não voam, diz-me a minha mãe, eu sei que não, eu sei tão bem que não.

segunda-feira, dezembro 13, 2004

desconhecida n.º 23 758

são quatro horas da tarde, quatro horas ditas dezasseis, dezasseis horas e alguns minutos, no rádio já devem ter dado as notícias, nos empregos ainda há quem esteja a sair, eu vim do passeio, tu, sei lá, do metro ou de outro autocarro, quantos autocarros terás que apanhar até chegar a casa? onde será a tua casa? sim, desconheço tudo de ti, excepto que existes.

sento-me ao teu lado, último autocarro da minha viagem. lês um jornal profundamente desinteressante, salva-te o facto de o leres com o desdém que merecem as coisas desinteressantes. estás mais bonita assim, de cabelo ondulado. não te digo nada. sento-me silencioso. como os homens que não falam nunca. respiro.

não sei se dás atenção a essas coisas, de ser a segunda vez que viajamos lado a lado, a quarta vez que partilhamos o mesmo autocarro. não sei sequer porque é que eu dou atenção a estas coisas, eu que não gosto de ninguém. talvez seja a emoção passageira das nossas pernas se encostarem durante a viagem inteira. talvez a lembrança dos nossos dedos a fugirem tão próximos um do outro.

estamos aqui onde ninguém nos vê, nestes bancos do autocarro. podemos olhar um para o outro, sem querer que o outro repare. vamos enconstados, muito encostados, ainda para mais com estas roupas de inverno. adormecemos, adormeces, a meio do caminho, acordamos, acordas, de repente, com uma travagem. digo, um cão, tu sorris e esfregas os olhos. saímos por portas diferentes do autocarro.

sábado, dezembro 11, 2004

frase do dia

pode parecer muito estranho mas, o que eu vos digo é que já não existem histórias a nascer nas paredes.

quinta-feira, dezembro 09, 2004

carrancudo

não há história nenhuma para contar, sentamo-nos a uma mesa de café e falamos, falamos de tudo aquilo que não nos fere o coração, um coração ferido é uma coisa tão feia, puxamos por palavras que nos sejam fáceis, olhares que não nos comprometam, não damos o flanco, não damos a cara, e saíndo da porta, lá fora é tudo igual, amanhã há mais.

bebemos café, bebemos chá, bebemos àgua, gozamos com tudo o que quisermos, com tudo o que nos apetecer, gozamos até com o facto de escrevermos uma vez mais alguma coisa em mesas de cafés, está frio e lá fora, é tudo igual saíndo da porta, dizemos, este texto está mal escrito, dizemos, esta mulher trata-me bem, e depois, e depois, amanhã há mais.

as coisas que se dizem quando se anda em fila em frente a um balcão, as coisas que se dizem quando se quer imaginar a mesa, o café, a fila, a pessoa, uma pessoa qualquer, temos um caderno grande para fazer apontamentos e uma cabeça pequena para guardar memórias, se eu me lembrasse do que penso não teria que escrever, não teria que dizer, amanhã há mais.

segunda-feira, dezembro 06, 2004

hoje

ruy belo foi avistado esta tarde no cais do sodré. vestia sobretudo preto, camisa de golas rosadas e um pullover aos quadrados, azuis e verdes. tinhas uns sapatos engraxados e caminhava de cabeça baixa, em linha recta. o cais do sodré, nos dias de semana, é uma rua suja, cheia de pássaros com peste. há muitas pessoas de um lado para o outro, a passar. no meio do passeio vendem-se livros velhos e castanhas assadas. é bem possível que o ruy belo passe por ali sem ser reconhecido.

na sua cabeça, histórias de espiões de países asiáticos e embaixadores. o ruy belo lê jornais e sente-se informado, tanto quanto um pouco assustado, com o rumo das coisas do mundo. ainda assim, sai de casa todos os dias e procura um café onde ouvir as vozes dos outros. a solidão tornou-se chata, em monte abraão. agora vive numa pensão de marinheiros, com uma vista de janela suja para o rio. sempre, ao meio-dia, uma senhora avantajada faz-lhe, com tiques de religiosidade, a cama. ruy belo sente-se agradecido pela bondade da senhora. ainda a semana passada lhe ofereceu um terço velho, que deixou de usar quando se sentiu vencido pelo catolicismo.

passavam pouco mais das cinco e meia da tarde, ruy belo foi avistado no cais do sodré. entrou num bar com balcão e mesas de madeira envelhecida e sentou-se a beber uma cerveja preta. no bolso tinha alguns papéis sujos, um livro de teoria política e uma carta que nunca mais acabou de escrever. para distrair os olhos, leu a ementa do almoço, coisa ultrapassada, e os cartazes colados nas paredes do outro lado da estrada. desta janela vejo, de uma maneira limpa, uma paisagem mais suja, pensou. brincou com umas moedas que tinha no bolso das calças e pagou a despesa a uma empregada simpática, com cara de homem. a esta hora, o mais provável é que esteja prestes a adormecer, num sofá da saleta da pensão, a enrolar os dedos nos farrapos que o forro solta.

