Arquivo do extinto blogue Esferovite- a vida em pedaços (13-08-2003/ 4-01-2006)

sábado, dezembro 31, 2005

mpb

miss pérola negra e as suas pernas geniais, fazendo-me suar na bancada de um bar abandonado à beira da estrada, tudo muito escuro na iluminação, uma cegueira completa de copos de whisky e narcisos abandonados aos beijos alcoolizados dos pais-chefes-de-família. isto tudo para dizer que o carro parou aqui sem que eu quisesse, conscientemente, encontrá-la.

eu já a conhecia de alguma estação de serviço da minha juventude, mas agora ela era todo esplendor e eu era todo suor empoeirado de auto-estrada. miss pérola negra, que melhor nome poderia encontrar, e eu sem bilhete de identidade, sem lugar no salão, sem estacionamento pago. demasiadas coisas para esperar que a história ainda acabasse por dar certo.

acordar num motel dois quilómetros à frente, seguindo pela estrada que dava acesso ao concelho vizinho, não estava no meu mapa mental. a minha memória apagou-se ao quinto whisky mas ainda foi eu que acendi o cigarro dependurado dos lábios de miss pérola negra quando ela desceu do palco. isto tudo para dizer qualquer coisa de que já me esqueci.

arenes

eu aqui ressuscitando do meio do sono onde as palavras me emocionam e travam de todos os lados. penso, instintivamente, numa casa baixinha à beira da estrada e da possibilidade de vários carros iguais se estacionarem à sua porta. o meu caminho é depois de uma outra estrada de gravilha e ferro, depois das fábricas e da chuva. o meu caminho é chegar ali, onde depois do sono e da ressuscitação, eu volto a ser um de mãos inteiras.

eu aqui e as palavras, uma maneira menos hábil de dizer ou fazer seja o que for, um outro corpo que se mexe dentro do meu, eu disso sempre soube, mas provando aquela deliciosa surpresa de qualquer coisa que nos mexe pelos olhos, um livro inteiro acabado de ler já a noite vai longa e a música, em fundo, a soar tão bem aos meus ouvidos ainda assim fechados. os olhos concentrados na mancha das frases, e de repente só sobra a mancha da mancha.

eu aqui e a minha imagem de rapaz com gravata à espera de uma tarde de verão, apesar de aqui chover, as estradas estarem molhadas e eu não ter botas novas para estrear no nosso casamento. imagino ainda uma camisa apertada, o meu bigode debaixo do nariz, uma postura meio torta de anjo que se descobre sem função na arquitectura do mundo. agrupo pedras nos bolsos e junto à minha porta, eram palavras, era o sono, qualquer coisa de ressuscitação.

sexta-feira, dezembro 30, 2005

repetição

ficava à porta da loja a ouvir as conversas das pessoas que passam e tinha em cima do balcão dois copos sempre vazios. espantava as moscas e os fantasmas com a mesma facilidade, a minha mão fugia para felicidade, mas ninguém é feliz a espantar moscas, quanto a fantasmas já não digo o mesmo, a coisa é mais difícil e deve ser bom chegar a casa e pensar, hoje espantei mais três fantasmas, estou feliz.

ficava à porta da loja ou ficava ao fundo da loja. não dava bem para perceber, a loja tinha duas portas, uma para cada rua, ambas as ruas igualmente movimentadas e antigas, a calçada desfeita, carros estacionados em cima dos passeios, lojas com donas velhas não para fechar, para morrer. há qualquer coisa que não se entende bem nestas ruas da cidade. há qualquer coisa que me faz fugir a mão da facilidade para a felicidade.

ficava à porta da loja, ora de um lado ora do outro, isso só deu para perceber depois de um certo tempo a passar por ali. as moscas e os fantasmas continuavam os mesmos, pois, afinal não eram eficientes aqueles copos vazios que com o tempo iam ficando cheios de pó. ficava à porta da loja, de um ou outro lado, cumpria os dias um atrás do outro, naquela felicidade fácil de se estar contente só porque se está ali.

baile

com estas três cadeiras eu faria um baile, eu que sou o duplo e a minha solidão. pediria ao tempo um intervalo e abriria, em sonho ou em chuva, as mãos para uma música nova e desencadeadora. eu e eu e a minha solidão, ou o meu chapéu com três bicos, tem três bicos o meus chapéu, se não tivesse três bicos, o que seria da solidão? um caderno já desfeito pelo tempo, temo-o bem.

contranbandeava assim o assassínio das minhas letras, rádio ligado na sala, a casa vazia, os talheres sobre as cadeiras, era isso, o meu enfim sós com tanta gente ainda por morrer. podia, mesmo assim, traulitar quatro acordes retirados de um cancioneiro asturiano ou percorrer a pé todos os andares do prédio. é tradicional, é tradicional, como um jingle publicitário em random durante a noite de ano novo.

mas a arrogância e a militância e toda a nossa ânsia, o fim do nosso mundo assim que chegasse a meia-noite, o telefone que toca mesmo sem rede, a minha companhia é azul, a tua vermelha, todas as coisas feitas a pensar nos daltónicos. um baile, enfim, um baile, troquei-te por ela, fiquei com a casa, não vou contigo ao cinema, uma mulher saída da corporação dos bombeiros, era tão bonito o amor em dias de fogo no pinhal.

imagino até já um certo silêncio pelas dobras das páginas, um engolir em seco das manobras dos nossos sapatos engraxados, o solitário desdém dos pais quando não percebem que a tecnologia tem avanços que o próprio evoluir das coisas não reconhece. eras tu e a minha casa, o baile e um nome que ainda não sei escrever, eu e eu e a minha solidão, tudo em duplicado, copo vazio caído, tudo em duplicado, ainda tanta gente.

quinta-feira, dezembro 29, 2005

algumas observações acerca de manifestos e pronomes pessoais

o que vão ler a seguir são pequenos reflexos de várias coisas:

- algumas leituras momentâneas que se misturam.

