Arquivo do extinto blogue Esferovite- a vida em pedaços (13-08-2003/ 4-01-2006)

domingo, novembro 23, 2003

cena do cigarro

tu sentada no café, a fazeres essa cara de princesa automática, e o gajo sentado ao teu lado, armado em ricky martin, a fazer-te olhinhos através do copo de sagres preta. tu não lhe ligas nenhuma, nunca lhe poderias ligar nenhuma, ele é exactamente o oposto daquilo que tu gostarias de ter esta noite (e em todas as noites que te restam pela vida toda). acho que tu nem o viste entrar, ele veio, mediu-te toda com aquele olhar de cabrito por assar, sorriu ao de leve por dentro e veio sentar-se ao balcão, quase ao teu lado. tu continuas a olhar para a televisão, apesar de estar a dar futebol e tu não perceberes nada disso. olhas para a televisão porque achas que é uma boa ginástica para a vista. querias deixar de usar óculos, para poderes ver as pilas dos gajos com nitidez quando eles despem as calças no teu quarto e tu já estás deitada.
o gajo bebe a espuma de cerveja com muito vagar, faz parte do quadro do sensual de pacotilha, fazer tudo muito devagar, com um sorriso nos lábios, confiante, e a olhar de lado para a miúda que quer apanhar ( que muitas vezes são várias ao mesmo tempo). mete a mão ao bolso do casaco ( tudo em câmara lenta), retira o maço de cigarros, olha para o aviso [Prejudica gravemente a sua performance sexual] e sorri como quem diz impossí­vel. olha serenamente o interior do maço, escolhe um dos cigarros como se eles fossem diferentes e faz um movimento em super slow motion para acendê-lo. entretanto pede-te para lhe passares o cinzeiro. tu empurra-lo com algum desprezo. ele esboça uma piada. tu olhas para a televisão e chamas-lhe chato. ele sorri. sente que te está a conquistar.
quando pedes a conta e começas a arrumar todas as tuas tralhas no saco ele percebe que vai ter que agir rapidamente. pede-te o jornal, um guardanapo, pergunta-te as horas. tu respondes a tudo a achar pouquí­ssima graça aquela brincadeira. o gajo está a ficar aflito, mas sem coragem para perguntar o teu nome ou oferecer-te uma bebida. pagas, vestes o casaco e quando te vais a dirigir para a porta, olhas para trás, ris-te e dizes, sou lésbica. o gajo engasga-se um bocado e chama-te mentirosa. tu paras em frente à porta e fazes a cena do cigarro em slow motion. o gajo olha para a televisão.

sábado, novembro 22, 2003

coisas coisas coisas...

e quando me sentei em frente ao portátil para escrever a história da minha vida, veio-me à cabeça esta ideia: foda-se, não me peçam para escrever. era uma ideia suicida, agora que tinha largado todas as outras fontes de rendimento possíveis na minha vida para ser escritor. decidi-me pelo mais prudente. fingir que nada se tinha passado. e voltei a adormecer calmamente.

sexta-feira, novembro 14, 2003

little angel falling down...

mami, dizia ela, deixa-me ver a rua, e a mãe a dar-lhe palmadinhas nas mãos e a passar-lhe os lábios pela testa a confirmar que a febre não descia nem um bocadinho. deixa-me ver a rua, deixa-me ver a rua, repetia ela até à exaustão em que quase adormecia. a mãe levantava-se um pouco, a tentar certificar-se que a casa continuava igual para além daquele quarto em que permanecia fechada há dias. a febre, uma febre estranha que aparecera sem aviso e sem razão ainda descoberta. que tornava a pequena mariana mais pálida, mais frágil ainda do que já era. embora não lhe tirasse aquela ânsia de rua que sempre tinha desde muito muito pequena. mami, deixa-me ver a rua, dizia ela, recuperada do sono. e a mãe sentava-se de novo ao seu lado.

lá fora chovia chovia chovia, como não chovia há imensos imensos dias.o céu estava escuro, aquele cinzento escuro da massa de cimento fresca. e a chuva caía como caem os prédios, os tijolos, as marretas nas poças de água. os vidros pareciam querer fugir ao dilúvio, como que ondulando com a força da água e do vento. não se via ninguém. só faróis de carros que seguiam muito devagar, a tentar encontrar o caminho por entre aquele oceano entre prédios. as lojas pareciam já ter fechado. três da tarde e já era noite há tanto tempo. raquel, a mãe, deixava cair uma lágrima de desespero. com o tempo assim ninguém viria visitá-la, ajudá-la com um olá. com o tempo assim nem a avó, nem o primo, niguém viria passar a mão pela testa da pequena mariana.chovia chovia chovia.

