Arquivo do extinto blogue Esferovite- a vida em pedaços (13-08-2003/ 4-01-2006)

sexta-feira, setembro 30, 2005

lenga lenga

não há quem a mereça, esta dor, esta dor de cabeça. rima previsível, prevista e apontada num caderno de memórias, pronto a ser publicado assim que morrer. noite em branco, ou melhor, noite em preto, os olhos quando se abrem no escuro não vêem nada. esta dor, esta dor de cabeça. dois pontos, parágrafo, que alguém vai começar a falar.

arrumado a um canto do quarto, um corpo, uma mão, alguém que entra, a porta aberta, dir-se-ia, alguém mas quem?, barulhos no corredor, sim, são seis, sete da manhã, o dia começa, ficar atento a ouvir os barulhos das casas vizinhas, alguém na casa-de-banho, alguém que se levanta da cama, água a correr, portas, chama o elevador, arrumado a um canto do quarto, a ler.

mas não estava mais ninguém em casa, chego a pensar que não estava mais ninguém no prédio inteiro. adormecer e então ser ainda pior, sonhos atrás de sonhos, preocupações, preocupações, sempre à espera de acordar. não há quem mereça, não, não há, esta dor, esta dor de cabeça. e depois contar as horas pelos dedos, as horas pelo rádio ligado na cabeceira, e a dor, e não, não há, não há quem mereça.

quarta-feira, setembro 28, 2005

todos os poemas são poemas de amor

talvez fosse engraçado conseguir dar um salto até aí, no próximo sábado. gosto das cidades grandes quando estão desertas, ia gostar de te encontrar numa rua qualquer, tu ias-me segurar pela mão e levar-me a esticar as pernas pelo rio. seria o que nós chamamos de oportunidade. depois anoiteceria e eu ia levar-te, debaixo do meu braço, até a uma estação de comboio próxima. e seguiríamos linhas diferentes.

faz-me falta a presença do comboio, um comboio activo e consequente, que sirva para se chegar a algum lado. faz-me falta uma rua larga e um jardim onde passear mesmo quando está frio. faz-me falta um casaco, um boné e um cachecol. fazem-me falta as folhas secas do outono e os dias em que ameaça nevar. faz-me falta um telefonema a meio da noite, sentir-me calmo quando me tocam à campaínha. faz-me falta uma vida normal. uma vida normal como a minha.

talvez fosse engraçado poder sacudir a humidade dos cabelos e aquecer as mãos perto de uma lareira. olhar, com todo o vagar do mundo, os livros que tens espalhados pela tua sala. pegar num e ler duas frases, em voz alta, fazer-te sorrir. talvez fosse engraçado isso, o teu sorriso. o meu, também, em reflexo. talvez nos pudessemos divertir a inventar um qualquer prato, na cozinha. acender as luzes, espreitar pela varanda. e ao ver o comboio passar sentirmo-nos alinhados, mão na mão.

noite

tenho os olhos cheios de vento e de aldeias perdidas no meio de pequenas serras. sinto o frio a entrar por dentro da camisa e vou fechando botões à medida que a noite vai avançando. estou sentado num banco de pedra fria e penso que o mundo há de ter uma saída. ainda assim, satisfaz-me, de certa forma, a ideia de que não estamos aqui seja para o que for.

tenho as mãos e os dedos e as unhas limpas. olho-os com uma certa admiração, seja por ser de noite, seja por eu gostar de mim. esta frase, mesmo quando me soa estranha, parece, ainda assim, uma frase possível de ser dita. gosto de mim, gosto de mim. a maior parte do tempo até tomo isto como verdadeiro. na outra parte, é só uma coisa que se diz, à distância.

tenho os pés aos saltinhos, sempre esta sensação de nervoso miudinho que não me larga os dedos dos pés. saltinhos, saltinhos, pé de costureira, mas sem máquina, sem costuras, sem roupa, sem nada. apetecia-me arranjar um cigarro sem fumo e deixar que o sal do mar se encostasse à minha pele e me fizesse como uma estátua. ainda assim, o não haver razão nenhuma para continuar aqui, também me serve, também não me faz mal.

