Arquivo do extinto blogue Esferovite- a vida em pedaços (13-08-2003/ 4-01-2006)

sábado, dezembro 31, 2005

mpb

miss pérola negra e as suas pernas geniais, fazendo-me suar na bancada de um bar abandonado à beira da estrada, tudo muito escuro na iluminação, uma cegueira completa de copos de whisky e narcisos abandonados aos beijos alcoolizados dos pais-chefes-de-família. isto tudo para dizer que o carro parou aqui sem que eu quisesse, conscientemente, encontrá-la.

eu já a conhecia de alguma estação de serviço da minha juventude, mas agora ela era todo esplendor e eu era todo suor empoeirado de auto-estrada. miss pérola negra, que melhor nome poderia encontrar, e eu sem bilhete de identidade, sem lugar no salão, sem estacionamento pago. demasiadas coisas para esperar que a história ainda acabasse por dar certo.

acordar num motel dois quilómetros à frente, seguindo pela estrada que dava acesso ao concelho vizinho, não estava no meu mapa mental. a minha memória apagou-se ao quinto whisky mas ainda foi eu que acendi o cigarro dependurado dos lábios de miss pérola negra quando ela desceu do palco. isto tudo para dizer qualquer coisa de que já me esqueci.

arenes

eu aqui ressuscitando do meio do sono onde as palavras me emocionam e travam de todos os lados. penso, instintivamente, numa casa baixinha à beira da estrada e da possibilidade de vários carros iguais se estacionarem à sua porta. o meu caminho é depois de uma outra estrada de gravilha e ferro, depois das fábricas e da chuva. o meu caminho é chegar ali, onde depois do sono e da ressuscitação, eu volto a ser um de mãos inteiras.

eu aqui e as palavras, uma maneira menos hábil de dizer ou fazer seja o que for, um outro corpo que se mexe dentro do meu, eu disso sempre soube, mas provando aquela deliciosa surpresa de qualquer coisa que nos mexe pelos olhos, um livro inteiro acabado de ler já a noite vai longa e a música, em fundo, a soar tão bem aos meus ouvidos ainda assim fechados. os olhos concentrados na mancha das frases, e de repente só sobra a mancha da mancha.

eu aqui e a minha imagem de rapaz com gravata à espera de uma tarde de verão, apesar de aqui chover, as estradas estarem molhadas e eu não ter botas novas para estrear no nosso casamento. imagino ainda uma camisa apertada, o meu bigode debaixo do nariz, uma postura meio torta de anjo que se descobre sem função na arquitectura do mundo. agrupo pedras nos bolsos e junto à minha porta, eram palavras, era o sono, qualquer coisa de ressuscitação.

sexta-feira, dezembro 30, 2005

repetição

ficava à porta da loja a ouvir as conversas das pessoas que passam e tinha em cima do balcão dois copos sempre vazios. espantava as moscas e os fantasmas com a mesma facilidade, a minha mão fugia para felicidade, mas ninguém é feliz a espantar moscas, quanto a fantasmas já não digo o mesmo, a coisa é mais difícil e deve ser bom chegar a casa e pensar, hoje espantei mais três fantasmas, estou feliz.

ficava à porta da loja ou ficava ao fundo da loja. não dava bem para perceber, a loja tinha duas portas, uma para cada rua, ambas as ruas igualmente movimentadas e antigas, a calçada desfeita, carros estacionados em cima dos passeios, lojas com donas velhas não para fechar, para morrer. há qualquer coisa que não se entende bem nestas ruas da cidade. há qualquer coisa que me faz fugir a mão da facilidade para a felicidade.

ficava à porta da loja, ora de um lado ora do outro, isso só deu para perceber depois de um certo tempo a passar por ali. as moscas e os fantasmas continuavam os mesmos, pois, afinal não eram eficientes aqueles copos vazios que com o tempo iam ficando cheios de pó. ficava à porta da loja, de um ou outro lado, cumpria os dias um atrás do outro, naquela felicidade fácil de se estar contente só porque se está ali.

baile

com estas três cadeiras eu faria um baile, eu que sou o duplo e a minha solidão. pediria ao tempo um intervalo e abriria, em sonho ou em chuva, as mãos para uma música nova e desencadeadora. eu e eu e a minha solidão, ou o meu chapéu com três bicos, tem três bicos o meus chapéu, se não tivesse três bicos, o que seria da solidão? um caderno já desfeito pelo tempo, temo-o bem.

contranbandeava assim o assassínio das minhas letras, rádio ligado na sala, a casa vazia, os talheres sobre as cadeiras, era isso, o meu enfim sós com tanta gente ainda por morrer. podia, mesmo assim, traulitar quatro acordes retirados de um cancioneiro asturiano ou percorrer a pé todos os andares do prédio. é tradicional, é tradicional, como um jingle publicitário em random durante a noite de ano novo.

mas a arrogância e a militância e toda a nossa ânsia, o fim do nosso mundo assim que chegasse a meia-noite, o telefone que toca mesmo sem rede, a minha companhia é azul, a tua vermelha, todas as coisas feitas a pensar nos daltónicos. um baile, enfim, um baile, troquei-te por ela, fiquei com a casa, não vou contigo ao cinema, uma mulher saída da corporação dos bombeiros, era tão bonito o amor em dias de fogo no pinhal.

imagino até já um certo silêncio pelas dobras das páginas, um engolir em seco das manobras dos nossos sapatos engraxados, o solitário desdém dos pais quando não percebem que a tecnologia tem avanços que o próprio evoluir das coisas não reconhece. eras tu e a minha casa, o baile e um nome que ainda não sei escrever, eu e eu e a minha solidão, tudo em duplicado, copo vazio caído, tudo em duplicado, ainda tanta gente.

quinta-feira, dezembro 29, 2005

algumas observações acerca de manifestos e pronomes pessoais

o que vão ler a seguir são pequenos reflexos de várias coisas:

- algumas leituras momentâneas que se misturam.

- algumas músicas que estão em random no meu real player.

- algumas conversas furtivas em chats.

- alguns pensamentos morais sobre o amor e coisas associadas.

- alguns sentimentos dignos de serem acarinhados pelos alvos deles próprios.

- alguns enganos de alma.

- alguns erros de sintaxe e semântica.

- a mais completa infidelidade a uma arte da composição que não dependa de um consistente pensamento sobre tudo o que a compõe e o mais aberrante desprendimento no momento da sua execução.

Assim seja.

manifesto-te

i'm heading west, my dear, e por enquanto todo o frio que sinto nos pés é desta paisagem onde acaba a resolução das nossas cedências. tu estás aí, chorosa e fria, entre as pernas a tua excitação promete congelar-se na vaga esperança de um cavaleiro que nunca chegará a tempo. eu dispo a minha roupa e vou-me embora. saio nu e inteiro desta reacção.

não tenho medo de te dizer que te amo, i love you, te quiero. não tenho medo de ouvir músicas do josé cid, nem de parecer ridículo quando entro em ti. não tenho medo de te morder os seios nem de te apalpar o corpo como se estivesse desejoso de uma última ceia. eu sou eu e tu és tu. tu aqui tão perto e tão longe, eu a fumar um cigarro num táxi que nunca chegará a casa.

go west, vai aonde te manda o coração, qualquer coisa assim ficaria bem num postal de despedidas. mas nunca se vai a tempo de uma despedida sem nem os encontros foram feitos a horas. agora mandas em mim quanto quiseres: o que sobrou foram algumas peças de roupa esquecidas na cadeira do teu quarto. meu amor, esta fotografia é o que os meus olhos não conseguem fixar na viagem.

manifesto-me

por entre promessas de rumbas e chávenas de café cheias, as mãos ficam frias porque agora é inverno. olhas em tua volta e há imensas mesas vazias, cadeiras por ocupar, cinzeiros sem mácula. era assim quando te vestias de gala e ias às matinées dançantes do Salão. era isso e treze rapazes a fazerem sapateado no andar de baixo, junto ao balcão do bar.

agora sabes que é preciso procurar um novo país onde colher tempestades. podes-lhe chamar Áustria, Venezuela, Carnaval ou amizade, tanto faz para o interesse que tens em ver o teu coração explodir peito afora. pelas mesas vazias vais deixando cartões onde prometes amor e cortes de cabelo. sempre foste assim, despropositado. e as promessas já não voam como dantes.

estás mais crescido, és um homenzinho, já não tens medo de falar de amor com outros rapazes, de lhes passar a mão pela cara e de os beijares na boca. o teu corpo vai arrumado dentro de um casaco e ouves, mentalmente, uma música impossível de existir fora de ti. era isso tudo e uma garrafa de rum, a noite passada, o ano inteiro. nunca foi preciso comprar mais bilhetes.

manifesto

estamos aqui há tanto tempo que a chuva nos fez acreditar que os nossos pés descansam em piscinas de água aquecida. era uma vez uma história de gente sentada e um livro aberto em cima dos joelhos - quinze ou dezasseis pessoas, digo eu, chegam muito bem para se cantar uma vitória ou organizar um baile - dêem-nos uma casa ou um reduto, nós trataremos de abolir as fronteiras e fazer a festa.

estamos aqui há um certo tempo, pois não foi assim tanto, não, e o que fizemos foi transparecer, mais do que transpirar, as ideias que fomos mastigando nas páginas dos livros e nas faces dos discos. sentamos-nos no era uma vez e multiplicamos por não sei quantos números - eram luzes a cair da tua testa ou alguém que tinha beijado com batôn dourado - e no fim eu olhei para ela, disse-lhe boa tarde, e só aí percebi não a conhecer.

estamos aqui, é um facto, embora saibamos que estamos em curso para um outro lado qualquer. deram-nos uma caixa de chocolates e comemo-los pela seguinte ordem: primeio os de formas bonitas castanhas e brancas/ depois os de tom simplesmente castanhos/ finalmente os que vinham embrulhados em papel de prata. não nos dêem mais nada - vamos colocar o volume o mais alto possível, só para reconhecer o silêncio - não nos dêem a mão.

terça-feira, dezembro 27, 2005

webcam

esse teu dedo sempre na tecla do rato sobre o link pesquisar, pesquisar, pesquisar, parece que o mundo te vai fugir debaixo dos pés e no momento seguinte a pessoa mais importante da tua vida pode desligar o computador e tu vais ficar aí, esse teu dedo sempre na tecla do rato sobre o link, mais nada, sempre a tecla, a tecla, pesquisar.

dantes eras tu sempre cansada. chegava a casa e estavas deitada no sofá, adormecida. eu tinha pena, aquecia qualquer coisa para o jantar e ficava a olhar para os carros da janela. tu acordavas, balbuciavas uma ou duas palavras, nunca nada de completo, nunca nada de concreto, a sopa já fria no balcão da cozinha, tu tomavas um banho e ias para a cama, eras tu sempre cansada.

esse teu dedo, esse teu dedo, os teus olhos fixos no écrã, o mundo adentro queres tu, sem reparares sequer que o mundo aqui fora, eu no sofá à tua espera, eu no corredor a limpar os olhos, boa noite, digo eu, tu baixas a cabeça, o teu dedo, o teu dedo, pesquisar, pesquisar, pesquisar, uma vez abri uma janela por engano, falavas de amor com não sei quem, esse teu dedo, esse teu dedo.

cansada, estou cansada. eu a deixar a pasta na mesa da sala, a deixá-la cair com força, à espera de te acordar, tu a passares as costas da mão pelo nariz, a recostares-te um pouco mais. não falamos há quanto tempo, agora? aqueço qualquer coisa para o jantar, a sopa, qualquer coisa que fica logo fria, eu a olhar pela janela, tu no sofá, se bem me lembro, esta semana disseste-me duas coisas, cansada, sim, cansada, e boa noite.

segunda-feira, dezembro 26, 2005

queria dizer ainda mais qualquer coisa. olho em frente e o nevoeiro tapou o mar. era assim que começava a história. trazia uma camisola de lã, enorme, muito maior que o seu corpo, e tirava cigarros de dentro do bolso da camisa. tinha as mãos muito enrugadas, calejadas pela água salgada. eu agora não me vou queixar, só por causa do nevoeiro.