não há rua nenhuma para ver, mariana, está tudo escuro. mariana de olhos semi-cerrados a tentar perceber as palavras da mãe. não há rua, a febre, dói-lhe a cabeça mas ela ainda não sabe, só tem um sono que não consegue explicar, nem sabe como se diz, apenas lhe apetece ver a rua, os carros, pessoas, qualquer coisa, apetece-lhe ver os desenhos animados, a televisão, o papá, apetece-lhe qualquer coisa que ela ainda não sabe dizer, mas é bom estar ali, com os miminhos da mamã, não há rua nenhuma para ver, está tudo escuro. escuro, deve ser de noite, e o papá?, ainda está no trabalho, a ganhar o dinheirinho, escuro, deve ser de noite, não está cá ninguém, e a febre, tanta coisa em que pensar, tanta coisa que mariana ainda não sabe dizer, mami, deixas-me ver a rua?, não, e a avó?

quinta-feira, novembro 13, 2003

stôr rimbaud

tenho os dedos das mãos frios... muito frios mesmo. queria dizer-te que ando para aqui a olhar as pessoas das mesas que sobram pelo café e que não encontro nada nem ninguém melhor do que eu. sim, é chato esta vida de gajo triste numa terra de merda. afinal, tinhas tu razão, não há mesmo nada que se possa fazer por aqui. saio das aulas pelas quatro da tarde e sento-me aqui. exactamente daqui de onde te escrevo. gostava de te poder contar histórias bonitas. sim, eu sei, tu esperas que eu te conte histórias bonitas. mas sabes bem como é difícil inventar histórias assim, das que tu gostas.

peço uma imperial. peço várias imperiais. passa um casal de alunos meus e diz-me olá stôr enquanto correm não sei bem para onde. ainda nem me dei ao trabalho de ir procurar o que há pela vila, para além deste pequeno triângulo escola casa café. peço várias imperiais. molho a borda do papel em que te escrevo. não volto atrás, escrevo tudo até ao fim. assim levas uma marca da minha vida, sabes, este papel fui eu mesmo que toquei, esta é mesmo a minha letra e esta é a mesma imperial que eu estou a beber enquanto penso nestas coisas. sim, aqui a vida é real. eu bebo para a literarizar.

quando a tarde começa a esfriar, o homem do café olha-me com cara de quem me queria ver ir para casa. a essa hora peço um vodka, para aquecer. ele sabe que eu nunca saio daqui antes das dez, onze da noite. não aguento entrar naquela casa vazia, ficar lá sozinho com esta minha imensa depressão de professor em escola de província.ainda pensei em tornar-me numa espécie de régio ou vergílio ferreira. eu sei, eu e as minhas ideias parvas. ainda pensei em escrever e em elaborar um enorme tratado filosófico neste exílio. mas não, peço imperiais, peço várias imperiais. e quando vou para casa é com aquele enorme peso nas pernas. a bebida não me excita nada.

escrevo-te daqui como quem diz socorro. como quem olha sem conseguir soletrar uma palavra mas tem no olhar todo o desespero do mundo. eu sei que sou um pouco trágico, exagerado até. mas é esta minha tendência para ser muito pior do que sou que me faz cair neste buraco. peço-te desculpa por ficar aqui parado, a beber, só te escrevendo esta carta, por muito cheia de mim que ela siga. eu estou aqui e não consigo sair antes das dez ou onze da noite. como se fosse um imponderável, esta minha entrada nos infernos. clamando por rimbaud, sem poder molhar os pés, sequer pô-los fora da barca.

terça-feira, novembro 11, 2003

jeitosa

A criança colheu com a sua pequena mão um arbusto caído nesta escura tarde de outono. Pegou nele, observando-o com cuidado, recorrendo ao olhar inteligente que caracteriza as crianças em estado puro de observação. Apertou-o com doçura entre os seus frágeis dedos. Levou-o para casa. Como a uma árvore de fruto.