- algumas músicas que estão em random no meu real player.

- algumas conversas furtivas em chats.

- alguns pensamentos morais sobre o amor e coisas associadas.

- alguns sentimentos dignos de serem acarinhados pelos alvos deles próprios.

- alguns enganos de alma.

- alguns erros de sintaxe e semântica.

- a mais completa infidelidade a uma arte da composição que não dependa de um consistente pensamento sobre tudo o que a compõe e o mais aberrante desprendimento no momento da sua execução.

Assim seja.

manifesto-te

i'm heading west, my dear, e por enquanto todo o frio que sinto nos pés é desta paisagem onde acaba a resolução das nossas cedências. tu estás aí, chorosa e fria, entre as pernas a tua excitação promete congelar-se na vaga esperança de um cavaleiro que nunca chegará a tempo. eu dispo a minha roupa e vou-me embora. saio nu e inteiro desta reacção.

não tenho medo de te dizer que te amo, i love you, te quiero. não tenho medo de ouvir músicas do josé cid, nem de parecer ridículo quando entro em ti. não tenho medo de te morder os seios nem de te apalpar o corpo como se estivesse desejoso de uma última ceia. eu sou eu e tu és tu. tu aqui tão perto e tão longe, eu a fumar um cigarro num táxi que nunca chegará a casa.

go west, vai aonde te manda o coração, qualquer coisa assim ficaria bem num postal de despedidas. mas nunca se vai a tempo de uma despedida sem nem os encontros foram feitos a horas. agora mandas em mim quanto quiseres: o que sobrou foram algumas peças de roupa esquecidas na cadeira do teu quarto. meu amor, esta fotografia é o que os meus olhos não conseguem fixar na viagem.

manifesto-me

por entre promessas de rumbas e chávenas de café cheias, as mãos ficam frias porque agora é inverno. olhas em tua volta e há imensas mesas vazias, cadeiras por ocupar, cinzeiros sem mácula. era assim quando te vestias de gala e ias às matinées dançantes do Salão. era isso e treze rapazes a fazerem sapateado no andar de baixo, junto ao balcão do bar.

agora sabes que é preciso procurar um novo país onde colher tempestades. podes-lhe chamar Áustria, Venezuela, Carnaval ou amizade, tanto faz para o interesse que tens em ver o teu coração explodir peito afora. pelas mesas vazias vais deixando cartões onde prometes amor e cortes de cabelo. sempre foste assim, despropositado. e as promessas já não voam como dantes.

estás mais crescido, és um homenzinho, já não tens medo de falar de amor com outros rapazes, de lhes passar a mão pela cara e de os beijares na boca. o teu corpo vai arrumado dentro de um casaco e ouves, mentalmente, uma música impossível de existir fora de ti. era isso tudo e uma garrafa de rum, a noite passada, o ano inteiro. nunca foi preciso comprar mais bilhetes.

manifesto

estamos aqui há tanto tempo que a chuva nos fez acreditar que os nossos pés descansam em piscinas de água aquecida. era uma vez uma história de gente sentada e um livro aberto em cima dos joelhos - quinze ou dezasseis pessoas, digo eu, chegam muito bem para se cantar uma vitória ou organizar um baile - dêem-nos uma casa ou um reduto, nós trataremos de abolir as fronteiras e fazer a festa.

estamos aqui há um certo tempo, pois não foi assim tanto, não, e o que fizemos foi transparecer, mais do que transpirar, as ideias que fomos mastigando nas páginas dos livros e nas faces dos discos. sentamos-nos no era uma vez e multiplicamos por não sei quantos números - eram luzes a cair da tua testa ou alguém que tinha beijado com batôn dourado - e no fim eu olhei para ela, disse-lhe boa tarde, e só aí percebi não a conhecer.

estamos aqui, é um facto, embora saibamos que estamos em curso para um outro lado qualquer. deram-nos uma caixa de chocolates e comemo-los pela seguinte ordem: primeio os de formas bonitas castanhas e brancas/ depois os de tom simplesmente castanhos/ finalmente os que vinham embrulhados em papel de prata. não nos dêem mais nada - vamos colocar o volume o mais alto possível, só para reconhecer o silêncio - não nos dêem a mão.

terça-feira, dezembro 27, 2005

webcam

esse teu dedo sempre na tecla do rato sobre o link pesquisar, pesquisar, pesquisar, parece que o mundo te vai fugir debaixo dos pés e no momento seguinte a pessoa mais importante da tua vida pode desligar o computador e tu vais ficar aí, esse teu dedo sempre na tecla do rato sobre o link, mais nada, sempre a tecla, a tecla, pesquisar.

dantes eras tu sempre cansada. chegava a casa e estavas deitada no sofá, adormecida. eu tinha pena, aquecia qualquer coisa para o jantar e ficava a olhar para os carros da janela. tu acordavas, balbuciavas uma ou duas palavras, nunca nada de completo, nunca nada de concreto, a sopa já fria no balcão da cozinha, tu tomavas um banho e ias para a cama, eras tu sempre cansada.