queria dizer ainda mais qualquer coisa. as antenas têm luzes no cimo, acendem e apagam num ritmo certo. ele olhava para a montanha onde havia uma casa. uma casa e um fumeiro, alguém dentro. ele tirava os cigarros do bolso da camisa e punha-se a contar uma outra história. assim, entre a minha história e a dele, fica a história que vos quero contar, aconchegada.

queria dizer ainda mais qualquer coisa. o nevoeiro, o mar, as montanhas, a falta de sentido de tudo isto. não sei nem nunca soube o nome dele. era um estranho, um estranho muito próximo, mas um estranho. lembro-me agora disso porque eu também tiro cigarros do bolso da camisa enquanto conto esta história. eu também sou assim. ou de onde eu viria se não fosse todo este mundo calado.

espaço em branco

tudo o que tinhas a dizer, disseste, eu bem o sei, naquele momento em que fui capaz de ouvir o mais profundo silêncio da terra a abrir debaixo dos meus pés. foi preciso que eu abrisse um espaço assim, para o meu medo, depois de tanto eu ter falado aos teus ouvidos. sorriste ou nem sei se sorriste - passaste-te para um outro lado da fronteira, da fronteira onde eu já não estou.

houve tempos em que poderíamos ter sido felizes, tempos em que as coisas eram todas de outro modo. eu podia andar descansado por entre as lojas, a levantar o chapéu a toda a gente, tempos em que as tuas mãos sujas de tinta-da-china descansavam, solenemente, sobre a mesa do teu ateliê. também isso passou, ambos o sabemos. e se o tempo não volta atrás, muito menos eu, meu antigo amor, posso.

tudo o que tinhas a dizer, disseste. não guardo sequer espaço para o ressentimento, visto o meu casaco de todos os dias e saio vergado debaixo do guarda-chuva. um ou outro dia uma jovem de rosto triste passa a mão pelas minhas barbas e eu sem reacção. depois de tanto silêncio, já não se consegue sobreviver ao bater do coração. e ficou muito, muito frio.

domingo, dezembro 25, 2005

natal 3

caminhava pela beira do passeio, o corpo a sentir de perto os carros, era a tarde do dia de natal e chovia, pelo menos na terra dele, pelo menos naquele momento, caminhava pela beira do passeio, talvez não visse mas sentia, de certeza, os carros que lhe passavam tão perto do braço, podia ter um destino mas não, não tinha, caminhava, isso bastava-lhe.

trazia na mão um livro, escrito há já alguns anos, sobre acontecimentos passados há ainda mais tempo, muito mais tempo aliás, sobre algumas pessoas, homens e mulheres, sobre vidas, escolhas, pequenas surpresas que aparecem, pequenas oportunidades que se perdem, caminhos que se fizeram desfazendo-se. sim, um livro de vida, porque nada lhe parecia bastar.

chovia, na terra dele, no passeio, naquele momento, os carros e o livro, tão perto, ele não dava por isso, caminhava, caminhava pela beira do passeio, era a tarde do dia de natal e quase ninguém na rua, só os carros, as janelas enfeitadas, o livro na mão, caminhava à beira do passeio, pensava, não se sabe em quê, pensava, certamente, caminhava, e isso bastava-lhe.

natalouqualquercoisa

três quartos de mim são outra vez aquilo que eu nunca fui. não está nada para começar agora, convenço-me. o corpo, sim, mas também a boca, os dedos, os vícios. três quartos e eu no corredor, onde não sei como dormir. mas outra, qualquer coisa.

eu e eu e eu. posso fazer uma lista das pessoas com quem sonhei esta semana. umas quantas conhecidas, outras reconhecíveis, outras inventadas. sim, tu, que estás aí desse lado (pensas que por não te ver ou ouvir não te sinto), eu ainda tenho que te inventar. porquê?

era para acabar bem, este texto, deixar uma mensagem de esperança a verde e vermelho como as bolas da árvore. era para falar de outra coisa, era para ir a outro lado, trazer alguma ideia. era para ser assim, de outra maneira. natalouqualquercoisa.

cedo

acordou cedo para ir ver as prendas em cima do sofá da sala. abriu-as a noite passada, tiradas de perto da árvore de natal. acordou cedo, levou a boca seca pelo corredor. a luz do dia chuvoso entrava pelas janelas, e ao sair de cada porta inventava pequenos redutos pelo corredor. duas frases seguidas terminadas pela palavra corredor, quase três. ele era assim.

acordou cedo e ligou o leitor de cd's. está apaixonado por um álbum que não pára de ouvir. pensa em alguns amigos que não estão com ele e em noites em que havia vinho sobre a mesa. tenta estabalecer contacto com imensa gente que não conhece. repete interiormente alguns princípios de estética. ou então, é natal, é natal, é natal.

acordou cedo e olhou para o outro lado da cama. deixou uma almofada ao alto, a simular um corpo que dormisse com ele. até podia ser triste, mas acaba por lhe fazer crescer um sorriso nos lábios. coloca a almofada entre ele e o relógio digital na mesa de cabeceira. abraça a almofada para ver as horas. e percebeu que acordou cedo.

quinta-feira, dezembro 22, 2005

beijo

sempre sempre igual, dizia, as suas palavras coladas na parede, o meu formato como o teu, assim, deixar de vez os dedos por pendurar na parede, ao lado do lençol do banho e de uma fotografia de uma namorada antiga. sempre sempre igual, a mesma madeixa de cabelo guardada no envelope, a mesma maneira de dizer os nomes baixinho na cama.

e no entanto, aos olhos de quem não lê, uma distância enorme entre a cara fechada e o coração emparedado, os dedos trémulos sobre o balcão, uma bica pedida envergonhada, os dentes quietos perante o pão, queres dizer o quê quando dizes o que dizes, qual o sentido do teu estar calado quando não me dizes nada.

ou ainda a fazer perguntas quando só de absinto e perfumes se podem fazer sonhos assim, o corpo meio morto a andar pela cidade, o telefone que não toca, a mensagem que não chega, ou ainda essa maneira de dar as más notícias, a sorrir, sempre sempre igual, distante, porque ao longe vê-se tão mal o que se sente perto.

quarta-feira, dezembro 21, 2005

um manual

- eu é que tinha razão.
- mas eu é que fiquei a perder outra vez.

mestre - um manual

- mas, meu amigo, e o saber?
- meu senhor, e a maldade?

talk talk talk

-muito homem?
-macho!
-nada disso.
-como?
-anti-macho.

pretinha

"Se realmente quer ficar comigo
Não faz bola de meia com meu coração"

Seu Jorge

"under the memphis skyline"

os dez mil homenzinhos calados. eu, sozinho, digo:
-devias ser daqui.

mas isso não quer dizer nada, pois não?

terça-feira, dezembro 20, 2005

lápis-de-cor

acordo e tiro do bolso os meus lápis-de-cor. pinto as paredes e as manhãs cinzentas, abraço o meu corpo no espelho. acordo e tiro do bolso, algumas palavras de amor. e depois sopro-as dos meus dedos e fico a vê-las voar pela janela.

sim, é o que eu faço. as paredes pintadas com as cores do teu sorriso. as minhas mãos enfeitadas com os caracóis dos teus cabelos, os pés que não pisam, saltitam, pela casa. e os olhos na janela, a brilhar.

acordo e lápis-de-cor. logo o escuro do quarto em movimento, as camisas e as meias com muitas cores a contaminarem-se umas às outras. acordo e é assim, um sorriso todo cores e vontade de beijos. qualquer coisa a brilhar.

domingo, dezembro 18, 2005

guia pela cidade

se eu levantar as mãos do teclado, os meus dedos tremem.

depois de dizer isto, parece que fica pouca coisa por fazer, a seguir. continuo a olhar a folha em branco, continuo a ouvir a música a tocar.

e penso: esqueci-me. esqueci-me de levar as revistas que tinha pensado dar-te, esqueci-me de te perguntar que música gostas de ouvir. e penso: a igreja sempre esteve assim, torta, e eu nunca reparei. vejo: o senhor a falar do terramoto e eu a colocar-me atrás de ti, a ver por cima dos teus cabelos o altar, lá o fundo. ou antes: os teus dedos nas teclas velhas do órgão.

se eu ficar sem nada para dizer, o que digo depois é. ou não, o que eu não queria era dizer qualquer coisa que não tivesse sentido. assim: não passa por não dizer, passa por encontrar a maneira de o dizer - aquela maneira nossa, aquela maneira minha. sim. o tempo todo a imaginar-me abraçado a ti e só abraços disfarçados. qualquer coisa em mim tão descansada e qualquer coisa em mim a rir, a rir, a rir.

e penso: amanhã outra vez. melhor: ainda hoje aqui. sim: o tempo todo a querer ser de perto, a sentir-me a chegar. eram os teus braços abertos ou uma música que ouvi noutro lugar. uma maneira de o dizer, uma maneira de o dizer. a cidade tão bonita e as nossas mãos tão perto. era isto ou um chá no andar de cima. era isto ou não o que eu não queria dizer. se eu levantar as mãos do teclado, posso segurar nas tuas?

sábado, dezembro 17, 2005

de mim para mim II

-rapaz, deixa de pensar nisso, falo eu, de mim para mim.
e dez mil homenzinhos a correr a correr planeiam planeiam.
-rapaz, pensa menos e age mais.
dez mil homenzinhos dez mil homenzinhos dez mil homenzinhos.

deixa como está

as minhas mãos são muito pequeninas, pequenos segmentos saíndo dos punhos da camisa enquanto a noite já se foi pelo sol que entra na janela. o corpo, estendo-o sobre o sofá e penso medir o tempo, a atenção a diluir-se pela música que vai enchendo a sala sempre tão vazia. talvez por estar o tempo todo a queixar-me, agora prefiro ficar calado.

as minhas mãos são muito pequeninas, já te tinha dito ou estou a repetir-me, a minha cabeça cansada sobre a almofadas, duas ou três palavras penduradas do tecto. o sol, o sol na janela, saber que demoro um quanto tempo a aquecer, olhar para o espaço em branco à espera de ser preenchido, essas coisas. se eu deixasse uma folha sobre a mesa, alguém a levaria?

as minhas mãos são muito pequeninas, eu cofio as barbas e páro a olhar para os dois parágrafos acabados de escrever. as minhas mãos sobre o teclado, esta música, um piano, poderia ser eu. tento mas não consigo pensar sem palavras, o sol, a janela, o corpo, as mãos. sim, começou por aí, pelas mãos. estendidas sobre a mesa, pequenos segmentos, punhos de camisa, assim, assim, assim.

sexta-feira, dezembro 16, 2005

despedida

dez mil homenzinhos aos saltos de contentes com um abraço disfarçado.

frio

dedicado a...

não tremas de frio agora,
agora não, eu já estou aqui
e então, não tremas de frio
agora, não, eu posso aquecer-te.

ouvi-te dizer do vento e logo a correr a abraçar-te, era isto que eu sonhava, manhã cedo pelo café, torradas sobre a mesa, migalhas, o meu olhar perdido pela janela, tanta gente que aqui vive e eu só com cabeça para ti, ouvi-te dizer do vento, ouvi-te dizer do frio, e logo a correr, logo a abraçar-te, era isso que eu fazia, esta manhã, no sonho, torradas e migalhas, a mesa.

os meus passos sempre tão pequenos e os meus sonhos sempre tão altos, sim, sentir que vivemos algures juntos numa fotografia muito velha, já fomos velhos avôs de alguém, pois, os meus passos sempre tão pequenos e o meu coração a bater com tanta força, com tanta pressa de chegar a lado nenhum, já fomos juntos, isso eu sei, e logo agora eu, os meus passos sempre tão pequenos, saber que tu os consegues acompanhar na lentidão.

ouvi-te dizer do vento, os meus passos pequenos, e logo logo a correr abraçar-te, era hoje de manhã, eram fotografias tão antigas, eu e tu e a janela, torradas e avôs misturados, migalhas, os meus passos pequenos e correr correr, ouvi-te dizer do vento e os meus sonhos, manhã cedo, era hoje, a mesa, a fotografia, já fomos velhos e ainda somos tão novos, ouvi-te dizer logo a correr a abraçar-te, foi isso que eu ouvi, sim, foi isso, foi.

lua

dá-me lua, lua e domingos pela tarde onde, com os sapatos bem calçados, encontraremos ruas acima e abaixo as portas certas de um encontro. dá-me lua, lua e rebuçados, porque eu posso preparar um embrulho de presente, um abraço de repente, as portas abertas de enfim a sós.