A sua missão era entregar a caixa dos pequenos fios em casa do seu amado primo. Era uma coisa de infância, esta paixão. Iniciara-se quando tinham três, quatro anos, na cumplicidade das tardes passadas na sala da avó. Entre eles descobriram o que difere os meninos das meninas. Entre eles tocaram pela primeira vez a frescura de uns lábios. Entre eles prometeram segredos, como só trocam os amantes. A sua missão era entregar a caixa dos pequenos fios em casa do seu amado primo. Estacou perante a porta. Olhou o chão.

Guardado dentro da gaveta, era aí que esperava que ele crescesse. Para isso lia-lhe histórias todas as noites, às escondidas da mãe e do pai. Mesmo num dia em que o seu irmão mais novo lhe perguntou o que estava ela a fazer lendo assim uma história, para cima da mesa, ela não lhe disse nada do segredo, o segredo que gostava de guardar só para si. Tinha medo que não acreditassem que tinha trazido uma árvore de fruto para dentro do quarto, frágil servo em frágeis mãos. E agora saltam maçãs de dentro da gaveta.

domingo, novembro 09, 2003

tomates

Coçava os tomates enquanto olhava para o outro lado da rua onde estava ela, na paragem do autocarro, a tentar abrigar-se de uma chuvinha de merda que caía aquela hora. Era sempre o mesmo ritual de final de tarde. Ela saía da boutique às seis da tarde e tinha autocarro às seis e um quarto. Eram sempre uns dez minutos que ela gastava ali sem fazer nada. Ele, a essa hora, saía sempre da oficina, que ficava em frente. E deixava-se ali estar durante aqueles dez minutos, a medi-la, a observá-la, a conhecer todos os seus gestos. Sim, ele já conhecia todos os gestos que ela poderia fazer. Até que ficou, como se diz?, levemente apaixonado. Como se existissem coisas destas assim leves.
Encontrou-a uma vez num baile. Uma festa onde ele ia todos os anos, com uns amigos lá da oficina. Era uma espécie de tradição. Ela estava lá, com as amigas e com o namorado. Sim, ao que parecia, ela tinha namorado. Mas o que pode fazer um namorado quando a paixão arrebata um homem embrutecido pelas circunstâncias da sua própria vida? Nesse dia ele ficou, como no resto de todos os outros dias anteriores, quieto. A observá-la. Ninguém reparou que, num determinado momento, ele colocou a mão entre as pernas e coçou os tomates. Isso faz tanta gente quando está assim, encostada, ao balcão do bar de um baile.
Quando o encontraram, ontem à noite, tinha uma enorme mancha de sangue na camisa, as mãos e a cara sujas de terra, o mesmo olhar vago de sempre. Estava à beira da estrada, perto do pinhal, à saída da cidade. Não disse nada, como nunca disse nada a ninguém. Era um tipo pacato, daqueles que nunca se chateou com ninguém no café, nunca bateu com uma porta, nunca levantou a voz para a mãe. Levaram-no para o hospital e esperaram. Um dos bombeiros que o levou escreveu no relatório que tinha achado estranho que o indivíduo, naquele estado, tivesse passado o tempo todo da viagem a coçar os tomates. O corpo dela foi encontrado de manhã.

sábado, novembro 08, 2003

o que eu acho

Quando me olhas assim sinto-me nu. E estar nu deixa-me profundamente desconfortável, ainda para mais à frente de alguém como tu. Confesso, contigo nunca tive nenhuma espécie de desejo sexual. Nunca pensei que podia sequer beijar-te. Não. Isso intimida-me muito mais do que aquilo que tu possas pensar. Portanto, contigo nunca pensei em nada. Estás demasiado próxima para que me permita a isso. Só tenho desejos sexuais quando tenho a certeza que eles não se vão realizar. Só penso em fazer amor com alguém que não conheço de lado de nenhum. E a ti conheço-te. Portanto não serves.

O problema contigo é esse teu olhar. Eu sei que tu também não queres nada comigo. Fazes isso só para me foderes o juízo. Eu encolho-me todo por dentro e ponho-me a andar pela rua ao meio da noite. Saio e está a chover. Gosto de andar de chapéu de chuva. Por um lado é útil, já se vê. E quando não chove marco o ritmo dos meus passos na calçada, com a biqueira de aço do chapéu. Acho que há pessoas que se assustam com isso. Mas não me importo, sabe-me bem. O problema contigo é eu ficar sem saber bem o que te dizer e acabar sempre por falar de outra coisa qualquer. Acho que isso te irrita.