esse teu dedo, esse teu dedo, os teus olhos fixos no écrã, o mundo adentro queres tu, sem reparares sequer que o mundo aqui fora, eu no sofá à tua espera, eu no corredor a limpar os olhos, boa noite, digo eu, tu baixas a cabeça, o teu dedo, o teu dedo, pesquisar, pesquisar, pesquisar, uma vez abri uma janela por engano, falavas de amor com não sei quem, esse teu dedo, esse teu dedo.

cansada, estou cansada. eu a deixar a pasta na mesa da sala, a deixá-la cair com força, à espera de te acordar, tu a passares as costas da mão pelo nariz, a recostares-te um pouco mais. não falamos há quanto tempo, agora? aqueço qualquer coisa para o jantar, a sopa, qualquer coisa que fica logo fria, eu a olhar pela janela, tu no sofá, se bem me lembro, esta semana disseste-me duas coisas, cansada, sim, cansada, e boa noite.

segunda-feira, dezembro 26, 2005

queria dizer ainda mais qualquer coisa. olho em frente e o nevoeiro tapou o mar. era assim que começava a história. trazia uma camisola de lã, enorme, muito maior que o seu corpo, e tirava cigarros de dentro do bolso da camisa. tinha as mãos muito enrugadas, calejadas pela água salgada. eu agora não me vou queixar, só por causa do nevoeiro.

queria dizer ainda mais qualquer coisa. as antenas têm luzes no cimo, acendem e apagam num ritmo certo. ele olhava para a montanha onde havia uma casa. uma casa e um fumeiro, alguém dentro. ele tirava os cigarros do bolso da camisa e punha-se a contar uma outra história. assim, entre a minha história e a dele, fica a história que vos quero contar, aconchegada.

queria dizer ainda mais qualquer coisa. o nevoeiro, o mar, as montanhas, a falta de sentido de tudo isto. não sei nem nunca soube o nome dele. era um estranho, um estranho muito próximo, mas um estranho. lembro-me agora disso porque eu também tiro cigarros do bolso da camisa enquanto conto esta história. eu também sou assim. ou de onde eu viria se não fosse todo este mundo calado.

espaço em branco

tudo o que tinhas a dizer, disseste, eu bem o sei, naquele momento em que fui capaz de ouvir o mais profundo silêncio da terra a abrir debaixo dos meus pés. foi preciso que eu abrisse um espaço assim, para o meu medo, depois de tanto eu ter falado aos teus ouvidos. sorriste ou nem sei se sorriste - passaste-te para um outro lado da fronteira, da fronteira onde eu já não estou.

houve tempos em que poderíamos ter sido felizes, tempos em que as coisas eram todas de outro modo. eu podia andar descansado por entre as lojas, a levantar o chapéu a toda a gente, tempos em que as tuas mãos sujas de tinta-da-china descansavam, solenemente, sobre a mesa do teu ateliê. também isso passou, ambos o sabemos. e se o tempo não volta atrás, muito menos eu, meu antigo amor, posso.

tudo o que tinhas a dizer, disseste. não guardo sequer espaço para o ressentimento, visto o meu casaco de todos os dias e saio vergado debaixo do guarda-chuva. um ou outro dia uma jovem de rosto triste passa a mão pelas minhas barbas e eu sem reacção. depois de tanto silêncio, já não se consegue sobreviver ao bater do coração. e ficou muito, muito frio.

domingo, dezembro 25, 2005

natal 3

caminhava pela beira do passeio, o corpo a sentir de perto os carros, era a tarde do dia de natal e chovia, pelo menos na terra dele, pelo menos naquele momento, caminhava pela beira do passeio, talvez não visse mas sentia, de certeza, os carros que lhe passavam tão perto do braço, podia ter um destino mas não, não tinha, caminhava, isso bastava-lhe.

trazia na mão um livro, escrito há já alguns anos, sobre acontecimentos passados há ainda mais tempo, muito mais tempo aliás, sobre algumas pessoas, homens e mulheres, sobre vidas, escolhas, pequenas surpresas que aparecem, pequenas oportunidades que se perdem, caminhos que se fizeram desfazendo-se. sim, um livro de vida, porque nada lhe parecia bastar.

chovia, na terra dele, no passeio, naquele momento, os carros e o livro, tão perto, ele não dava por isso, caminhava, caminhava pela beira do passeio, era a tarde do dia de natal e quase ninguém na rua, só os carros, as janelas enfeitadas, o livro na mão, caminhava à beira do passeio, pensava, não se sabe em quê, pensava, certamente, caminhava, e isso bastava-lhe.

natalouqualquercoisa

três quartos de mim são outra vez aquilo que eu nunca fui. não está nada para começar agora, convenço-me. o corpo, sim, mas também a boca, os dedos, os vícios. três quartos e eu no corredor, onde não sei como dormir. mas outra, qualquer coisa.

eu e eu e eu. posso fazer uma lista das pessoas com quem sonhei esta semana. umas quantas conhecidas, outras reconhecíveis, outras inventadas. sim, tu, que estás aí desse lado (pensas que por não te ver ou ouvir não te sinto), eu ainda tenho que te inventar. porquê?

era para acabar bem, este texto, deixar uma mensagem de esperança a verde e vermelho como as bolas da árvore. era para falar de outra coisa, era para ir a outro lado, trazer alguma ideia. era para ser assim, de outra maneira. natalouqualquercoisa.

cedo

acordou cedo para ir ver as prendas em cima do sofá da sala. abriu-as a noite passada, tiradas de perto da árvore de natal. acordou cedo, levou a boca seca pelo corredor. a luz do dia chuvoso entrava pelas janelas, e ao sair de cada porta inventava pequenos redutos pelo corredor. duas frases seguidas terminadas pela palavra corredor, quase três. ele era assim.