dá-me lua, lua e o teu sorriso, guardando o perfume dos teus olhos, os cabelos apanhados, um caderno meio riscado. dá-me lua, lua e uma palavra, a tua mão no meu braço, um café sobre a cidade, os pés mais leves do que um voo, os olhos bem abertos enfim secos.

dá-me lua, lua e uma viagem sem regresso para a eternidade, tenho lugar ao teu lado, uma maçã vermelha no bolso, neve na janela ao acordar. dá-me lua, lua e perfume de frutas, um concerto de música de embalar, um beijo radiofónico, as portas abertas, a lua, sim.

quarta-feira, dezembro 14, 2005

ainda

dez mil homenzinhos continuam, para baixo e para cima, a fazer obras na minha cabeça.
- a conduzir assim estás bem capaz de produzir um acidente de enormes dimensões.
- em todas as curvas vejo iluminações de natal.
dez mil homenzinhos, sempre, sem parar.

recorte

- eu posso ajudar.
- podes? e queres?
- não me faças perguntas difíceis.

sms

a bem da verdade, se ninguém se lembra de escrever para mim, porque haverei eu de me lembrar de escrever para alguém?

segunda-feira, dezembro 12, 2005

escandinávia

conheces o caminho para a escandinávia, a tua cara onde a barba cresce como a noite cai, estares de pé, ao frio, à porta do teatro, e olhares à tua volta à procura da linha do horizonte, a linha do horizonte a meio da rua, a tua miopia, os teus olhos toscos, tu inteiro, conheces o caminho para a escandinávia, um bairro qualquer perto de uma cidade, uma casa pequena, ninguém a quem te dirigires quando faltar um abraço.

conheces o caminho para a escandinávia, um asilo grande e um barrete, imensos homens que te pedem cigarros, as unhas roídas e um jornal antigo, os pés frios e mais um robe, o tempo todo para ti ali fechado, talvez te dêem papéis, talvez te dêem canetas, guardas os papéis todos dentro de uma camisa velha, conheces o caminho para a escandinávia, a barba a crescer mas sem bilhete de volta, um dia o mundo acaba mas tu, tu ainda estás a tempo de viajar.

conheces o caminho para a escandinávia, algumas garrafas de cerveja misturadas com o bife do jantar, a loiça toda suja na cozinha, cheiros que se misturam contigo, fazes má cara e os cheiros não desaparecem, a sala cheia de papéis, um asilo num país gelado, ninguém a quem te dirigires quando faltar um abraço, podem dizer que te aguentas sozinho, mas tu nunca saíste dessa viagem, conheces o caminho para a escandinávia, sim, esse mesmo, é na direcção contrária ao caminho da califórnia, vais ser herói só de ti próprio, um asilo e imensos homens que te pedem cigarros.

citizen k.

não, não é amor, é uma estrada cheia de curvas, esburacada, viras à esquerda, sobes, entras no portão e sabes, sim, sabes nesse exacto momento, não é amor, é uma visita desesperada, o chão molhado da chuva, chove há mais de quinze dias, parece que só chove dentro de ti, mas não, é ali mesmo, os pés no chão molhado fazem um barulho estranho aos teus ouvidos, esse mesmo barulho, não é amor.

não, o pára-brisas na rotação máxima, chuva chuva chuva, voltas atrás, a porta à vista, voltas atrás, dentro do carro, o pára-brisas na rotação máxima, abres a camisa, sim, um ou dois botões, sentes-te estranho, sim, abras a camisa, os olhos muito abertos, sais do portão, viras à esquerda, foges, de ti ou de alguém ainda não sabes, sentes-te estranho, chove, abres um ou dois botões, sim, o pára-brisas na rotação máxima.

paras o carro, chove, não, não é amor, desapertas as calças com rapidez, paras o carro, chove, chove muito, desapertas as calças, puxas abaixo os boxers, tocas-te, tocas-te, tocas-te, sentes-te estranho, dominado por pensamentos cruzados, puxas abaixo os boxers e esfregas-te, não sentes a excitação sequer, chove, chove, não te ouves, só a chuva, não é amor, esfregas-te, esfregas-te até expulsares de ti a vontade de entrar pela porta, sim, não é amor, não é amor, não é amor, sossegas e voltas a ligar o carro, com a respiração entrecortada.

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bloco do eu sozinho

quando não sei se o que sinto é mesmo aquilo que sinto.

domingo, dezembro 11, 2005

de mim para mim

- ela cheirava a frutas, dizem os dez mil homenzinhos que tenho dentro de mim.
- ela cheirava a frutas, digo eu, com um sorriso nos lábios.

sexta-feira, dezembro 09, 2005

como o caranguejo

não quero nada contigo, disse-me ele, precisamente na altura em que eu entrava pela porta, de sorriso de bom-dia na cara, ainda tão cedo que nada tinha dito, não quero nada contigo, assim, para começar, nem me dando disposição para brincar com o mau humor dele, nem dando hipótese de fugir para não molhar os pés na rebentação, não quero nada contigo, pois, mas também não temos que perceber tudo.

a porta fechada outra vez, ainda é cedo, mas ele costuma sempre estar por cá, eu à procura das chaves no bolso do casaco, um enorme molho de chaves, quando cá cheguei esperava sempre à porta, ou o sol a bater forte na testa ou dias de tanta chuva, quando cá cheguei esperava, depois a chave do armazém, a chave do escritório, a chave da rua, a chave da arrecadação, a chave do cofre, as chaves de todos os sistemas de alarme e segurança, um enorme molho, eu à procura.

ontem à noite encontrei a filha do chefe, saí com o meu primo a um bar e lá estava ela, conheci-a pela cor dos cabelos, um fogo que lhe arde como auréola, encontrei-a e ela também me encontrou, lembrava-se da minha cara, podia ter desviado o olhar mas veio até mim, disse-me olá e ficamos a conversar, encontrei-a, é uma rapariga simpática, um tanto estranha ainda assim, diz coisas que não se percebem muito bem, sei lá, anda a ler o Ruben A. e disse-me que deve ser por causa disso.

lápis

agora senta-te. fecha os teus olhos e suspende-te da sensação de aqui estar. pousa as tuas mãos no colo, respira fundo, perfumado. olho o teu pescoço, desenhado, que entra profundamente dentro da camisa que vestes. respira fundo, eu olho-te. senta-te e sente o calor dos meus olhos sobre a tua pele.

podes estender as pernas, eu tiro-te os sapatos, se prometeres não abrir os olhos. fechei a janela e só uma ténue luz pela sala inteira. desço com a palma da mão bem aberta sobre as tuas pernas, de calças vestidas, retiro-te os sapatos. o que eu falo não falo, sopro, aos teus ouvidos. na tua face um sorriso aparece.

agora senta-se. fecha os teus olhos e suspende-te da minha existência até. as minhas mãos voltam a subir por ti, percorrendo cada milímetro de ti até se repousarem nos ombros. chego-me a ti, respiro quente no teu pescoço e tu já nem sorris. tremes ao respirar. e ao fundo vais na sensação de me ter em ti.

quinta-feira, dezembro 08, 2005

roubo

o que eu não penso, eu roubo. ou melhor, mesmo tudo o quanto eu roubo é depois pensado antes de usado. isto, pelos vistos, rima em demasia. mas era o que eu queria escrever, o sentido, apesar do formato.

então, havia um poema com uma mulher numa árvore, que descia para urinar nas calças. este tipo de coisas não me constrange, mas admira-me. não pela ideia, mas pela palavra. ou seja, o contrário exacto do anterior parágrafo.

urinar nas calças, para experimentar. tirando a frustração da higiene, surge-me até como uma ideia interessante. entrar no duche vestido. comer de boca aberta deixando que restos e molho se espalhem pela camisa. não sei se me estão a entender.

portanto, roubo. pilho. são palavras, palavras conjugadas. experimentar o nosso corpo até ao ponto em que corpo, vestuário, sociedade, tudo uma grande amálgama. percebem? desmaterializar o indivíduo até tudo ser a mesma matéria.

nem a mim me parece óbvio, era uma ideia que explorava agora. depois de ler um poema em que uma mulher numa árvore descia para urinar nas calças. e na medida do espanto, também eu me acabo por perder no que escrevo. e tudo confundido já nem se percebe o que é roubado.

baile

pedi-te que não me abrisses a camisa. estou de pé à tua frente, baloiças o teu tronco contra o meu e eu fecho os olhos, sem pensar em nada. é boa esta sensação de não pensar, uma certa descoberta demasiado recente em mim. pedi-te que não me abrisses a camisa, talvez por medo, talvez por saber que o farias no momento certo.

baloiças o teu tronco contra o meu, o meu corpo obedece ao ritmo de uma música que nenhum de nós ouve. quando é que isto começou é uma pergunta à qual eu não sei responder. julgo que é daquelas coisas que aparecem nas paredes, sem que nós consigamos perceber se é dos canos ou da humidade do terreno. agora é assim, sinto-o.

pedi-te que não me abrisses a camisa. sempre tive medo de muita coisa, demasiadas coisas mesmo. sei, ou finjo saber, que tenho um percurso que os meus pés vão seguir, sempre à procura de novas ruas e novas avenidas onde pousar os olhos. sei que tu sabes qual é o momento certo. eu não sei de nada. não penso, sinto.

quarta-feira, dezembro 07, 2005

someone said my love was gone


I (foto Catarina Costinha) Posted by Picasa

II ( foto Catarina Costinha) Posted by Picasa

III ( foto Catarina Costinha) Posted by Picasa

someone said my love was gone (texto para o filme)

ouvir uma canção que repete, monocordicamente, a palavra sozinho, sozinho, sozinho, rasgar a camisa por não querer abrir os botões, ter a cara pintada de preto e dizer a toda a gente que se é carvoeiro, deixar crescer a barba até ser digno de aparecer num álbum de fotografias, fazer exposições com objectos íntimos e pessoais. pensar que a pessoa que amamos morreu.

romper com todas as amizades possíveis e imagináveis antes que seja dia de reis, beber copos atrás de copos de álcool ainda por destilar, corromper as mentes limpas deste mundo, tentar santificar as conspurcadas, correr pelo jardim a gritar liberdade e acabar preso nas mãos de um grupo de sonhadores desfraldados. pensar que a pessoa que amamos morreu.

ter os dedos inábeis para te tocar, ter os dentes ausentes no momento da dentada, ter que fazer todas as coisas que, na face do mundo, já foram feitas, ter um dia por semana para se ser sorridente e adoecer, fingir que tudo tudo está errado, depois fingir que tudo tudo está certo, limpar as unhas, crescer um bocado, dizer olá. pensar que a pessoa que amamos morreu.

para me encantar

meu pequeno problema, flor de mar apagado, apago o candeeiro e o que sobra, estes dedos que tremem como a barriga, a minha dor sempre presente e tão escondida, agarro-me ao estômago, saio daqui.

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vou e venho e o atendedor de chamadas vazio, nem uma mensagem, uma declaração de amor, nada, nada, nada. podia tomar um duche a esta hora, mas a sujidade é muito mais eu que qualquer deriva aquática. o meu signo peixes, os meus olhos chorosos. vai um copo?

sim e sim, podia contar-te a história de uma maneira diferente mas tu só me perguntas pelo preço da vida e pelas horas de almoço. eu aconchego-me debaixo da manta e minto-te enquanto posso. depois de mim nada mais será igual na tua vida, tu sabes.

eu e as minhas dores escondidas, eclipsadas debaixo da linha do horizonte que eu não conto a ninguém. deixa-me o troco em cima da mesa e não me peças que vá ao médico dizer que me estou a desfazer por dentro. toda a gente sabe, é visível aos olhos. que horas são?

terça-feira, dezembro 06, 2005

£

estão a deitar abaixo a minha casa, sim, estes estrondos que oiço cá dentro são isso mesmo, operários, munidos de ferramentas, martelos, brocas, ferramentas, a deitar abaixo a minha casa, sinto-o, estou deitado na cama e sinto, a parede que cai, o cano que rebenta, o chão a evaporar-se no meio do pó, isso tudo, isso mesmo, a casa, a casa abaixo.

a casa abaixo, pois, e o telefone que toca sem parar, números que desconheço a gritarem-me ao ouvido, uma pastora evangélica a falar-me de deus, jesus, ai jesus, e o que eu faço, deitado na cama, a casa a ir abaixo, as paredes, deus que me fez perfeito, perfeito o dia para saber disso, a casa a ir abaixo, o telefone desligado, sem fios.

estão a deitar abaixo a minha casa, certo, e as dores que me chegam às costas, as dores que trago na cabeça, umas quantas coisas por dizer, uma parede que cai quase em cima de mim, operários ferramentas brocas, o barulho igual em todas as divisões da casa, ex-divisões comigo dentro, comigo fora, uns passos do lado de fora, onde eu estava, era aí.