Quando me convidas para irmos beber umas cervejas treme-me sempre o olho esquerdo. É o olho que me avisa dos perigos iminentes. Visto um casaco e vou ter contigo. Chegas sempre primeiro, tens sempre a chávena do café já vazia e fumas um cigarro nessa tua forma de não saberes fumar e a olhar para os gajos que entram pela porta do café. Eu sento-me ao teu lado e finjo que te falo de alguma coisa. A verdade é que dentro de mim sempre se exalta aquele gajo que não sabe sequer como pôr as mãos em cima do balcão. Aquele gajo que não sabe se deve beber o café segurando a chávena com a mão direita ou a esquerda. Eu acho que isso tu nem percebes. Ou então finges que não percebes e falas-me na mesma de tudo aquilo que te chateia ou que te leva às nuvens. És demasiado gente para mim, minha cara. E esse teu olhar. Eu acho que é um problema, mas o que é que eu sei disso, não é?

terça-feira, novembro 04, 2003

...

manuscrito encontrado entre papéis diversos, de autoria certificada, datado (provavelmente) de 1985.

" Hoje foi o primeiro dia de caça.
Eu vi muitos caçadores mas acho
que não apanharam nada porque
os coelhos são espertos.

Luís

para o avô Quim"


sem comentários.

segunda-feira, novembro 03, 2003

dizem que se pronuncia telefonia

Tenho debaixo da cama uma telefonia que só toca quando eu quero. Eu sei que pode não ser agradável para todos os restantes ouvintes, mas naquela telefonia mando eu. Tenho vinte e quatro anos e vinte quatro rosas enfiadas numa jarra. A telefonia tem um leitor de cassetes, o que só serve para enervar o meu vizinho do lado. Lamento ser um resquício de antiguidade neste tempo dos leitores de cd’s. mas a minha vida tem sido assim, sempre um passo atrás na tecnologia. E nem o facto de ter aprendido a escrever me pode servir de muito. Afinal, estou aqui fechado. Ou não?
Uma enfermeira tapa-me com uma manta. Pensa que tenho frio. Eu não lhe digo nada. Pagam-me para estar calado. Sê doido e cala-te, já dizia o capataz. Eu obedeço. Aprendi que é bom obedecer. Um gajo leva menos porrada e no fim até nos deixam ir tomar café lá fora à hora da bola. O gajo da tasca não aprecia mas entretanto já percebeu que eu sou normal. Só aqui dentro é que tenho que me fazer passar por assim-assim. Por isso ligo a telefonia às horas do relato. Para que toda a gente saiba que eu não respeito o silêncio. E depois fico três semanas de castigo, três semanas a ouvir relatos e terços. Gosto de ouvir o terço. É como um jogo que acaba a zero a zero.
Por cá chamam-me Zézito, no café Sr. Zé e lá em casa, onde eu já não vou nunca, tinham a mania de me chamar Afonso de Albuquerque. Eu sei, é estranho. Mas um gajo tem que ter uma imagem fria e insensível para ser alguém na vida, ainda que o projecto seja ser maluco. Quando ando de autocarro gosto de me sentar nos bancos de trás e de esticar as pernas para o lado do vidro. Mas eu já nunca ando de autocarro. Agora, ligo a telefonia e ponho numa estação esquisita. É como se andasse de autocarro, a ouvir música que não gosto. O gajo do lado queixa-se. Eu cuspo para o ar. Esta telefonia só toca quando eu quero.

domingo, novembro 02, 2003

papel de parede

Tinhas um copo, com uma ligeira porção de leite a tapar o fundo, sobre a mesa. Com os pés esticados sobre a mesa da sala, olhavas a televisão desligada como se passasse um filme daqueles que não gostas de perder. Tinhas as meias azuis calçadas. As pernas, pequenas e brancas, lisas como um lençol doce. Respiravas solenemente sobre a camisa verde que um namorado qualquer dos antigos havia deixado aí em casa há uns tempos. Tu respiras sempre solenemente.