acordou cedo e ligou o leitor de cd's. está apaixonado por um álbum que não pára de ouvir. pensa em alguns amigos que não estão com ele e em noites em que havia vinho sobre a mesa. tenta estabalecer contacto com imensa gente que não conhece. repete interiormente alguns princípios de estética. ou então, é natal, é natal, é natal.

acordou cedo e olhou para o outro lado da cama. deixou uma almofada ao alto, a simular um corpo que dormisse com ele. até podia ser triste, mas acaba por lhe fazer crescer um sorriso nos lábios. coloca a almofada entre ele e o relógio digital na mesa de cabeceira. abraça a almofada para ver as horas. e percebeu que acordou cedo.

quinta-feira, dezembro 22, 2005

beijo

sempre sempre igual, dizia, as suas palavras coladas na parede, o meu formato como o teu, assim, deixar de vez os dedos por pendurar na parede, ao lado do lençol do banho e de uma fotografia de uma namorada antiga. sempre sempre igual, a mesma madeixa de cabelo guardada no envelope, a mesma maneira de dizer os nomes baixinho na cama.

e no entanto, aos olhos de quem não lê, uma distância enorme entre a cara fechada e o coração emparedado, os dedos trémulos sobre o balcão, uma bica pedida envergonhada, os dentes quietos perante o pão, queres dizer o quê quando dizes o que dizes, qual o sentido do teu estar calado quando não me dizes nada.

ou ainda a fazer perguntas quando só de absinto e perfumes se podem fazer sonhos assim, o corpo meio morto a andar pela cidade, o telefone que não toca, a mensagem que não chega, ou ainda essa maneira de dar as más notícias, a sorrir, sempre sempre igual, distante, porque ao longe vê-se tão mal o que se sente perto.

quarta-feira, dezembro 21, 2005

um manual

- eu é que tinha razão.
- mas eu é que fiquei a perder outra vez.

mestre - um manual

- mas, meu amigo, e o saber?
- meu senhor, e a maldade?

talk talk talk

-muito homem?
-macho!
-nada disso.
-como?
-anti-macho.

pretinha

"Se realmente quer ficar comigo
Não faz bola de meia com meu coração"

Seu Jorge

"under the memphis skyline"

os dez mil homenzinhos calados. eu, sozinho, digo:
-devias ser daqui.

mas isso não quer dizer nada, pois não?

terça-feira, dezembro 20, 2005

lápis-de-cor

acordo e tiro do bolso os meus lápis-de-cor. pinto as paredes e as manhãs cinzentas, abraço o meu corpo no espelho. acordo e tiro do bolso, algumas palavras de amor. e depois sopro-as dos meus dedos e fico a vê-las voar pela janela.

sim, é o que eu faço. as paredes pintadas com as cores do teu sorriso. as minhas mãos enfeitadas com os caracóis dos teus cabelos, os pés que não pisam, saltitam, pela casa. e os olhos na janela, a brilhar.

acordo e lápis-de-cor. logo o escuro do quarto em movimento, as camisas e as meias com muitas cores a contaminarem-se umas às outras. acordo e é assim, um sorriso todo cores e vontade de beijos. qualquer coisa a brilhar.

domingo, dezembro 18, 2005

guia pela cidade

se eu levantar as mãos do teclado, os meus dedos tremem.

depois de dizer isto, parece que fica pouca coisa por fazer, a seguir. continuo a olhar a folha em branco, continuo a ouvir a música a tocar.

e penso: esqueci-me. esqueci-me de levar as revistas que tinha pensado dar-te, esqueci-me de te perguntar que música gostas de ouvir. e penso: a igreja sempre esteve assim, torta, e eu nunca reparei. vejo: o senhor a falar do terramoto e eu a colocar-me atrás de ti, a ver por cima dos teus cabelos o altar, lá o fundo. ou antes: os teus dedos nas teclas velhas do órgão.

se eu ficar sem nada para dizer, o que digo depois é. ou não, o que eu não queria era dizer qualquer coisa que não tivesse sentido. assim: não passa por não dizer, passa por encontrar a maneira de o dizer - aquela maneira nossa, aquela maneira minha. sim. o tempo todo a imaginar-me abraçado a ti e só abraços disfarçados. qualquer coisa em mim tão descansada e qualquer coisa em mim a rir, a rir, a rir.

e penso: amanhã outra vez. melhor: ainda hoje aqui. sim: o tempo todo a querer ser de perto, a sentir-me a chegar. eram os teus braços abertos ou uma música que ouvi noutro lugar. uma maneira de o dizer, uma maneira de o dizer. a cidade tão bonita e as nossas mãos tão perto. era isto ou um chá no andar de cima. era isto ou não o que eu não queria dizer. se eu levantar as mãos do teclado, posso segurar nas tuas?

sábado, dezembro 17, 2005

de mim para mim II

-rapaz, deixa de pensar nisso, falo eu, de mim para mim.
e dez mil homenzinhos a correr a correr planeiam planeiam.
-rapaz, pensa menos e age mais.
dez mil homenzinhos dez mil homenzinhos dez mil homenzinhos.

deixa como está

as minhas mãos são muito pequeninas, pequenos segmentos saíndo dos punhos da camisa enquanto a noite já se foi pelo sol que entra na janela. o corpo, estendo-o sobre o sofá e penso medir o tempo, a atenção a diluir-se pela música que vai enchendo a sala sempre tão vazia. talvez por estar o tempo todo a queixar-me, agora prefiro ficar calado.