0

a quantas horas daqui fica a nossa ideia de completude, era essa uma das coisas que eu gostaria de ser capaz de responder com os meus olhos. é o que podemos fazer com os olhos que me fascina, perguntas e respostas, teses inteiras só com os olhos castanhos verdes azuis que nos deram. agora, olha para mim.

falta-me jeito para dar ordens, aliás, falta-me jeito para dar seja o que for.

domingo, dezembro 04, 2005

deixa ser

talvez nunca tenhas pensado nisso, mas as amizades podem desaparecer assim, como um rio que seca pelo vale adentro, sabe-se lá onde faltou pela primeira vez água no leito, foram tantas as barcaças que, pelo meio de tombos e enjoos conseguiram ir até ao mar, que chegas a pensar se alguma vez a água faltou mesmo, talvez nunca tenhas pensado nisso, uma amizade pode parecer perfeita até ao preciso momento em que deixa de existir.

é porque é mesmo assim, um dia acordas e o rio secou. onde chegou a haver uma forte corrente agora sobram algumas poças e peixes mortos pelo chão que vai secar também, sabes agora melhor que ninguém que é só uma questão de tempo, não adiantam promessas ou detalhes que vão sendo ressuscitados por frases mais ou menos deslocadas, não adianta a repetição dos gestos, o passar pelos lugares reconhecíveis, um dia acordas, o rio secou, ponto final.

porque talvez não adiante sequer vestir um fato de gala para o funeral, paz à sua alma que se acabou, mais do que essa mera formalidade vai parecer matiné de reformados, domingo à tarde e uns quantos caquéticos a balançar os ossos ao som de músicas que ninguém ouve sem ser obrigado, os meus ossos estão bem obrigado, com falta de cálcio como de costume, um dia acordas e secou, foi embora, acabou. talvez nunca tenhas pensado nisso, mas as amizades podem desaparecer assim.

sexta-feira, dezembro 02, 2005

try walking in my shoes

castanho não é uma cor, é uma palavra. quando digo castanho, não te digo o cheiro nem o brilho dos teus olhos. digo fronteira, digo distância, falo de lugares onde não podes tocar com as tuas mãos. castanho não é uma cor, não são caracóis macios a desfazerem-se pelos dedos. castanho é uma palavra, uma palavra que tanto pode servir aos teus cabelos como ao tom da terra molhada que se avista pelo campo.

calço umas botas e não ando. com estas botas tornou-se impossível ir a algum lado. calço as botas, visto um casaco bem quente e sento-me de novo na sala. a sala tem as paredes cheias de fotografias antigas e armas que já foram de caça. calço umas botas. quando era pequeno calçava as botas do meu avô e andava pela sala a fingir que era grande. agora que sou grande sento-me, um pouco vergado, dirias, pelo peso desta sala. lá fora, castanho.

talvez alguém me espere, ou espere de mim uma ordem, um avanço. é inverno e o campo para lavrar. o meu avô entrava pela cozinha com as botas cheias de lama e as empregadas corriam a ajudá-lo. havia nelas um misto de reverência pelo senhor e um pânico da sujidade passar para lá da cozinha. dias inteiros a limpar e a lavar a casa toda e umas botas que podiam estragar tudo. levavam-lhe uns sapatos limpos e um pano para limpar a cara. ele mal sorria.

eu ficava num dos quartos de dentro a olhar pela janela. estava frio e chovia, ninguém me deixava brincar à chuva. quando ouvia o meu avô pelo corredor ia espreitá-lo. vinha imponente, completamente sujo de lama e com uns sapatos que quase brilhavam. nunca percebia bem aquela incongruência. sim, eu sabia do processo, de como tudo se passava. mas era sempre com espanto que o olhava, atrás da porta, a passar no corredor.

castanho. não é bem uma cor, agora que penso melhor nisso. castanho é um rasto de lama no chão da cozinha, é o campo todo até onde se poderia ver num dia de chuva. castanho é o meu inverno, todos os invernos. estou sentado na sala, botas calçadas, casaco quente vestido. há qualquer coisa nos teus cabelos que me faz ficar aqui. mas talvez seja a minha vida inteira. castanho é só uma palavra. tento não me esquecer disso.

balancé

aguarda sereno o mau tempo passar, depois estende a tua mão para fora da janela, diz, baixinho, uns quantos nomes, umas quantas regras, do pesar dos dias em ti fechados. aguarda, sereno, o mau tempo passar. Depois, estende a tua mão para fora da janela e diz, muito baixinho, uns quantos nomes, umas quantas regras, fala-me de como pesam os dias em ti fechados. aguardo sereno o mau tempo passar e estendo a mão para fora da janela enquanto digo, baixo, os nomes e as regras do pesar dos dias em mim fechados. aguardo, sereno, que o mau tempo passe. estendo, entretanto, a minha mão para fora da janela. digo, baixinho, uns quantos nomes, umas quantas regras, de como pesam os dias, aqui, em mim fechado.

quinta-feira, dezembro 01, 2005

k.

ele abraçava-me enquanto subíamos a rua. estava muito escuro, talvez fosse uma quebra de electricidade ou talvez a câmara municipal estivesse decidida a fazer daquele bairro um lugar pouco apropriado para vivências sociais. ele abraçava-me, tentava passar a língua pela minha barba mal feita. eu meti a mão ao bolso e tirei a chave de casa.

ele abraçava-me. o elevador estava avariado e tentávamos seguir assim, pegados um no outro, pela fileira de escadas demasiado estreita. foi uma história demasiado comprida para se poder contar de uma forma simples. não sei bem por onde é que andei naquela noite, sei que o reencontrei depois de alguns meses sem ter notícias. o que posso dizer é que começou tudo de novo.

ele abraçava-me já à porta e eu encostava-me cada vez mais à parede. qualquer coisa me dizia que o tinha que deixar por ali. gostava dele, sentia o desejo crescente no seu abraço, o meu corpo reagia, integrando-o. mas quando as luzes do prédio se apagaram, entrando numa estranha consonância com as da rua, senti que chegara o tempo de ficar sozinho. ele abraçava-me e eu disse-lhe adeus.

quarta-feira, novembro 30, 2005

revisão

o meu pé pesado ou esta maneira de dizer algumas palavras em português do outro lado. tentar fazer do meu poema um texto em prosa, um texto em mente, testamento. recorrer, para nunca mais, à rima, encostar o corpo à parede e, por uma última vez, dizer que nada há mais para rever.

o meu olho que chora ou o nariz entupido, inrompido pela caneta que escreve num papel absurdo. quero, mesmo assim, voltar a pôr a cabeça de fora do carro para sentir o vento nos óculos. alguém buzina no meu ouvido e eu sorrio. que horas eram quando tu disseste que tinhas chegado atrasado?

amanhã, andar para cá e para lá, mas a minha deixa era outra, completamente diferente. deixei o telemóvel a carregar sonhos pela noite dentro e fui-me embora vestir camisas de cores diferentes. se encontrares o meu casaco diz-lhe que eu volto. se me encontrares a mim, acompanha-me a casa.

terça-feira, novembro 29, 2005

3

a primeira palavra que me veio à cabeça foi pijama. pijama, como as manias de pequenas festas na imaginação das criancinhas. corria atrás da bola, uma duas vezes três, tentava segurar com as duas mãos pequenas a testa fria da avó e constipava-se ao terceiro dia. era assim que me chegava a palavra pijama.

a segunda palavra não era uma palavra, era uma tela enorme numa sala escura. fomos ao cinema quando tínhamos seis anos, nem sabíamos ler as legendas. havia muita rapaziada à volta, a falar baixinho, a dar beijos nos escuros. nós não sabíamos ler, por isso é que a segunda palavra não era uma palavra. era uma luz acesa.

a terceira palavra era um parágrafo. um parágrafo cheio de palavras diferentes. era uma professora da escola primária a tentar pagar-me um café enquanto me gabava os versos que ainda não tinha lido. era um parágrafo rasurado num caderno, uma ideia para um romance que ainda não escrevi. e ficou-se por ali, parágrafo.

segunda-feira, novembro 28, 2005

Lançamento do livro "Registo de Nascimento" - Fotos


e para ver mais é ir a www.diariodeumlivreiro.blogspot.com(Foto Ozias Filho) Posted by Picasa

domingo, novembro 27, 2005

rasganço

a cama aberta uma vez mais, descoberto o corpo quente da noite, cai uma carga de água e gelo sobre o telhado e eu cá dentro, da casa e de mim, um lenço sobre os olhos chorosos, a mão na testa que quase ferve. a cama aberta, eu, e estar sozinho neste dia assim, um lenço que se molha a cada minuto, depois largado pelo chão.

a cama aberta, a boca desligada, deixei a cabeça algures num dia onde eu não estou. não vale a pena o que possas dizer, não há proximidade que chegue ao meu abraço. puxo então a manta para os meus ombros e oiço no rádio, baixinho, a professora Berardinelli a falar vivaz de literatura. lembro-me de ela me falar de um poema. os olhos vermelhos.

a cama aberta, a boca sem nada para dizer. o frio todo lá fora e todo cá dentro. num espaço intermédio pouco ou nada resta para dizer. páro: a palavra dizer repetida. duas vezes. volto acima, talvez alguma vez mais. sim, ali. três. a cama aberta e eu, as mãos debaixo da manta. oiço. lembro-me de ela me falar de um poema, de como o lia. mas agora, pouco interessa.

espelho meu

tenho o telemóvel cheio de números, cheio de casas e de dúvidas, cheio de palavras sem respostas e sem portas. tenho o telemóvel em cima da mesa, os teus olhos contra os meus, mesmo se chove, um abraço apertado porque alguém está perto, um endereço por apontar. tenho o telemóvel guardado, silenciado, apagado. tenho tudo e mais alguma coisa, em profunda contradição sempre.

há qualquer coisa que me falta dizer. falta-me dizer a mim mesmo. é só isso. tudo o resto não passa de um profundo desperdício.

quinta-feira, novembro 24, 2005

escritor

são onze horas da manhã e o escritor está na varanda, a estender a roupa. o sol bate-lhe directamente na cabeça, o que, misturado com o frio que faz neste início de inverno, provoca um espirro. estende as camisas, calças, cuecas, meias, sem nenhuma organização aparente. o que importa é que ao fim de uns dez minutos, a roupa fica estendida. o escritor volta para dentro e espirra uma última vez.

são onze horas e dez minutos da manhã e o escritor liga o rádio, senta-se ao sofá a ouvir as notícias. tenta pensar em coisas úteis, em palavras, em pequenas histórias e como as construir. no entanto, o escritor pensa no almoço. percorre mentalmente as prateleiras da dispensa, os conteúdos do frigorífico. sentado no sofá, a ouvir música, o escritor estende as pernas e tenta relaxar. e não se decide entre ovos mexidos e uma sandes de fiambre.

são onze horas e já não sei quantos minutos da manhã e o escritor abre e fecha os olhos com violência. tenta pensar no que está ali a fazer mas parece não chegar a nenhuma conclusão. o escritor lembra-se de um tempo em que era um rapazinho organizado, meticuloso. hoje já dá por si a andar pelas ruas que o levam ao seu destino da forma mais longínqua. em que pensava, nos ovos ou num poema? histórias pequenas com sandes de fiambre. o escritor levanta-se.

quarta-feira, novembro 23, 2005

little boys

a roubar outra vez:

"Life is tough and love is rough
For the man who just can't ever seem to get enough
The days go by and the women come and go
So many that you decide to get rid of your front door
So you don't have to hear them all disappear

You just sit and you wait
Staring at your empty plate
And you can say I'm a lonely sailor
Rockin' gently on my dreams
'Cause I have it all, but I don't want it all
It ain't like I've never ever ever ever tried
I just never been fully satisfied "

de Devendra Banhardt


is he talkin' to me?

final da tarde

ah deixa-me ficar por aqui, os olhos chorosos, a ver o campeonato deste lado de fora. eu agarro as mãos uma na outra e finjo-me valente - é uma das maneiras de se viver, digo-te eu, que não sei nada do funcionamento das coisas.

deixa, deixa, leva as bandeiras para a varanda, chama chama por um joão ratão, eu fico no andar debaixo, a ver o jogo decorrer à distância - alimento assim o meu bicho do mato, o meu bicho roedor, cá dentro.

ah deixa-me ficar, sim, deixa-me ficar, pois é sempre essa a minha vontade, a quietude inteira dos dias vazios, as palavras caladas por um silêncio de maratona - a ideia, a simples ideia desta solidão, a escorrer-me pela face, em lágrimas.