segunda-feira, setembro 26, 2005

primeiro acto

o primeiro acto são duas pessoas sentadas numa sala. estão em cadeiras simples, têm roupas banais, um cinzeiro algures (pode ser no chão, pode ser noutro lado qualquer). pode ser um ele e uma ela, é assim que está escrito, mas também pode ser outra coisa qualquer. são duas pessoas sentadas numa sala. conversam sobre qualquer coisa que não se sabe muito bem o que é. falam das coisas que os preocupam, acho que é só isso.

são pessoas da mesma geração, da geração que ouviu falar de uma revolução que parecer ter sido uma coisa muito boa mas da qual os sonhos acabaram todos de bigode a fingir marquises nas grandes cidades. da geração que dizem que é da europa mas que tem a família toda enterrada no analfabetismo e nas recordações de senhores doutores que mandavam. da geração que vai conquistar o mundo mas que lhe custa tudo, tudo, como uma dor de costas que não passa.

o primeiro são cigarros que se fumam devagar entre perguntas para as quais nunca se encontra resposta nenhuma. podia ser num café, numa sala ou num palco de um teatro. porque não há nenhuma necessidade em fingir que não se está onde se está. nem é preciso inventar grande coisa. fosse onde fosse, a sensação seria sempre a mesma. a sensação de quem tem todas as perguntas embrulhadas no medo que dá descobrir uma das respostas. é isso.

vivendo assim

agora ficamos a esfregar as palmas das mãos uma na outra até ser outra vez de manhã; depois, pegamos na roupa que usamos há já alguns dias e saímos pela porta da rua, de peito elevado, convencidos que o mundo nunca muda quando nós ficamos em casa a dormir. quanto a ti não sei, mas é desta forma pequena e isolada que eu vejo o mundo - durante muito tempo pensei em fazer as coisas de outra maneira, tentar ser boa pessoa, tentar ser alguém reconhecido, tentar atrair para mim os abraços e os beijos das raparigas - agora fecho-me em casa e deixo crescer a barba. o que tenho para te dizer é que a minha barba cresce devagar.

no outro dia, era de manhã, eu tomava uma chávena de café e olhava a varanda da minha vizinha, pensava no interesse que tem a literatura na vida das pessoas que estendem a roupa quando chove no terraço e pensei em sair de casa sem vestir o casaco, descer até à tabacaria mais próxima para comprar pastilhas e chocolates. não sei bem que dia da semana era, a senhora sorri-me sempre da mesma maneira e aconselha-me a ler os artigos do Vasco Pulido Valente. isto podia ser Londres, mas é só uma cidade pequena da província. queria chocolates e trouxe cigarros, sentei-me de novo na cozinha, o café ainda quente e a garganta que começa a doer.

porque eu passei o verão todo com um cachecol pendurado no quarto, acordei em todos os dias de calor com o cachecol em ponto de mira, e hoje, ao procurar umas calças pelo chão do quarto, pensei que tinha saudades do outono e destes dias de chuva. comecei a escrever pequenos apontamentos no meu caderno e ao final da manhã tinha uma novela, uma pequena novela, toda alinhavada em seis páginas pequenas e riscadas. era isto ou fazer a cama, pensei. tomei um duche rápido e com um pedaço de pão na boca saí a ver as pessoas à procura de almoço. andei pela rua a espreitar para dentro de restaurantes. havia muita gente a esfregar a palma das mãos uma na outra.

domingo, setembro 25, 2005

dimanche aprés-midi

comprar o jornal, já passou a hora do almoço, a olhar para o expositor e os títulos, bem, não de certo os títulos, as cores, as letras, os papéis, sim, comprar o jornal, é domingo, da minha memória apaga-se, aos poucos, aquilo que fiz a noite passada, depois as cores, as letras, os papéis, comprar o jornal, um senhor olha-me de lado sem sorrir, é isto a cidade.