as minhas mãos são muito pequeninas, já te tinha dito ou estou a repetir-me, a minha cabeça cansada sobre a almofadas, duas ou três palavras penduradas do tecto. o sol, o sol na janela, saber que demoro um quanto tempo a aquecer, olhar para o espaço em branco à espera de ser preenchido, essas coisas. se eu deixasse uma folha sobre a mesa, alguém a levaria?

as minhas mãos são muito pequeninas, eu cofio as barbas e páro a olhar para os dois parágrafos acabados de escrever. as minhas mãos sobre o teclado, esta música, um piano, poderia ser eu. tento mas não consigo pensar sem palavras, o sol, a janela, o corpo, as mãos. sim, começou por aí, pelas mãos. estendidas sobre a mesa, pequenos segmentos, punhos de camisa, assim, assim, assim.

sexta-feira, dezembro 16, 2005

despedida

dez mil homenzinhos aos saltos de contentes com um abraço disfarçado.

frio

dedicado a...

não tremas de frio agora,
agora não, eu já estou aqui
e então, não tremas de frio
agora, não, eu posso aquecer-te.

ouvi-te dizer do vento e logo a correr a abraçar-te, era isto que eu sonhava, manhã cedo pelo café, torradas sobre a mesa, migalhas, o meu olhar perdido pela janela, tanta gente que aqui vive e eu só com cabeça para ti, ouvi-te dizer do vento, ouvi-te dizer do frio, e logo a correr, logo a abraçar-te, era isso que eu fazia, esta manhã, no sonho, torradas e migalhas, a mesa.

os meus passos sempre tão pequenos e os meus sonhos sempre tão altos, sim, sentir que vivemos algures juntos numa fotografia muito velha, já fomos velhos avôs de alguém, pois, os meus passos sempre tão pequenos e o meu coração a bater com tanta força, com tanta pressa de chegar a lado nenhum, já fomos juntos, isso eu sei, e logo agora eu, os meus passos sempre tão pequenos, saber que tu os consegues acompanhar na lentidão.

ouvi-te dizer do vento, os meus passos pequenos, e logo logo a correr abraçar-te, era hoje de manhã, eram fotografias tão antigas, eu e tu e a janela, torradas e avôs misturados, migalhas, os meus passos pequenos e correr correr, ouvi-te dizer do vento e os meus sonhos, manhã cedo, era hoje, a mesa, a fotografia, já fomos velhos e ainda somos tão novos, ouvi-te dizer logo a correr a abraçar-te, foi isso que eu ouvi, sim, foi isso, foi.

lua

dá-me lua, lua e domingos pela tarde onde, com os sapatos bem calçados, encontraremos ruas acima e abaixo as portas certas de um encontro. dá-me lua, lua e rebuçados, porque eu posso preparar um embrulho de presente, um abraço de repente, as portas abertas de enfim a sós.

dá-me lua, lua e o teu sorriso, guardando o perfume dos teus olhos, os cabelos apanhados, um caderno meio riscado. dá-me lua, lua e uma palavra, a tua mão no meu braço, um café sobre a cidade, os pés mais leves do que um voo, os olhos bem abertos enfim secos.

dá-me lua, lua e uma viagem sem regresso para a eternidade, tenho lugar ao teu lado, uma maçã vermelha no bolso, neve na janela ao acordar. dá-me lua, lua e perfume de frutas, um concerto de música de embalar, um beijo radiofónico, as portas abertas, a lua, sim.

quarta-feira, dezembro 14, 2005

ainda

dez mil homenzinhos continuam, para baixo e para cima, a fazer obras na minha cabeça.
- a conduzir assim estás bem capaz de produzir um acidente de enormes dimensões.
- em todas as curvas vejo iluminações de natal.
dez mil homenzinhos, sempre, sem parar.

recorte

- eu posso ajudar.
- podes? e queres?
- não me faças perguntas difíceis.

sms

a bem da verdade, se ninguém se lembra de escrever para mim, porque haverei eu de me lembrar de escrever para alguém?

segunda-feira, dezembro 12, 2005

escandinávia

conheces o caminho para a escandinávia, a tua cara onde a barba cresce como a noite cai, estares de pé, ao frio, à porta do teatro, e olhares à tua volta à procura da linha do horizonte, a linha do horizonte a meio da rua, a tua miopia, os teus olhos toscos, tu inteiro, conheces o caminho para a escandinávia, um bairro qualquer perto de uma cidade, uma casa pequena, ninguém a quem te dirigires quando faltar um abraço.

conheces o caminho para a escandinávia, um asilo grande e um barrete, imensos homens que te pedem cigarros, as unhas roídas e um jornal antigo, os pés frios e mais um robe, o tempo todo para ti ali fechado, talvez te dêem papéis, talvez te dêem canetas, guardas os papéis todos dentro de uma camisa velha, conheces o caminho para a escandinávia, a barba a crescer mas sem bilhete de volta, um dia o mundo acaba mas tu, tu ainda estás a tempo de viajar.

conheces o caminho para a escandinávia, algumas garrafas de cerveja misturadas com o bife do jantar, a loiça toda suja na cozinha, cheiros que se misturam contigo, fazes má cara e os cheiros não desaparecem, a sala cheia de papéis, um asilo num país gelado, ninguém a quem te dirigires quando faltar um abraço, podem dizer que te aguentas sozinho, mas tu nunca saíste dessa viagem, conheces o caminho para a escandinávia, sim, esse mesmo, é na direcção contrária ao caminho da califórnia, vais ser herói só de ti próprio, um asilo e imensos homens que te pedem cigarros.