Os 5 romances

A minha injusta escolha de hoje:

A noite e o riso, Nuno Bragança

O que diz Molero, Dinis Machado

Caranguejo, Ruben A.

Memória de Elefante, António Lobo Antunes

Um homem: Klaus Klump, Gonçalo M. Tavares

guarda-roupa

não venhas com essa história dos shampoos coloridos para a minha casa-de-banho. inquieto e acalorado, o meu projecto de solidão segue o seu caminho fechado, roda dentada a diminuir o meu sexo contrafeito. algures entre os anos que passaram e os dias que não chegam se perdeu a minha erecção. agora não sonho mais - fico calado a olhar a vizinhança a ir para a cama. moro no sexto andar e tenho o pijama vestido.

não preciso de mais nenhuma razão para te telefonar, digo-te uma ou duas coisas quando calha. tu vives no teu íntimo a imaginar-me um grande cabrão de mau feitio, eu acordo e adormeço do mesmo lado da cama, talvez seja o frio que me esteja a imobilizar, e entretanto levanto-me a custo, tomo banho a custo, como o pequeno-almoço a custo. entre tudo isto, sangue a cair do nariz e a masturbação mal inventada. vivo entre isto e os calmantes.

não quero a tua mão ardente no meu peito, essa é imagem de um filme onde já não entro como actor. a minha erecção perdida, o meu desejo enlaçado dentro de um embrulho, pronto a enviar para longe, sem registo postal. os meus livros a caírem das estantes e o meu olhar sobressaltado a imaginar roubos no meio do silêncio da casa. adormecer e acordar do mesmo lado da cama, a cama que deve ter ficado maior com a chegada do inverno. moro no sexto andar - não me venhas com histórias.

morning glory

lembras-te daquele dia em que

a caneta composta sobre o tampo da mesa
uma casa portuguesa e pão e vinho
os bifes a descongelar sobre o balcão
os dias quietos sem se dizer palavra
lembras-te daquele dia em que
a tostadeira a incendiar pelos teus olhos
o sol que entrava em ângulo complicado pela janela mal fechada
o verso mal cortado, respirando ainda
os comprimidos e os lenços de papel
pois foi aquele dia em que tu
vieste finalmente fechar uma porta cá em casa
com os teus dedos fortes e os teus cabelos despenteados
disses-te duas ou três verdades copiadas de um manual de sobrevivência
e saíste porta fora até à tua ausência

terça-feira, novembro 22, 2005

posso pagar com cartão?

diz-me duas ou três coisinhas ao ouvido.

mas nunca, nunca uses palavras destas aqui, assim deitadas, ao sol e aos beijos como quem não chega nunca a ver o que há para encontrar na vida. nunca nunca uses estas palavras, aqui.

retoma entretanto o vago sabor dos dias e apresenta-te, bem vestido, de barba feita, a quem de direito, no tribunal. depois, arma uma grande confusão, grita e deixa-te cair no chão frio do palácio da justiça, espera, calmamente, que um polícia te venha buscar.

porque não maneira de não repararem que as coisas não fazem nenhum sentido nesta maneira como tu as dizes, não há maneira de se revoltarem e fechar o livro, com a força de uma decisão tomada, má literatura é que não.

fala bem às pessoas que passam e assume para ti o papel de quem chega sempre a horas certas aos encontros marcados. dá, ainda, um piscar de olho às meninas da rua e apresenta-lhes as tuas sinceras vontades de as fazer felizes e contentes por quanto dias elas te possam aguentar.

porque tu és como a gripe - entras em casa, pegas-te a toda a gente e depois só com algum sofrimento é que desapareces. tu és como a vontade não desejada de estar sentado na mesa da sala - sim, na mesa da sala, um cu em cima do tampo, não é um erro, é uma opção.

e não tentes, sobretudo não tentes, contrariar a mania da perseguição que te persegue constantemente. e não queiras, sobretudo não queiras, que apareça alguém a dizer-te bom rapaz, palmadinhas nas costas, aqui vou eu para muito longe, que esta terra não presta para nada.

e no final da história, que, pelos vistos, não tem nenhum fim capaz de merecer três letrinhas destas, voltas ao início, como quem não quer da coisa e dizes, dizes outra vez a mesma treta.

diz-me duas ou três coisinhas ao ouvido.

-----fim de ligação----

telefone fax

o que eu tenho é esta fome de romper os dias abertos pelas chuvas fortes.

disse-te isto como um rasgão, eu sei, quase que gritei quando eu nunca grito e, depois, apareceram algumas lágrimas pela face, uns quantos objectos por tricotar nas paredes, a ruína de toda uma história de amor por começar. o que eu tenho é esta fome, e já tu estavas a sair pela porta.

o que eu tenho é esta urgência de fazer correr todo o vendaval à nossa volta.

podias ser mais meiguinho, pedes tu a um canto, não sei quantos dias depois, podias ser, e eu sorrio, tudo o que eu sou é isso, essa histeria de não poder ficar calado, as minhas mãos tão fortes a lançarem-se pela cara de alguém dentro, podias ser menos dessa fome, eu podia ser menos de tudo e mais de tudo, o que importaria, de qualquer maneira?

o que eu tenho é o que eu não tenho é o que eu tenho é o que eu não tenho.

agora senta-te e lê, uma última vez, o meu livro de poemas e tenta perceber que há qualquer coisa que não funciona cá dentro. agora tenta ouvir aquilo que eu digo por detrás daquilo que eu digo e depois vai. o que eu tenho é esta necessidade de ter, o que te falta é a tua necessidade de seres tida. e nada mais.

sábado, novembro 19, 2005

dos cadernos- página 63

não, não eram todos os dias, uma correria escadas abaixo nos prédios vizinhos, um monte de alminhas em monte sobre o chão da sala a olhar muito fixamente para o écrã da televisão, a consola de jogos a fazer de arranjo floral e dois pequenos satélites agarrados aos comandos, uma gritaria surda dentro da sala, cabelos nas cabeças a dar a dar, chuta, marca, pimba, uma gritaraia naquela sala e a mãe que chega e fecha a porta.

do lado de fora, agora, tudo parece silêncio. fecharam os putos dentro da porta e só se ouve uma pequena brisa de grito, treme um pouco a porta se há um golo, um pontapé, mas tudo parece silêncio. tudo parece silêncio agora, tudo parece não existir. a mãe lava a loiça e lembra-se de há uns anos quando ainda nem o Henrique nem o Tomás, só uma doce espera pelos dias para que o marido chegasse, jantar pronto e mesa posta, tudo num brinco, tudo limpinho, só uma doce espera pelos dias e agora isto.

volta a abrir-se a porta, os rapazes cansados dos jogos, um quer sumo outro a casa-de-banho, a mãe acena com a cabeça durante três segundos, três segundos, o tempo que os rapazes demoram da sala à cozinha, a correr, um escorrega no tapete outro mete as mãos à parede, à parede onde depois quatro dedos ficam marcados por alguns dias, até que a mãe volta a acenar a cabeça com a descoberta, a porta voltou a abrir-se e tudo parece existir em demasia.

dos cadernos - página 117

o retorno de tudo isto haverá de vir, disse-me ele com os olhos bem fechados, a língua sobre a mesa deitada. o retorno de tudo isto, e uma posição remetida aos abraços e encargos da memória, um candeeiro sobre a tela acabada de pintar, uma música acabada no cinzeiro, entre cigarros. o retorno, o retorno. e uma maneira especial de dizer as coisas sem que ninguém o pudesse contradizer.

o espaço, enfim, aberto e o discurso recortado a metro, como os panos na loja da avózinha, três metros de tecido às florzinhas, fazer um conjunto de lençóis para a cama da menina, um pedaço daqueloutro tecido rosado, para as almofadas. o espaço, enfim, e o discurso feito sobre o balcão, contas tiradas a lápis no papel pardo, os sacos para transportar algum enfado, ir ao café do lado a cada dez minutos.

o retorno de tudo isto haverá de vir, a língua sobre a mesa deitada, uma noção de família para a frente, para o futuro, quando o velho ainda era novo e parecia uma criança da calções. talvez seja a minha memória conturbada, perturbada, talvez fosse verão, seguramente seria verão naquele tempo em que tudo eram calções e frases feitas. o retorno, o retorno de tudo isto, uma certa dificuldade em articular as sílabas, uma certa renúncia de existir.

quinta-feira, novembro 17, 2005

técnicas de diversão

fecho os olhos e deixo os dedos escorregar pelo teclado, mesmo com o frio que está eu sou capaz de escrever histórias com princípio meio e fim. fecho os olhos e começo a correr pela rua fora, tentar agarrar tudo o que se mexe em frente aos meus olhos, eu sou assim e tu não, pouco mais há para ter em consideração.

fecho os olhos e abro muito a minha boca, os teus cabelos arrumados pelo pente, pela escova, os dentes cariados e, enfim, qual a parte de mim que tu preferes, nas fotografias? desço as escadas cá de casa degraus três a três, aos saltos como os rapazes quando são pequenos, aos tombos como quando ainda havia alguém para nos dizer, tem juízo.

fecho os olhos e os meus pés enterrados na areia da praia, sim, está de chuva, ainda esta manhã pensei, não se pode ter, na mesma história, tempo de chuva e de sol, sim, ficaria mal no sentido consentido das coisas, entretanto, começamos a escrever um poema sobre as coisas da infância e nada mais ficou daquilo que nos tinha levado a escrever alguma coisa.

quarta-feira, novembro 16, 2005

welcome to your claim to fame

hoje roubo:

"este é o teu cheque do mês, pagas tanto de alojamento.
da natureza, o dinheiro é o quinto elemento.
bem-vindo sejas a cada cêntimo.

este é o teu enxame e o teu formidável cortiço.
bem-vindo sejas ao lugar onde além de ti
vivem quase cinco biliões de castiços.

bem-vindo sejas à lista telefónica onde o teu nome é protagonista.
os dígitos são o desígnio oculto da democracia.
bem-vindo sejas ao teu direito a seres notícia."

roubo um excerto da "canção de boas vindas" de Iosif Brodskii, traduzido por Carlos Leite, editado nos Livros Cotovia.

quem não leu já devia ter lido.

terça-feira, novembro 15, 2005

31

faz-te normal, foi o que me disseram, umdia. faz-te normal, assim, pumba, toma lá. eu devo ter sorrido, sorrio sempre, pra fora, mas por dentro, pordentro, chiça, tremideira. faz-te normal. pumba. foi o que me disseram assim, de caras. maisnada.

o que tinha eu feito? desfeito, talvez. falar mais alto que o próprio pensamento, a minha boca muitoabertamuito. pumba. dizer as coisas que penso, eu funciono assim, em regime de abertura. disse e pronto - dissipronto. faz-te normal.

faço-me como? normal? comé? o meu normal é ser isto, dizer isto, pensar isto. esconder o que há pra esconder? hum? não sei. faz-te normal, pumba. sem maisnemmenos, assim mesmo. e eu... faz-te normal, eu sorri. fora. sorrio sempre. mas pordentro, chiça, tremideira. grande.

segunda-feira, novembro 14, 2005

qual é o teu nome?

eu ou a minha sombra abrasiva - o meu conceito isolado além sonho, matéria de espirros e ausências, delírio matinal repetitivo.
eu ou a minha sombra - abrasiva, porém, só no contacto com a pele, tarde de inverno feita noite, relógio que não avança nunca.