A mão que abraça um prato de corn flakes parece tão frágil como os cristais que a tua mãe guardava com religiosidade no armário da sala de jantar e que só deixava que as visitas vissem ao longe. É essa mesma mão que usaste a noite passada para expulsar um gajo da tua área de acção num dos bares onde te prolongaste. A tua fragilidade só é comparável à ferocidade que aplicas nas tuas relações com as pessoas de que não gostas. E por isso, muitas dessas pessoas gostam de ti.

Se alguém te espreitasse pela janela, facto impossível na realidade, visto morares num oitavo andar, encontraria um bom motivo para um retrato à la Mona Lisa. Se fosse um pintor renascentista, talvez fizesse um esboço e te convidasse a posares para ele um dia mais tarde. Com os devidos arranjos, criar-te-ia um ambiente propiciamente clássico. Um impressionista talvez te oferecesse um déjeuner sur l’herbe. Eu ficava lá parado, inquieto, a olhar.

sábado, novembro 01, 2003

fragmentos da existência 01

Tenho a sensação de ouvir um barulho de água ao fundo do corredor. Não sei o que te traz até mim, mas tenho a certeza do que me mantém longe de qualquer tipo de decisão ou de acção sobre o mundo em que nos movemos. Tenho a sensação de ouvir o barulho da água e sento-me no chão, escorregando com as costas pela parede do meu quarto abaixo. Olho os meus pés descalços e tento perceber-lhes uma qualquer espécie de poesia. Muitos poetas escreveram sobre pés, sobre caminhos a fazer, caminhos que necessitam ser feitos. Eu não sei desses caminhos, mas tenho a certeza do que me mantém perto dos meus pés. Gosto de os observar descalços. Como muitos outros homens avalio algumas pessoas pelos pés. Gosto de os observar descalços. Raramente acho uns pés bonitos. De qualquer modo, seria incapaz de os tocar. Um sentimento de repugnância invada-me, associado a esse pensamento.

feedback

Naquilo, o fadista aparece a descer pelas escadas com um copo de vinho vazio na mão e o Nininhas, que estava a segurar o balcão da espelunca com o corpo envinhado, solta um grito à tarzan pela sala com tecto rebaixado e convoca toda a gente para uma rodada do que apetecer, vinho tinto, água pé, minis e o que calhar, que a vida não está barata mas se não houvesse pinga é que era mau. O Narciso, que tem cara de cu mas é bom rapaz, ofereceu-se este ano para orientar o serviço à condição de ser a patroa dele a fazer a feijoada que, historicamente, é sempre tarefa das irmãs do Carapau, que não deixam ninguém aproximar-se da cozinha e fazem uma feijoada de ocupar casa-de-banho por quinze dias. É claro que isto acabou em discussão e foi preciso fazer-se uma assembleia geral do clube para tratar das coisas da festa.
Hoje é dia de fados e guitarradas e a malta embezanou-se toda à hora do jantar. Os fadistas alindaram as gargantas na água pé e os guitarristas, que são gente fina e não gostam de confusões, afiaram as unhas no tintol. Enquanto foi chegando pessoal daqui e dali para ouvir o fado, o gajo do som encasinou meio auditório com uma apresentação das capacidades do feedback e começou o espectáculo com uma discussão de fadista-a-uma-ponta-da-sala contra gajo-do-som-na-outra-ponta com meia casa a aplaudir e outra meia a queixar-se do caldo verde. Foi bonito de se ver. A malta bebe.
A festa seguia rija e, naquilo, o fadista aparece a descer pelas escadas com um copo de vinho vazio na mão e o Nininhas, que estava a segurar o balcão da espelunca com o corpo envinhado, solta um grito à tarzan pela sala com tecto rebaixado e o pessoal pára por um bocado a ver aquele gajo aperaltado aos jigajumbas pelo meio da cadeiras, em carambola com cara de boca cheia e olho esvaziado de desvios, as mãos a segurar as ancas, qual peixeira da ribeira, apontando à porta da casa-de-banho e espetando uma valente cornada na parede qual campino em vésperas de tomates de boi para o lanche. O Garibaldi, que estava desde o início do parágrafo a emborcar um copo de tinto pelas goelas abaixo, assusta-se com o estrondo e deixa que os últimos nove centilitros da vinhaça lhe escorram pelo pescoço abaixo até às golas da camisa e a Manela, que estava de serviço à quermesse, esposa de engomamentos categóricos, espeta um daqueles gritos, ò Manel olh’ éssa merda!, e a festa continua com a normalidade do costume