citizen k.

não, não é amor, é uma estrada cheia de curvas, esburacada, viras à esquerda, sobes, entras no portão e sabes, sim, sabes nesse exacto momento, não é amor, é uma visita desesperada, o chão molhado da chuva, chove há mais de quinze dias, parece que só chove dentro de ti, mas não, é ali mesmo, os pés no chão molhado fazem um barulho estranho aos teus ouvidos, esse mesmo barulho, não é amor.

não, o pára-brisas na rotação máxima, chuva chuva chuva, voltas atrás, a porta à vista, voltas atrás, dentro do carro, o pára-brisas na rotação máxima, abres a camisa, sim, um ou dois botões, sentes-te estranho, sim, abras a camisa, os olhos muito abertos, sais do portão, viras à esquerda, foges, de ti ou de alguém ainda não sabes, sentes-te estranho, chove, abres um ou dois botões, sim, o pára-brisas na rotação máxima.

paras o carro, chove, não, não é amor, desapertas as calças com rapidez, paras o carro, chove, chove muito, desapertas as calças, puxas abaixo os boxers, tocas-te, tocas-te, tocas-te, sentes-te estranho, dominado por pensamentos cruzados, puxas abaixo os boxers e esfregas-te, não sentes a excitação sequer, chove, chove, não te ouves, só a chuva, não é amor, esfregas-te, esfregas-te até expulsares de ti a vontade de entrar pela porta, sim, não é amor, não é amor, não é amor, sossegas e voltas a ligar o carro, com a respiração entrecortada.

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bloco do eu sozinho

quando não sei se o que sinto é mesmo aquilo que sinto.

domingo, dezembro 11, 2005

de mim para mim

- ela cheirava a frutas, dizem os dez mil homenzinhos que tenho dentro de mim.
- ela cheirava a frutas, digo eu, com um sorriso nos lábios.

sexta-feira, dezembro 09, 2005

como o caranguejo

não quero nada contigo, disse-me ele, precisamente na altura em que eu entrava pela porta, de sorriso de bom-dia na cara, ainda tão cedo que nada tinha dito, não quero nada contigo, assim, para começar, nem me dando disposição para brincar com o mau humor dele, nem dando hipótese de fugir para não molhar os pés na rebentação, não quero nada contigo, pois, mas também não temos que perceber tudo.

a porta fechada outra vez, ainda é cedo, mas ele costuma sempre estar por cá, eu à procura das chaves no bolso do casaco, um enorme molho de chaves, quando cá cheguei esperava sempre à porta, ou o sol a bater forte na testa ou dias de tanta chuva, quando cá cheguei esperava, depois a chave do armazém, a chave do escritório, a chave da rua, a chave da arrecadação, a chave do cofre, as chaves de todos os sistemas de alarme e segurança, um enorme molho, eu à procura.

ontem à noite encontrei a filha do chefe, saí com o meu primo a um bar e lá estava ela, conheci-a pela cor dos cabelos, um fogo que lhe arde como auréola, encontrei-a e ela também me encontrou, lembrava-se da minha cara, podia ter desviado o olhar mas veio até mim, disse-me olá e ficamos a conversar, encontrei-a, é uma rapariga simpática, um tanto estranha ainda assim, diz coisas que não se percebem muito bem, sei lá, anda a ler o Ruben A. e disse-me que deve ser por causa disso.

lápis

agora senta-te. fecha os teus olhos e suspende-te da sensação de aqui estar. pousa as tuas mãos no colo, respira fundo, perfumado. olho o teu pescoço, desenhado, que entra profundamente dentro da camisa que vestes. respira fundo, eu olho-te. senta-te e sente o calor dos meus olhos sobre a tua pele.

podes estender as pernas, eu tiro-te os sapatos, se prometeres não abrir os olhos. fechei a janela e só uma ténue luz pela sala inteira. desço com a palma da mão bem aberta sobre as tuas pernas, de calças vestidas, retiro-te os sapatos. o que eu falo não falo, sopro, aos teus ouvidos. na tua face um sorriso aparece.

agora senta-se. fecha os teus olhos e suspende-te da minha existência até. as minhas mãos voltam a subir por ti, percorrendo cada milímetro de ti até se repousarem nos ombros. chego-me a ti, respiro quente no teu pescoço e tu já nem sorris. tremes ao respirar. e ao fundo vais na sensação de me ter em ti.

quinta-feira, dezembro 08, 2005

roubo

o que eu não penso, eu roubo. ou melhor, mesmo tudo o quanto eu roubo é depois pensado antes de usado. isto, pelos vistos, rima em demasia. mas era o que eu queria escrever, o sentido, apesar do formato.

então, havia um poema com uma mulher numa árvore, que descia para urinar nas calças. este tipo de coisas não me constrange, mas admira-me. não pela ideia, mas pela palavra. ou seja, o contrário exacto do anterior parágrafo.

urinar nas calças, para experimentar. tirando a frustração da higiene, surge-me até como uma ideia interessante. entrar no duche vestido. comer de boca aberta deixando que restos e molho se espalhem pela camisa. não sei se me estão a entender.

portanto, roubo. pilho. são palavras, palavras conjugadas. experimentar o nosso corpo até ao ponto em que corpo, vestuário, sociedade, tudo uma grande amálgama. percebem? desmaterializar o indivíduo até tudo ser a mesma matéria.