éramos nós os dois mais um par de bandarilhas à procura de um restaurante - sabes tanto da cidade como a cidade de ti: pessoas que te sorriem pelas esquinas, cafés que te oferecem sob o epíteto de Sr. Dr. - logo tu que te enganas em todas as ruas. éramos nós dois ou quantos mais - vais ser capaz de me mentir ao dizer que tens a casa sempre arrumada?

eu e eu e eu e eu - repetir repetir repetir a mesma palavra ao infinito. tenho os pés duridos de andar a correr atrás de ti pela cidade e nem uma palavra te resta para um agradecimento, um obrigado, mesmo que envergonhado. não uses mais pontos finais, foi tudo o que me disseste - ainda por cima chovia, chovia a cântaros, eu todo molhado por dentro e por fora, os ossos a roerem-se uns aos outros - você vai acabar por se desfazer, disse-me o médico.

continuo a correr, mesmo assim. a minha sombra abrasiva ou dez histórias de canções que nunca chegaram a ganhar o festival da canção. uma cantora polaca a tentar abraçar-me à saída da escola e outros tantos músicos a fazerem a festa, como se fosse possível fazer a festa, sendo eu quem sou. tu continuas igual, eu continuo igual, éramos nós os dois e a palavra infinito mal escrita num moleskine. todas as histórias assim.

domingo, novembro 13, 2005

je suis un homme

fiquei com os dedos sujos de terra. em dia de chuva, a terra e a água a escorregar-me pelas palmas, as linhas da vida e do coração acastanhadas, a cabeça que estala. fiquei com os dedos sujos de terra, levantei os joelhos do chão, tentei alisar as calças, o casaco. sou um homem sério, sou?

os meus olhos abertos fechados, a minha boca, os meus lábios secos. chuva, chove. fiquei com os dedos sujos de terra, as calças. saí pelo portão grande e metalizado. parece que ouvia alguém do lado de fora da porta, passos. parece que ouvia alguém a dizer qualquer coisa, palavras. sou um homem sério, sou?

chove. sou eu quem anda para trás e para a frente, a dizer. os dedos sujos pelo casaco, pelas calças. tentei alisá-los, a terra. saí pelo portão, logo depois de ter espreitado. ninguém, ninguém do lado de fora. mas havia passos, palavras. quem? parece que alguém, alguma vez. sou um homem sério, serei?

espelho

não gosto de me ver no espelho da casa de banho esta manhã. vesti uma camisola que veio de ontem, não tomei banho. não gosto de me ver. tenho os olhos semi-cerrados, o sorriso desfeito pelo sono e pelos comprimidos. vou à casa de banho para urinar, lavar os dentes. olho-me ao espelho, não consigo evitar. não gosto.

por cima da camisola, que se torna assim interior, visto uma camisa verde escura. com os botões abertos parece que sou um militar, em tempo de guerra. a barba a crescer, pelo escuro atrás de pelo escuro, uns pequenos raspões sem nada, cicatrizes de pequenas bombas faciais. parece que sou. eu pareço sempre que sou. não sou nada. não gosto.

apago a luz e ando pela casa. há mais espelhos cá em casa, perante os quais eu não consigo fechar os olhos. ando pela casa e vejo-me, no espelho, na parede. o formato da cabeça demasiadamente explícito, o passo quebrado, os olhos que não abrem, vermelhos, cansados. e sou eu, o mesmo eu das fotografias, aqui e ali, confiante. não gosto.

processo

tento fazer algum trabalho autobiográfico - superar sempre o medo de me expôr, refugiado na sensação elitista de que ninguém me pode compreender. tento ir buscar dentro de mim algumas palavras, várias sensações por ser, por criar. e depois mexo-lhes muito com os meus dedos, no meio das minhas mãos. as palavras saem contorcidas, indispostas. ligo a televisão e tento normalizá-las.

podia escrever sempre o que sinto. mas o que sinto não seria entendido como tal, seria antes uma enorme mistura de frases mal começadas e sem fim aparente. à hora marcada apareceram umas quantas pessoas que se esforçaram por arrumar os livros dentro das caixas. uma semana depois, tínhamos menos livros e menos espaço. há certas coisas às quais a física não pode nunca vir a responder. foi o mundo (ou as caixas) que ficou mais pequeno esta semana?

ontem tomei um comprimido e adormeci no sofá, a meio da tarde. tentei curar os problemas respiratórios com licor e cerveja. acabei sentado a uma mesa simpática mas entediantemente machista. apetecia-me tirar as botas e o casaco, mesmo que este frio me seja simpático. sento-me aqui, na mesa onde guardo três lâmpadas fundidas, e penso em vestir a maior quantidade de roupa que me seja possível. e depois ir para a rua, sentir o frio entre a barba. talvez seja isso.

sábado, novembro 12, 2005

constatação

passei a manhã a ler as crónicas que a Adília Lopes escreveu para o Público há uns anos. descobri este material na internet e passei a manhã a lê-lo. a Adília Lopes, não sei se vai à missa, mas vai muito a igrejas. eu acho que ela entra nas igrejas para ver as pessoas a rezar. às vezes encosta-se aos pilares que seguram as abóbodas e diz poemas baixinho. é assim que eu imagino.

a Adília Lopes conhece muitas pessoas que eu conheço, anda por muitos lugares por onde eu ando. eu nunca vi a Adília Lopes, ou então não a reconheci. acho que ela é baixinha e tem passos curtos. eu vejo mal ao longe, sou míope. a Adília chama amigo a pessoas que eu conheço e gosto. anda pela Faculdade de Letras e por Lisboa. a Adília conhece Lisboa muito melhor do que eu. mas eu não moro lá.

a Adília também sabe muito mais do que eu de coisas como: o mundo, os versos, as doenças mentais. ela também sabe muito mais do que sobre outras coisas como: jogos de palavras, amigos, inimigos, pessoas parvas. a Adília entra nas igrejas e é mulher. como é mulher vê as coisas de uma maneira que eu não consigo ver, porque sou míope. às vezes penso que todos os homens são míopes, se comparados a uma mulher.

passei a manhã a ler a Adília Lopes. normalmente não repito tantas vezes o mesmo nome no mesmo texto. normalmente nem escrevo nenhum nome num texto. mas passei a manhã a ler a Adília e estou constipado. uma mistura assim de constipado e de renite alérgica. não sei se a Adília tem renite alérgica. se tivesse, já a teria encontrado nalgum poema. passei a manhã a ler Adília e acabaram-se-me os lenços de papel.

(os referidos textos estão em: http://www.arlindo-correia.com/180902.html )

sexta-feira, novembro 11, 2005

registo de nascimento


Registo de Nascimento é o meu primeiro livro de poesia que será lançado na Livraria Livrododia, em Torres Vedras, no dia 26 de Novembro, pelas 17 horas. O livro tem a chancela da Livrododia Editores. Posted by Picasa

marinheiro

passo a minha mão pela barba e vejo que, ao longe, há qualquer coisa de gélido e disforme que acabará por me tocar. ou isso, ou uma névoa intensa chegada com os dias de novembro à cidade. julgava ser marinheiro e chegar a cada porto com os pés a navegar sobre um chão cheio de beatas. a minha mão pela barba.

passo a minha mão pelos olhos, não sei bem que horas são, deve ser tarde, já. vesti um casaco mais quente, puxei uma manta para as costas e acendi um cigarro. olho, ao longe. o que vejo são as formas de um futuro inadiável, um corpo de mulher que me sorri, envergonhada. passo a minha pelos olhos, quero ver melhor.

passo a minha mão pela barba, o cigarro vai-se queimando aos poucos, mesmo que eu nada faça para incentivar esse lume brando da vida. estico as pernas e olho as minhas botas com sabor a sal. julgava ser marinheiro e era como marinheiro que me vestia, sem saber tudo o quanto pode estar escondido nas imagens fotográficas. o que eu via, não era o que eu via. a mão, a barba.

quinta-feira, novembro 10, 2005

malavita

a lição é simples: chegas, sorris, sentas-te - não precisas de soletrar uma palavra que seja. mais, sempre que te fizerem uma pergunta, a primeira reacção deve ser um sorriso. depois, ponderadamente, escolhe uma resposta que seja simples, limpa e rápida: qualquer coisa entre o sim e o não.

a lição é tão mais simples, quanto simplificado será o modo como te vão abordar - será um homem de fato, elegante, uma pequena barba a estalar pela pele lisa e clara, o cabelo penteado, para trás, com uma voz muito suave e interessada. ser-te-á fácil, estou seguro. e espera que estejas segura também.

a lição, simples: com esse mesmo jeito de convidar os homens ao teu olhar, chegarás, sorrirás, sentar-te-ás. depois deves respirar fundo e deixar que as coisas aconteçam por si. ele será agradável e contemplativo. tu serás acessível e silenciosa. depois da dança dos olhares, poderás fazer um pequeno gesto de disponibilidade. ao gostar, ele saberá o que fazer depois.

quarta-feira, novembro 09, 2005

mais algumas coisas sem sentido

porque eu sou, em concreto, uma arrumação mal pensada dos teus gestos, um copo deixado vazio sobre a mesa, no final do teu jantar - eu sou, inconsequentemente, uma ligeira coceira na orelha, uma recordação que cai do meio de um livro abandonado a meio, uma mão da qual já não se conhece as linhas nem o toque.

porque eu sou, acima de tudo, a falta de jeito ao abordar um abraço, a inquietação pela noite espalhada, o acordar vago e constipado, a palavra sem qualquer ligação ao real - eu sou, abrangentemente, a dúvida que se leva na lapela, os olhos chorosos que querem agarrar o céu, o frigorífico aberto na noite escura.

porque eu sou, ainda e uma vez mais, quem preferiste sempre esquecer perante o medo de te lembrares, a ilusão irrequieta das alucinações que endurecem o teu corpo, a memória que resiste ao que julgas ser a tua vontade - eu sou quem tu nunca poderias esquecer, quem tu nunca largarias na vida, ao menos se.

antes do silêncio

e, às tantas, pela conversa, eu digo:

- conheces alguém que goste de mim?

A8

vens sozinho no carro, lá de lisboa, a estrada está molhada e na rádio repete-se uma música que já ouviste muitas vezes. a viagem, quando estás perdido em pensamentos, passa muito mais depressa. já nem te lembras se passaste ou não pela Venda do Pinheiro. no entanto, se te esforçares um bocadinho, lembras-te daquele sinal em frente à escola, onde acelaraste um pouco para que não caísse o vermelho. o que importa, ainda assim, é isto, vens sozinho no carro.

portanto, vens sozinho no carro, a música toca, antena um, pelos vistos, uma daquelas músicas clássicas que fez com que milhares de pares em todo o mundo se unissem em beijos e paixões. continuas sem olhar sequer para estrada, preferes tentar ler mensagens no telemóvel que, chegando, te fazem sentir um pouco mais feliz, um pouco mais forte. fazem-te sorrir, é isso mesmo. estás a sorrir, mas o que importa, ainda assim, é isto: vens sozinho no carro.

vens sozinho no carro, a estrada esta molhada, chove ainda, choveu o dia todo. páras para comer qualquer coisa, procuras uma revista que não há, tentas entrar em lojas que afinal não existem. páras para comer qualquer coisa, o telefone toca, conversas, sorris, sentas-te. comes, levantas-te, sais. vens no carro sozinho, abres e fechas o porta-luvas à procura de uma cassete, à procura de um mapa das estradas. ainda assim, o que importa, é isto: vens sozinho no carro.

terça-feira, novembro 08, 2005

L.

consulto o livro dos dias com os dedos a contar graus centígrados pela janela fora. está escuro e, apesar de ser ainda tão cedo, pressinto que chega a noite a esta minha sala. as paredes já não são brancas, já não respiram verão nem qualquer calor. para o fim da tarde adivinho uma chuva intensa e imperdoável. é disso que se trata, a minha língua. a minha maneira de dizer as chuvas e as dores.

consulto o livro dos dias. os meus dedos no papel que tento não desfazer. talvez este inconsequente barulho de passos seja já a chuva que cai lá fora. estou sempre a repetir-me. a minha mão dentro da camisa, enquanto procura o meu peito. a minha maneira de colocar vírgulas em todos os cantos. mas, as horas, os lugares, os dias, inteiros, como eles próprios. será que ainda percebes?