comprar o jornal, pensar, a que horas chega o comboio, andar por ruas sem ninguém, passa gente de um lado para o outro, isto não faz nenhum sentido, penso e volto a pensar eu, uma cara conhecida, um boa tarde envergonhado, sim, comprar o jornal, fechar os olhos com muita força e voltar a abri-los, comprar o jornal e todo este sol na minha cara.

comprar o jornal, guardá-lo debaixo do braço, atravessar a estrada, pedir um café ao balcão, andar pelas ruas, sem ninguém, comprar o jornal, contar minutos e pensar que acabarei por não ter tempo para ler o, comprar o jornal, parece que alguém chama o meu nome, ou então o vento, eu que nunca oiço nada bem, parece que, comprar o jornal, o sol, sim, o vento.

sábado, setembro 24, 2005

[ ]

vai e vem o que eu quero de ti, repito baixinho estas palavras até me convencer que não te toco com nada mais senão os meus olhos fechados pela luz do candeeiro que acabo de apagar. não tenho desejo nem razões para ir mais longe: gostava, enfim, de que te pudesses recordar de mim como algo bom. pequeno, mas bom. e sim, há também em mim uma certa ânsia de que o digas aos quatro ventos. é por isso que eu não convivo bem comigo.

vem e vai o que eu sinto por ti, nenhuns outros lábios me saberiam dizer tão bem como os teus, e logo tu que me magoas sempre que cerras os dentes e sais de casa a bater a porta com força. nada mais de mim em ti, nada mais senão uma ausência de sentido nos telefonemas que ainda te faço. procuro sempre uma razão, tantas vezes inválida, para te dizer um olá, um adeus. tu não voltarás nunca, e eu nunca estarei suficientemente certo daquilo que vou querer nesse regresso. enfim.

vai e vem, como os meus olhos à janela, a ver quem passa, a ver quem chega, aquilo que eu quero de ti. porque quero alguma coisa, sim, acho que será mais ou menos isso. lavo as mãos e olho a minha face no espelho, encosto a minha cabeça aos azulejos frios, procuro uma qualquer ressonância de ti em mim, uma vibração, pequena que seja, seja. depois não me venhas falar do tempo, das bicicletas ou da depressão. vai e vem, marés, maré.

quinta-feira, setembro 22, 2005

cara?

eu tenho sempre esta cara de manhã, esta cara de não saber nada, o meu velho problema de expressão. eu tenho sempre este passo de manhã, um passo apertado entre as paredes do corredor, o cabelo despenteado, as mãos, muitas vezes, a segurarem-me de pé, porque me desiquilibro, porque me parece que vou cair.

eu tenho sempre esta cara de manhã, esta cara de não saber o que dizer, esta cara de quem está a ir embora de volta às montanhas. por muito que me custe o tempo que todo que passo sozinho, é sozinho que eu sei estar. e depois alguém me vem pedir explicações, mas não há nada para explicar. ser sozinho é como ser-se outra coisa qualquer.

eu tenho sempre esta cara de manhã, eu tenho sempre estes olhos acabados de morrer. tenho o andar ensaiado e as coisas todas nos seus lugares. durmo bem de noite e nem sempre me agrada sentir o cheiro dos outros. pego na minha roupa e deixo-a num monte, pronta a lavar. esta cara de quem está a ir embora de volta às montanhas, porque estou.

mesa do canto

olho para a mesa das senhoras, ao canto do café, a mesma mesa de sempre, as senhoras, amigas velhotas, digo bom dia a uma delas, olho as outras, de as ver tantas vezes já podia dizer que as reconheço, mas mesmo assim, uma coisa me incomoda.

olho para a mesa das senhoras, porque sei que uma das senhoras que ali está, é uma senhora que eu procuro há muito tempo. como fui eu esquecer-me da cara dela? há muito tempo que outras pessoas me dizem a viram, que lhe falaram. e eu nunca.