nem a mim me parece óbvio, era uma ideia que explorava agora. depois de ler um poema em que uma mulher numa árvore descia para urinar nas calças. e na medida do espanto, também eu me acabo por perder no que escrevo. e tudo confundido já nem se percebe o que é roubado.

baile

pedi-te que não me abrisses a camisa. estou de pé à tua frente, baloiças o teu tronco contra o meu e eu fecho os olhos, sem pensar em nada. é boa esta sensação de não pensar, uma certa descoberta demasiado recente em mim. pedi-te que não me abrisses a camisa, talvez por medo, talvez por saber que o farias no momento certo.

baloiças o teu tronco contra o meu, o meu corpo obedece ao ritmo de uma música que nenhum de nós ouve. quando é que isto começou é uma pergunta à qual eu não sei responder. julgo que é daquelas coisas que aparecem nas paredes, sem que nós consigamos perceber se é dos canos ou da humidade do terreno. agora é assim, sinto-o.

pedi-te que não me abrisses a camisa. sempre tive medo de muita coisa, demasiadas coisas mesmo. sei, ou finjo saber, que tenho um percurso que os meus pés vão seguir, sempre à procura de novas ruas e novas avenidas onde pousar os olhos. sei que tu sabes qual é o momento certo. eu não sei de nada. não penso, sinto.

quarta-feira, dezembro 07, 2005

someone said my love was gone


I (foto Catarina Costinha) Posted by Picasa

II ( foto Catarina Costinha) Posted by Picasa

III ( foto Catarina Costinha) Posted by Picasa

someone said my love was gone (texto para o filme)

ouvir uma canção que repete, monocordicamente, a palavra sozinho, sozinho, sozinho, rasgar a camisa por não querer abrir os botões, ter a cara pintada de preto e dizer a toda a gente que se é carvoeiro, deixar crescer a barba até ser digno de aparecer num álbum de fotografias, fazer exposições com objectos íntimos e pessoais. pensar que a pessoa que amamos morreu.

romper com todas as amizades possíveis e imagináveis antes que seja dia de reis, beber copos atrás de copos de álcool ainda por destilar, corromper as mentes limpas deste mundo, tentar santificar as conspurcadas, correr pelo jardim a gritar liberdade e acabar preso nas mãos de um grupo de sonhadores desfraldados. pensar que a pessoa que amamos morreu.

ter os dedos inábeis para te tocar, ter os dentes ausentes no momento da dentada, ter que fazer todas as coisas que, na face do mundo, já foram feitas, ter um dia por semana para se ser sorridente e adoecer, fingir que tudo tudo está errado, depois fingir que tudo tudo está certo, limpar as unhas, crescer um bocado, dizer olá. pensar que a pessoa que amamos morreu.

para me encantar

meu pequeno problema, flor de mar apagado, apago o candeeiro e o que sobra, estes dedos que tremem como a barriga, a minha dor sempre presente e tão escondida, agarro-me ao estômago, saio daqui.

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vou e venho e o atendedor de chamadas vazio, nem uma mensagem, uma declaração de amor, nada, nada, nada. podia tomar um duche a esta hora, mas a sujidade é muito mais eu que qualquer deriva aquática. o meu signo peixes, os meus olhos chorosos. vai um copo?

sim e sim, podia contar-te a história de uma maneira diferente mas tu só me perguntas pelo preço da vida e pelas horas de almoço. eu aconchego-me debaixo da manta e minto-te enquanto posso. depois de mim nada mais será igual na tua vida, tu sabes.

eu e as minhas dores escondidas, eclipsadas debaixo da linha do horizonte que eu não conto a ninguém. deixa-me o troco em cima da mesa e não me peças que vá ao médico dizer que me estou a desfazer por dentro. toda a gente sabe, é visível aos olhos. que horas são?

terça-feira, dezembro 06, 2005

£

estão a deitar abaixo a minha casa, sim, estes estrondos que oiço cá dentro são isso mesmo, operários, munidos de ferramentas, martelos, brocas, ferramentas, a deitar abaixo a minha casa, sinto-o, estou deitado na cama e sinto, a parede que cai, o cano que rebenta, o chão a evaporar-se no meio do pó, isso tudo, isso mesmo, a casa, a casa abaixo.

a casa abaixo, pois, e o telefone que toca sem parar, números que desconheço a gritarem-me ao ouvido, uma pastora evangélica a falar-me de deus, jesus, ai jesus, e o que eu faço, deitado na cama, a casa a ir abaixo, as paredes, deus que me fez perfeito, perfeito o dia para saber disso, a casa a ir abaixo, o telefone desligado, sem fios.

estão a deitar abaixo a minha casa, certo, e as dores que me chegam às costas, as dores que trago na cabeça, umas quantas coisas por dizer, uma parede que cai quase em cima de mim, operários ferramentas brocas, o barulho igual em todas as divisões da casa, ex-divisões comigo dentro, comigo fora, uns passos do lado de fora, onde eu estava, era aí.

0

a quantas horas daqui fica a nossa ideia de completude, era essa uma das coisas que eu gostaria de ser capaz de responder com os meus olhos. é o que podemos fazer com os olhos que me fascina, perguntas e respostas, teses inteiras só com os olhos castanhos verdes azuis que nos deram. agora, olha para mim.

falta-me jeito para dar ordens, aliás, falta-me jeito para dar seja o que for.

domingo, dezembro 04, 2005

deixa ser

talvez nunca tenhas pensado nisso, mas as amizades podem desaparecer assim, como um rio que seca pelo vale adentro, sabe-se lá onde faltou pela primeira vez água no leito, foram tantas as barcaças que, pelo meio de tombos e enjoos conseguiram ir até ao mar, que chegas a pensar se alguma vez a água faltou mesmo, talvez nunca tenhas pensado nisso, uma amizade pode parecer perfeita até ao preciso momento em que deixa de existir.