consulto o livro dos dias pela maneira de falar de cada uma das coisas que me rodeia. atendo os teus lábios ao telefone, procuro-te para além das ligãções da rádio. imagino, quieto e vagaroso, o que há do lado de lá da tua voz, onde um abraço, um gesto, uma carícia, ainda podem subsistir. consulto o livro: de que cor os teus cabelos os teus olhos? na minha sala, escura, a noite parece já ter chegado. mal me lembro do meu almoço.

consulto o livro dos dias, insistentemente, o que parecia ser um vagar filosófico rápido se transforma numa obsessão que me manipula os minutos. quem era eu, manhã de férias, esgar tristonho de uma solidão? arrumado nesta cadeira tão maior do que eu, conto, ao bater das unhas sobre o tampo da mesa, os segundos ou as maneiras íntimas de romper comigo mesmo. a cada toque, mais uma ausência.

domingo, novembro 06, 2005

where is my mind?

três pedras no meio do caminho, seis olhares descabidos pela janela da varanda: era assim que começava a minha tarde, o meu refúgio. tinha um casaco de cabedal, comprido, tinha a barba por fazer, uns óculos grandes e escuros. tinha o hábito de ficar a conversar à porta, com pessoas que passavam. três pedras no meio do caminho, uma loja onde me encontrei.

entretanto, ligaram a música - fica bem uma banda sonora nestes pequenos contos sem jeito. comprei um livro antigo, sentei-me num banco de pedra, na praça, folheei algumas páginas. queria saber as horas, queria deitar-me à sombra, queria abotoar o casaco. três pedras, no meio do caminho: era assim que começava o poema, a minha tarde.

os meus dedos sobre a mesa, a matraquear um ritmo ouvido de um instrumento que eu nem sequer reconheci. era assim que começava: três pedras, no meio do caminho, os meus pés sou eu, onde não tenho como seguir. o livro, ou a tarde, o meu refúgio. os meus dedos, uma vez mais - quantas vezes o meu corpo espalhado por este texto? uma banda sonora, sem jeito.

sábado, novembro 05, 2005

dedicado, em itálico

eu não tenho trinta anos, ainda.

mas há qualquer coisa que me faz viver como se os tivesse. talvez a falta de cabelo, ou a falta de afecto. talvez um certo carinho por canções românticas dos anos oitenta e uma nostalgia pelos passeios de sábado à tarde a ouvir a rfm. talvez por não ser capaz de me lembrar da minha infância, talvez por a minha infância não ser um campo onde se correu feliz.

eu não tenho trinta anos, ainda.

tenho talvez um pouco mais. e visto uma outra pele com o casaco, faço cara de mau ao balcão do café e conquisto assim um respeito amistoso de pessoas que eu não conheço. volto para casa cedo, às sextas à noite, com medo de ficar, com mais uma imperial, a olhar para as pernas de raparigas dez anos mais novas. fecho-me no quarto, a ler saramago, quando saramago era quem eu queria nunca ler.

eu não tenho trinta anos, ainda.

e mesmo assim há qualquer coisa de familiar nesta maneira de se ser solteiro. olho com incredulidade para uma série de coisas em que acredito e, um pouco mais frente, decido que não acredito assim em tanta coisa que se justifique andar sempre à procura de uma posição para todas as coisas. e depois olho para um jornal e vejo uma frase, uma palavra só, que me faz sentir como se eu próprio a tivesse escrito.

eu não tenho trinta anos, ainda, mas existem algumas palavras que me fazem viver como se os tivesse.

pintura

fico parado em frente à pintura - rios de sangue dentro de mim a manter-me de pé, experimentar puxar de um músculo, desfazer-me de dois ou três ossos, passar a cair sempre incapaz. funciona como uma fantasia, não é, a incapacidade. algures no meu texto ficariam bem algumas reticências. mas, com o tempo, fui eu que acabei por ficar reticente.

fico parado - a pintura- algo que cresce dentro dos meus olhos, só dentro dos meus olhos; passa alguém ao meu lado sem sequer olhar para a parede onde ficou encostada. pressinto qualquer coisa que se mexe dentro do quadro - sem ser a figura humana apanhada a meio da queda, sem ser as nuvens que parecem sombras ao fundo. algo se mexe, e eu acho que é a tua mão, a segurar o pincel.

fico parado em frente à pintura - fazer de conta que não existem palavras capazes de descrever objectos como esta pintura em frente à qual estou parado. fico, sim, mesmo que se esteja sempre a ir a qualquer lugar quando se olha. consulto o manual de filosofia e perco-me nas definições do mundo - se o mundo pudesse ser definido porque estaria eu ainda aqui, a sorrir para a fotografia? com o tempo, a tua mão, que se mexe, reticente.

lista de compras

a minha cabeça cansada ou será que ainda sei escrever? uma língua perfeita por aí, nas mãos dos linguistas e revisores, eu fechado nas mãos dos erros ortográficos, das pressas semânticas, a minha cabeça cansada, os meus dedos que tremem, a minha escrita errada. ou - será que ainda sei escrever? repetir incessantemente duas ou três frases negativas, pôr a música mais alto, andar de pijama pela varanda.

então - falta-me um pouco mais de tempo para fazer aquilo que programo - mais tempo ainda para a desprogramação constante dos objectivos. parte um: a cama. uso dois pontos ou travessão? a minha cabeça cansada quer fumar um cigarro na varanda, enquanto os vizinhos acordam. mas a minha cabeça cansada passa horas em frente ao espelho da casa de banho a cortar-se meticulosamente com a lâmina de barbear.

mas - será que ainda sei escrever? fazer uma pausa para reaver todos os conceitos das palavras perdidas pelos meus lábios. será isso, escrever com os lábios, dizer as letras, alguma coisa. mais além, é sábado de manhã, está fresco o tempo, há poucos carros na rua. algo me faz sentir bem nesta minha pele - e a partir de hoje gostaria de instituir passeios pela rua todos os sábados de manhã. e depois, quando acordar, saber que tudo começa de novo outra vez.

quinta-feira, novembro 03, 2005

oração

olha o que eu tenho no bolso. vês? sim, é para ti. trago-te um presente a cada encontro. falo devagar, muito devagar, para que possas saborear na minha língua cada uma das palavras. vamos ficar a morar por estes lados. esta é a nossa cama, estes são os nossos lençóis. a minha mão sobe lentamente pelo teu flanco, inquieta-te a barriga, sobre o umbigo, procura-te do lado de lado de ti. sonho com esta ilha - onde em todos os lugares és tu.

encosta esses cabelos encaracolados no meu peito, de onde sai o meu perfume depois de abertos os botões que o defendiam. sinto as tuas mãos pela minha face, pelo meu cabelo tão curto. o que nós fazemos é uma dança, uma dança em que, arrebatadoramente, nos chegamos até a um ponto onde somos só um, só um ser em uníssono. e depois ajoelhados, no chão, contamos ao outro pequenas narrativas que vêm do início da história. sorrimos os dois. é boa e simples, esta união.

perco-me por ti em oração. é assim que eu imagino o momento que está para além destas palavras. a casa está às escuras, só alguns cotos de velas iluminam as paredes que de tão brancas parecem sujas. o meu candeeiro és tu, clara pele que me encandeia os sonhos. e o meu corpo é tua morada porque em mim sabes como ancorar. trouxemos, por entre os braços, tinta da china, e pintamos palavras pelos corpos em uníssono. um último gemido e adormeço.

histórias de amor

toda a minha obra uma intensa relação de histórias de amor que acabam mal. sentencio-me assim, fico calado. e depois toda a explosão do amor em cada canto do meu corpo. [pausa]

(certas coisas precisam de um certo tempo depois de serem ditas, como se acentasse/acentuasse o cabimento de cada palavra na desordem dos nossos pensamentos)

fora isso, eu ando bastas vezes despenteado, de caneta no bolso da camisa, escrevinhando em pedaços de guardanapos pelos cafés. sou capaz de chegar a um balcão e pedir, um café e um papel, escrever qualquer coisa sem nexo que acabo por deitar para dentro de um livro e só voltar a encontrar quando é já tarde demais. no entanto, nesta coisa das palavras, nunca é tarde demais.

histórias de amor, queria-lhes fazer um singular onde eu pudesse entrar e sentir-me bem, como em casa. vem para casa, dizes tu, eu sorrio e sento-me no sofá onde procuro esse teu cheiro que ainda não conheço. mesmo que não o possas entender, tu já estavas cá, aqui, antes mesmo de chegares. se o digo, é porque o repito muitas vezes. mas tudo aquilo que eu digo é verdade, na medida em que as coisas podem ser verdadeiras.

(acabo de decidir por isto. tudo pode ser verdadeiro se nada for comparável. eu torno as coisas mais simples quando as penso)

um singular, um singular casal. lutamos contra as distâncias fazendo muita força com os braços. um dia vamos estar numa fotografia sobre a mesa da sala, a sorrir a nossa juventude para a posteridade. é assim que acontecer, nos filmes e nas vidas das pessoas boas. histórias de amor, histórias de amor por todo o lado, naquilo que escrevo. e depois é preciso um certo tempo ( não necessariamente o bom tempo) para se poder escrever aquilo que se sente.

(no final disto fica, certamente, algo por perceber. essa sensação é bem filha do muito que fica por explicar)

cores - um

a minha manhã verde - musgo - carros a deslizar pneus pelo alcatrão molhado, pensos nas faces, cortes da barba, reuniões aprazadas em cima da hora, em cima do joelho. a minha manhã - cores - uma terna influência de uma paleta de infecções oculares, ver tudo mal e tudo bem, esfregar os olhos com as costas das mãos, tirar, pedaço a pedacinho, ramelas do meio das pestanas.

a minha manhã verde - escuro - janela fechada, luz apagada. toca o telefone e eu não atendo, batem à porta, chamam à janela. a minha manhã - chamadas privadas - do escritório, do trabalho que eu entendo, não atendo, não me rendo. o sono todo ainda em mim, os pés a escorregar pela calçada feita rio, ria, feitoria. encontro-me, enquanto acordo, a rimar. e não sei bem o que sonhei a noite passada.

a minha manhã verde - vinho - garrafas cheias de nada sobre a mesa. pensar em calendários, que dia é hoje, seis sete? amanhã, só amanhã, a sexta-feira, a noite inteira, pedir uma cerveja para acender mais um cigarro, mais um charro. tudo isto, não fosse outra coisa, seria uma maneira de passar o tempo, estar com os amigos, diria. mas ainda chove, a minha manhã, as minhas cores instáveis, os meus papéis molhados.

domingo, outubro 30, 2005

sete da manhã e...

as insónias são azuis...

sábado, outubro 29, 2005

tantas portas

meu pequeno embrião - minha pequena tendência para fazer tudo errado - procuras no corpo do texto uma gralha, uma desordenação compulsiva da palavra digital. vais buscar um casaco à parte de cima do roupeiro e colocas os teus pés mesmo entre os meus camisolões. estava mesmo capaz de ir procurar o dia de hoje no calendário, festejá-lo sempre, todos os anos, a partir de aqui.

faço um risco no chão - tantas vezes fiz riscos na vida, riscos nos dias, na agenda - faço um risco no chão e continuo como dantes. os teus pés entre os meus camisolões, vais buscar um casaco. a minha pequena tendência natural para fazer sempre a escolha errada - aqueles minutos que passam, vagarosos, quando acordas e ficas pela cama a dizer: nunca mais faço isto, nunca mais faço aquilo.