achava isso estranho, mesmo. mas agora percebo que me esqueci da cara dela. como nos podemos esquecer da cara da pessoa que procuramos? como é que isto me foi acontecer a mim? olhos para a mesa das senhoras, ao canto do café, e não sei, não sei quem procuro.

quarta-feira, setembro 21, 2005

um café

bebemos um café mais tarde, o que me dizes, tens os olhos brilhantes, mas pode ser só da luz, eu não acredito que tenhas estado a chorar, a chorar por detrás dessas palavras que inventas, talvez, bebemos um café mais tarde, depois de eu tomar um duche e comer qualquer coisa, eu tenho assim este aspecto porque eu quase nunca como, sabes, fumo cigarro atrás de cigarro e quase nunca como, depois de eu tomar um duche, dou-te um toque, pode ser?

bebemos um café mais tarde, agora tenho que levar estes livros à biblioteca, já os tenho há semanas e semanas, uma vez a senhora da recepção disse-me que eu podia ser expulso da biblioteca, proíbido de levar mais livros para casa, por me demorar, por ler a sério, quem no seu perfeito juízo lê livros em dez dias, eu já cheguei a ler, mas nunca os da biblioteca, já fiz isso numa livraria, cheguei lá e li um romance inteiro de seguida, agora tenho que ir à biblioteca, bebemos um café mais tarde, sim?

bebemos um café mais tarde, também não há-de ser tão importante aquilo que tens para me contar, agora usas óculos escuros para anunciares ao mundo que estás triste, eu tenho aqui um caderninho onde vou anotando essas impressões de todas as vezes que te vejo, posso confirmar, aqui está, nas últimas seis vezes que te vi trazias óculos escuros, uma delas era até já fim da tarde, óculos escuros, eu percebi, estás triste, mas agora tenho mesmo que entregar estes livros, e depois a fome e este cheiro, é, tenho que tomar um duche, fumar mais um cigarro, comer qualquer coisa, e depois sim, depois sou todo teu, todo teu durante o tempo do café.

depois da meia-noite

estava à janela, era já muito tarde, um pássaro a fazer barulho na varanda de cima, uma gaiola, imagino, o maço de cigarros em cima do estendal da roupa, uma flor amarelecida, o isqueiro, perco sempre o isqueiro, um pássaro a fazer barulho, capaz de acordar a vizinhança toda, se fosse eu a ouvir música já a velha do lado, toc toc toc, já a brasileira da frente, esse tarado, estava à janela, era já muito tarde.

estava à janela, pensava em poemas e em filmes franceses, daqueles filmes em que as personagens andam devagar por corredores e comem frutos sumarentos, o maço de cigarros em cima do estendal, um livro caído no chão, a roupa desarrumada, a televisão ligada sem que eu olhe, alguém que fala muito devagar, numa língua que não entendo, um homem que se passeia na rua, quando é que começará a chover a sério, coço a cabeça, estava à janela, pensava em poemas e em filmes franceses.

estava à janela, a camisa com todos os botões abertos, a dar voltas ao pescoço como quem precisasse de olhar para todas as paredes, em cima da mesa uns cadernos, uns infernos, umas mãos abertas deitas de pedra, o maço de cigarros em cima do estendal, o isqueiro, o isqueiro, uma ambulância silenciosa, os meus olhos a ficar azuis, a minha cabeça em filmes de línguas que eu não entendo, actrizes francesas a andar devagar por corredores, alguém que me coçasse as costas, me acariciasse, estava à janela, a camisa com todos os botões abertos.

sábado, setembro 17, 2005

ao fundo, um piano

se são as minhas mãos que tremem em cima deste piano, se ainda tenho o tempo de o observar, eu não sei que canção eu poderei cantar-te. de nada vale o teu sussurro, acalma-te, tão perto do meu ouvido. eu sei do vento e das marés e são essas as coisas que me ultrapassam. se são as minhas mãos que tremem, talvez devesse deixar a água a aquecer no fogão, espreitar pela janela, contar da minha vida a metade que te interessa. mas depois, o que nos resta afinal desta insatisfação, senão uma memória comentada, depois da reforma, em salas poeirentas de velhice.