é porque é mesmo assim, um dia acordas e o rio secou. onde chegou a haver uma forte corrente agora sobram algumas poças e peixes mortos pelo chão que vai secar também, sabes agora melhor que ninguém que é só uma questão de tempo, não adiantam promessas ou detalhes que vão sendo ressuscitados por frases mais ou menos deslocadas, não adianta a repetição dos gestos, o passar pelos lugares reconhecíveis, um dia acordas, o rio secou, ponto final.

porque talvez não adiante sequer vestir um fato de gala para o funeral, paz à sua alma que se acabou, mais do que essa mera formalidade vai parecer matiné de reformados, domingo à tarde e uns quantos caquéticos a balançar os ossos ao som de músicas que ninguém ouve sem ser obrigado, os meus ossos estão bem obrigado, com falta de cálcio como de costume, um dia acordas e secou, foi embora, acabou. talvez nunca tenhas pensado nisso, mas as amizades podem desaparecer assim.

sexta-feira, dezembro 02, 2005

try walking in my shoes

castanho não é uma cor, é uma palavra. quando digo castanho, não te digo o cheiro nem o brilho dos teus olhos. digo fronteira, digo distância, falo de lugares onde não podes tocar com as tuas mãos. castanho não é uma cor, não são caracóis macios a desfazerem-se pelos dedos. castanho é uma palavra, uma palavra que tanto pode servir aos teus cabelos como ao tom da terra molhada que se avista pelo campo.

calço umas botas e não ando. com estas botas tornou-se impossível ir a algum lado. calço as botas, visto um casaco bem quente e sento-me de novo na sala. a sala tem as paredes cheias de fotografias antigas e armas que já foram de caça. calço umas botas. quando era pequeno calçava as botas do meu avô e andava pela sala a fingir que era grande. agora que sou grande sento-me, um pouco vergado, dirias, pelo peso desta sala. lá fora, castanho.

talvez alguém me espere, ou espere de mim uma ordem, um avanço. é inverno e o campo para lavrar. o meu avô entrava pela cozinha com as botas cheias de lama e as empregadas corriam a ajudá-lo. havia nelas um misto de reverência pelo senhor e um pânico da sujidade passar para lá da cozinha. dias inteiros a limpar e a lavar a casa toda e umas botas que podiam estragar tudo. levavam-lhe uns sapatos limpos e um pano para limpar a cara. ele mal sorria.

eu ficava num dos quartos de dentro a olhar pela janela. estava frio e chovia, ninguém me deixava brincar à chuva. quando ouvia o meu avô pelo corredor ia espreitá-lo. vinha imponente, completamente sujo de lama e com uns sapatos que quase brilhavam. nunca percebia bem aquela incongruência. sim, eu sabia do processo, de como tudo se passava. mas era sempre com espanto que o olhava, atrás da porta, a passar no corredor.

castanho. não é bem uma cor, agora que penso melhor nisso. castanho é um rasto de lama no chão da cozinha, é o campo todo até onde se poderia ver num dia de chuva. castanho é o meu inverno, todos os invernos. estou sentado na sala, botas calçadas, casaco quente vestido. há qualquer coisa nos teus cabelos que me faz ficar aqui. mas talvez seja a minha vida inteira. castanho é só uma palavra. tento não me esquecer disso.

balancé

aguarda sereno o mau tempo passar, depois estende a tua mão para fora da janela, diz, baixinho, uns quantos nomes, umas quantas regras, do pesar dos dias em ti fechados. aguarda, sereno, o mau tempo passar. Depois, estende a tua mão para fora da janela e diz, muito baixinho, uns quantos nomes, umas quantas regras, fala-me de como pesam os dias em ti fechados. aguardo sereno o mau tempo passar e estendo a mão para fora da janela enquanto digo, baixo, os nomes e as regras do pesar dos dias em mim fechados. aguardo, sereno, que o mau tempo passe. estendo, entretanto, a minha mão para fora da janela. digo, baixinho, uns quantos nomes, umas quantas regras, de como pesam os dias, aqui, em mim fechado.

quinta-feira, dezembro 01, 2005

k.

ele abraçava-me enquanto subíamos a rua. estava muito escuro, talvez fosse uma quebra de electricidade ou talvez a câmara municipal estivesse decidida a fazer daquele bairro um lugar pouco apropriado para vivências sociais. ele abraçava-me, tentava passar a língua pela minha barba mal feita. eu meti a mão ao bolso e tirei a chave de casa.

ele abraçava-me. o elevador estava avariado e tentávamos seguir assim, pegados um no outro, pela fileira de escadas demasiado estreita. foi uma história demasiado comprida para se poder contar de uma forma simples. não sei bem por onde é que andei naquela noite, sei que o reencontrei depois de alguns meses sem ter notícias. o que posso dizer é que começou tudo de novo.

ele abraçava-me já à porta e eu encostava-me cada vez mais à parede. qualquer coisa me dizia que o tinha que deixar por ali. gostava dele, sentia o desejo crescente no seu abraço, o meu corpo reagia, integrando-o. mas quando as luzes do prédio se apagaram, entrando numa estranha consonância com as da rua, senti que chegara o tempo de ficar sozinho. ele abraçava-me e eu disse-lhe adeus.