é sempre mentira, não é? - digo isto para me sossegar, as moscas não me largam a vida. posso mudar a paginação do texto mas não posso mudar o meu passado - e algures entre uma coisa e outra existe ainda muito para dizer, sílabas, sílabas, em conjugação. faço um risco no chão - meu pequeno embrião, meu pequeno embrião, uma canção de embalar - faço um risco no chão.

código binário

escolha identidade usar os mecanismos de modernidade sobre as palavras - tentar feri-las; a manipulação. recorrer ao absurdo, por absurdo que pareça. fazer um peditório de palavras, assim, sem mais nem menos.

abro o jornal
suspiro cemitério projecto carrasco oficina restaurantes importância diferença filhos todo sistema tradição fundação inconsciente
assim reparo - de uma forma aleatória, é possível chegar ao encontro de palavras que não utilizamos nunca para dizer, uma lista de palavras efémeras no que se pode considerar obra. a minha pergunta é: o número de palavras cresce ou descresce com o aumento da obra?
abro o jornal (mais uma vez)
vou-me casar em abril. poderia ser uma frase fora do contexto, mas é um pouco mais, talvez eu lhe chamasse método experimental. em compensação, uma série de frases colocadas assim, à sorte, podem formar um discurso complexo e aceitável, para o leitor, mesmo quando são só reflexo de uma desorientação da mensagem.
fecho o jornal_______________________________fecho o jornal (reparo que abri duas vezes o jornal sem o fechar. repito o mesmo gesto improvável)
de resto, é uma questão de fazer tudo pausadamente.

espreitar pela vidraça - prólogo

era qualquer coisa como uma rua escura onde eu passava regularmente - oito senhores de capas compridas a entrar e a sair de uma porta grande, ladeada de uma vidraça onde, nunca por muito tempo, me deixavam parar e espreitar. era qualquer coisa como uma cidade um tanto desconhecida - com certeza grande - com fronteiras de lisboa até salamanca até ao porto até a nova iorque. era, ainda, qualquer coisa como um clube de senhores onde só se entrava fumando cachimbo.

era isso e a minha falta de jeito para contar histórias - por um lado, gaguejo sempre na narrativa, por outro, sou demasiado míope para aprofundar uma personagem. portanto, passava eu na rua escura, de jornal na mão, maço de cigarros contados no bolso, umas moedas para uma caneca de cerveja. imaginei que alguém me chamava do lado de dentro da porta e que, por uma vez, poderia entrar no clube, poderia ser recebido por aquele porteiro saído dos filmes de cinema. --muda de parágrafo ou muda de vida--

era isso e a minha escrita aos altos e baixos - calçada por calcetar - há quem diga que é dos carros que passam mais pesados do que antigamente. mas, ao mesmo tempo, a minha imaginação dormente entre os maços de jornais, um cigarro debaixo do braço, uma caneca de cerveja num clube onde não há canecas nem cerveja, um barman saído dos filmes, tudo e mais alguma coisa assim, aqui, onde eu passo regularmente, a espreitar pela vidraça.

sinal

de repente:

eu sou daqueles que escreve para ser citado
e o meu texto todo a desaparecer pela rede - uma falha de sinal telefónico, um servidor cansado. o meu texto todo sobre o poder da citação e a ausência de propriedade sobre as palavras que uso.
uma maldade.

sexta-feira, outubro 28, 2005

cinema

há um tempo em que somos fotografias de filmes de cinema ______ deixamos um certo espaço entre as palavras e os sons e paramos a história num olhar, num gesto - a mulher mais bonita, a explosão mais aterradora. sentados no sofá da sala entre quatro paredes quantas janelas de um lado e de outro - uma certa que luz que entra, uma certa luz que cega - fotografias de filmes de cinema, alguma coisa poderia começar a partir daí.

em primeiro lugar, os actores conhecidos - os grandes filmes - embora exista, nisso, uma certa perversidade de movimentos, porque é que somos levados a fixar uma imagem tão repetida nas mentes de toda a gente, tão movimentada por isso mesmo. os grandes filmes - essas histórias mal contadas dos espíritos que vagueiam na cabeça de homens que não tomam pequeno-almoço. havia, entretanto, qualquer coisa para dizer sobre os actores mas, sinceramente, já não me lembro bem do que se trata.

há um tempo em que somos fotografias de filmes de cinema ___________________________ um enorme espaço em branco onde podes assinar o teu nome ou deitar-te a fingir que também irás caber na fotografia que alguém colará na parede do quarto. são essas histórias de vidas relativamente pequenas que fazem o maior sucesso. uma vida que dura entre noventa e cinto e cinquenta minutos e pode ser consumida ao mesmo tempo que se comem pipocas. depois disso, uma entrevista e duas críticas mais ou menos laterais sobre o teu trabalho. um tem a sorte de estar no clube certo, outro alegra-se por ficar no clube errado. em suma, nenhum clube é bom para os que ficam de fora.

há também um tempo em que nos levamos a resumir tudo em frases pequenas - aquela rua - aquela estrada. há uma maneira de dizer amo-te que é muito melhor compreendida por toda a gente i love you em grande, na tela - i love you - nada a ver com uma declaração de amor, simplesmente uma maneira de ser percebido, mesmo que mal percebido, por mais olhos mastigantes. outra coisa completamente diferente é não dizer nada : o silêncio do teu olhar quando a camera te encontra a ensaiar. provavelmente é aí que, mais do que em qualquer outro lugar, os filmes de cinema se transformam em fotografias.

mudança da hora

cinquenta maneiras de dizer - um estabelecimento em rede de algumas das nossas emoções para com o próximo. entre cá e lá, o infinito de acordar e adormecer todos os dias, mais ou menos à mesma hora.

nota: relembrar que o trabalho não é a coisa mais importante da vida - vida para além das horas de expediente - não tens que estar, sequer, bom para trabalhar, será muito mais importante que estejas bom para sonhar. relembrar isto na mesa de um café, junto à estação. lá fora, chove.

deixar crescer o cabelo, uma opção de vida e de shampoo - se as pontas secam como a terra no alentejo, se o cabelo se desalinha como o vento na nossa cara - deixar crescer o cabelo pode ainda ser uma maneira de inventar palavras com consoante dupla. a mais que isto, toda a história da cozinha, milhões de mulheres todos os anos com os dedos insensíveis ao calor dos tachos. alguma vez pensaste no seu olhar?

queria também ainda deixar expresso que, entre uma sexta-feira e outro dia qualquer, existem pequenas diferenças de importância. à sexta-feira o transeunte está mais sorridente, preparado para comprar uma boa promoção na montra da loja. fora disso, é tudo uma grande monotonia. os comerciantes usam os casacos para se aquecerem no frio escuro dos balcões, poetas entram e saem pedindo moedas para um café.

seria tudo isto a história da pobreza à face da terra, poetas de dedos amarelecidos à cata de uma moeda. mas também existem poetas-revisores - luzes sobre a mesa, trazer sempre uma caneta no bolso para uma ocasião especial, rasgar páginas de livros só porque, na verdade, esse livro não tem interesse nenhum. nada é uma experiência pessoal de sentimento - um livro não é um filho - um livro é uma produção industrial de cultura [avesso às regras do capitalismo, sim] - um livro é um bem como outro qualquer - e sim, mesmo que não acredites, muitas vezes se mata a sede com um livro, mata-se muito mais a sede com um livro do que com garrafas de água do luso.

nota: poderá, algures, haver um final de história. se houver, o que eu espero, é que o possas encontrar.

quinta-feira, outubro 27, 2005

auto-conhecimento

uma mão lavada - a maçã - sete rubricas deitadas sobre um papel, uma senha arrumada a um canto da sala - dezasseis encontros por marcar/aquelas faltas constantes de que nunca se deu conta - uma lista para se fazer de manhã, a horas certas, um pedaço do nosso corpo dado ao desbarato durante a noite.

assim mesmo, eu continuo assim mesmo : gosto de dizer baixinho que voei e, asseguro, há um certo prazer ritual neste balanço de corpo que tu percebes, que tu entendes e que tu saboreias nesse silêncio de olhos atrevidos. sei tantas vezes do teu nome que me apanho a s-o-l-e-t-r-a-r, sem me aperceber, essas quantas letras que me deste no dia em que te conheci.

para quê esta fórmula a que me prendo, estes sempre três parágrafos - uma promessa, uma ausência - como se ao me sentar para escrever usasse uma tabela [pois, no fundo, eu sou do tempo em que até já as tabelas são coisa da literatura, eu já vi um lugar onde] - arrumar as minhas botas, limpas, debaixo de uma cadeira, buscar um maço de cigarros no bolso da camisa, dizer, eu não fumo.

haverá ainda assim uma explicação mais fácil para tudo isto, uma qualquer maneira de responder às minhas próprias dúvidas - porque, queiras ou não queiras, neste tempo de se ser sempre tão complexo/complicado connosco e com os outros, só nos sobra algum tempo para tentar simplificar os nossos argumentos; mesmo que se feche o entendimento a uma insistente falta de qualidade.

talvez na próxima carta eu use cores, um azul, um amarelo, um vermelho, talvez eu recorra aos diferentes tamanhos da língua neste beijo recortado de uma revista velha -aquelas coisas que se encontram sobre as mesas. estava capaz de jurar que, sem que nada eu tenha feito, o parágrafo deste texto se alterou. existe, certamente, uma vontade própria em todos os parágrafos. mas como em tudo na vida, não se percebe bem, a quem pertence essa vontade.

uma série de coisas sem sentido

era a mania dos calções, mesmo quando chovia a potes e os homens compravam casacos compridos nas lojas que eram todas de senhores bem postos e respeitados na vila. era a mania dos calções, rapaz que é rapaz, usa calções, vai à escola de calções, aprendiz de mercearia de calções. os sapatos faziam todos toc-toc-toc nas calçadas e os mariolas fumavam barbas de milho à porta dos cafés. era.

entretanto começou a usar-se, cada vez mais, um certo respeito pelas formas de outrém e, ainda sempre mais, umas quantas roupas de cores diferentes, costumes desalinhados com a respeitabilidade da vila, um ou outro tipo que, de cabelo desgrenhado, não usava a brilhantina exigida. olhavam-no por cima do ombro e nem toda a gente lhe dava os bons dias. mas era sempre o filho de ou o neto de e, por isso, aceite.entretanto.

mas agora já ninguém se conhece, a verdade é esta. a polícia já deixou de perguntar "és filho de quem" porque, assim como assim, já ninguém é mesmo filho de uma pessoa qualquer. começou-se por se ser da rua e agora é-se sempre de um outro conceito, mais ou menos reconhecível, salvo extremas ocasiões. agora já se anda na rua sem se ligar aos olhos em cima dos ombros. mas.

quarta-feira, outubro 26, 2005

aniversário de casamento

eu dizia as cores muito devagar enquanto ficava a olhar para o écrã do computador a contar vírus com os dedos. palavras que se perderam por aquelas tardes em que fomos levados a acreditar em tudo. era isso, eu a conversar sobre ti com a tua prima, tu a ouvires a conversa toda, a controlar.

eu dizia que andava a estudar as plantas e tu acreditavas. tinhas os olhos muito grandes e uns cabelos soltos pelos ombros. depois enviaste-me uma fotografia pelo correio, em poses sensuais. coisas dos livros, antigos. eu sorri a olhar para a foto e pû-la de lado logo a seguir. sabia que mais cedo ou mais tarde acabaria por casar contigo.

agora tenho a barriga muito cheia de coisas que nunca comi. a minha cabeça continua igual mas eu deixei de acreditar em muitas outras coisas. acho que já casaste. dias antes de me enviares a fotografia, um rapaz do teu escritório convidou-te para irem tomar café. eu tenho os braços cheios de jornais. não sei bem que dia é hoje.

sábado, outubro 22, 2005

segredos

o segredo da minha página está na saliva com que molho as minhas feridas. assim deixo, a sombreado, minhas marcas de sangue. procuro um casaco entre os mais velhos e envolvo-me com o cachecol. asseguro-me do maço de cigarros dentro do bolso da camisa e saio à rua. todos os homens fumam, na tua cabeça. na minha cabeça, eu fumo também.

o segredo do meu poema por terminar é esta insegurança no acordar todos os dias. encarar como um milagre a manutenção dos pés e das mãos no mesmo lugar. aperceber-me constantemente de como tudo poderia virar de rumo, se eu quisesse. querer e não querer as mesmas coisas, ao mesmo tempo. fazer da sensação de morte, uma sensação de vida e saber que, sempre que tocam à campaínha, é engano.

o segredo deste meu toque na tua pele são as noites inteiras sozinho. anos inteiros de não estar, não fazer, não ser sequer. o que há no meu toque falta em todos os outros contactos, serve assim de fronteira para o que nunca haverá além. eu sou daqueles que se entregam pouco, já sabes, e por isso segues a tua estrada, deixando-me isolado no meio do caminho. é mesmo assim, eu sei. e enquanto te vejo ir, eu não digo nada.

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