sábado, dezembro 04, 2004

faixa cinco

a)
sex is my head, sex is everywhere

a correr pela rua abaixo
mp3

a cabeça de um lado para o outro
atitude

sex sex sex sex sex sex sex sex sex sex sex
ou a chuva a cair no meio da estrada?

head my head

b)
a correr, circuito de manutenção
sex sex sex

mp3
ouvidos tapados não ouvem

buuzzzzziiiiiiinnnnaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa
sex sex sex sex sex sex sex sex sex sex sex

buzi-buzina
a correr

pés para os lados, lados, lados, pés.
correr
mp

quantos?

c)
sex sex sex
in
the
head

mp 3

a correr mesmo sentado
dá ao pé
dá ao


dá ao
dá ao pé

a música
acabou.

puf!

II

mas se eu não sei escrever histórias, se eu não sei ficar parado, a olhar, como vamos dizer à tarde, que a esta hora está para chegar, que o dia é uma mão que se fecha, até se apagar a luz? eu não vou dizer três vezes a mentira que está para chegar, nem vou calar, nem em frente aos microfones do teu peito, a miséria que cobre o não. um dia haverá um jardim e, quem sabe, por lá, um lugar para mim.

quero dizer coisas que toquem as pessoas por dentro, dizer palavras que não se vejam na rua, sonhar sintagmas que te façam corar, dormir junto de um fogo, dormir sem parar. volto atrás no texto, risco as frases. aquela frase que vês aqui. não suporto a rima interna, não suporto o som sonâmbulo dessa poesia. ou então sou eu, em transe, a tentar enfeitiçar-te. podes fechar os olhos outra vez.

[quem chega a esta hora, chega sempre tarde demais. já não se diz bom dia, nem boa tarde. agora, o que é que tu pensas de mim? usas o telefone para me deixar em suspenso. é sábado de manhã, queres me ligar ou não? eu não vou dizer três vezes a mentira, eu não calar. estou livre, como se está livre num país dourado, a minha testa em suor, ausente. quem está do lado de lá da porta? eu vou entrar pelas portas que tu deixaste fechadas.] sim.

explicação

não sei porque comecei a pintar os olhos de negro sempre que fazia amor. era uma espécie de máscara, uma forma de me esconder atrás de algo. já não podia dizer, estou nu. havia uma barreira entre o dentro e o fora. não sei porque comecei com isto. não sei explicar. é só mais uma coisa assim.

não sei porque não me disseste nada. talvez tenhas achado engraçado, da primeira vez. exotismos meus. depois, sem que nenhum de nós reparasse, foi ficando, um hábito presente, insistido, diário. eu e os meus olhos pintados deitado sobre tu, virginal, sempre, mesmo depois de todas as noites em que suamos um amor nosso.

é só mais uma daquelas coisas, diria o meu psiquiatra, que você insiste fazer perdurar. dispa-se, homem, dispa-se, repete uma senhora na loja. eu parado em frente do espelho, as calças e o casaco do fato de noivo nas mãos. certas coisas não conseguimos nunca explicar, muito menos numa carta, que se queria deixar de escrever. não sei porquê.

quinta-feira, dezembro 02, 2004

uma questão de ponto de vista

está tudo pelo chão, como há muitos anos atrás, não sei se te lembras, a casa tão desarrumada, as palavras sem nexo, a saírem da tua boca como sentenças, a entrarem noutros ouvidos como condenações, e hoje, levado a pensar que está tudo pelo chão, como sempre, como dantes, esforço-me a não acreditar no que me dizes, porque, enfim, todos nós crescemos, mesmo que para os lados, e enquanto se vai alterando a nossa forma de andar, enquanto ficamos mais lentos, assim o nosso pensamento, a nossa forma de ver as coisas, se altera também. se não fosse por mais nada, seria por isso.

eu que não sabia que era possível ficarmos a sorrir em frente a um computador, parados, fora dos filmes que vejo na televisão, fiquei assim quando apareceste, certo dia, pelo final da noite. agora já sou crescido, pensei, já sorrio parado em frente a computadores. olho para o chão, ao redor dos meus pés, e sim, ainda há coisas espalhadas, está frio, e no quintal àrvores perdem frutos à velocidade dos dias, quando chove. mas agora eu visto casacos e já não fico a pensar que sou imortal. embora, muitas vezes, me corte a fazer a barba sem que doa nada.

será capaz deixar de se saber escrever no meio de um texto? mas quantos anos tem um texto para crescer? há muitos muitos anos, estava tudo pelo chão, e eu construí com palavras uma casa, um quintal e uma árvore. agora caem os frutos pelo chão, mas a casa não envelhece. uso ou abuso dos seus constituintes. como é possível que tudo esteja como dantes, exactamente? eu sentado na mesa a ver a casa a crescer pela folha em branco, despida. faço de mim um lugar público, uma cadeira imersa de um corpo. porque eu sou sentado, e sim, consigo andar, mesmo no meio desta confusão aos teus olhos.