se for este piano, esta altivez branca e negra de teclas sucessivas, então eu julgo poder ausentar-me da razão por mais uns dias, ignorar a sede e os relógios, caminhar descalço pelos abraços prometidos. este piano já veio do tempo desta casa, quando eu aqui cheguei já ele se fazia a dramas e a encenações. nunca para mim uma sala pôde ser uma sala depois desta casa, nenhum calendário se fez para mim sem umas notas desleixadas a encomendar a fome do jantar. se as minhas mãos tremem, agora, é porque, enfim, eu sei que nada vale neste desfazer de nós contínuo, a não ser uma pequena recordação de intenções desfeitas pelos atrasos do correio.

ainda assim, se bem o reparas, eu faço o meu discursco com o verbo saber, com o verbo experimentar, com o verbo construir, sempre tudo no passado. eu faço o meu discurso com o verbo fazer, tão desadequado como o modo em que te conto esta lírica passagem de nível, da minha boca para a tua cabeça, feita em palavras e desarrumada como um apartamento de solteiro. se foste este piano, se forem as minhas mãos, o meu desleixo eterno sobre os joelhos, os meus olhos sempre fechados às evidências, para quê renovar os sentimentos, para quê lavar os pés, ignorar o vento? eu não sei, eu não sei nada. entretanto, quando chegares, não te esqueças de tocar a campaínha.

imaginação

é um sossego imaginar-te, esta manhã, acabada de acordar, os olhos fechados, as mãos a contar nos dedos os minutos que passam da cama ao levantar, um braço levantado e outro que levanta o estore, o sol que entra no quarto enquanto sais, leve, limpa, a caminho de um café que te espera na cozinha. é um sossego imaginar-te assim, esta manhã.

porque aqui, bem, aqui tudo é pesado. as pernas custam-se a esticar e vive em mim a sensação de ter passado a noite inteira acordado. não, não é cansaço: mais aquela ideia de que nunca nunca poderá haver algo que me satisfaça inteiramente neste diário de escolhas e recados com coisas por fazer. por isso te imagino. e é um sossego imaginar-te, esta manhã.

as minhas pernas tremem, como sempre tremeram, enquanto eu conto os minutos que passam nos meus dedos, os minutos da náusea ao vómito, que acontece se eu deixar de pensar. e por isso penso, penso muito, a maior parte do tempo penso que não posso deixar de pensar, penso que o tempo ou o calor se me agarram à garganta, que não há nada que eu possa fazer senão imaginar-te. e é um sossego imaginar-te, esta manhã.

sexta-feira, setembro 16, 2005

mon amour...

cantamos uma música a duas vozes, em silêncio, tu no teu quarto eu na rua, a subir calçadas sem destino a lado nenhum. eu passo os dedos pela rugosidade das paredes dos prédios e imagino olhos de várias cores a nascer por dentro das janelas. depois disso, uma luz no fundo do bolso e uma voz que reconheço. cantamos uma música a duas vozes, em silêncio.

desatamos nós com os dedos grossos da fome, uma fome de amor que não acaba nunca. arrepio-me com as palavras e com os modos de as dizer, dói-me o pescoço quando acordo de manhã e visto sempre a mesma roupa quando saio para o trabalho. tu estás lá, do outro lado do mundo, do outro lado de mim. eu estou escondido e ninguém me vê, porque eu sei tudo isto e não o digo.

corremos os corredores dos hospitais, as luzes brancas nos nossos crânios e um calor que não sabemos de onde vem. cantamos uma música a duas vozes, mesmo sem instrumentos, sem números de telefone, sem cantatas ao luar. eu ensaio geografias em cadernos de anotamentos e tu fazes malas, sempre, sem ter para onde ir. destamos os nós com os dedos grossos da fome e corremos, corremos, os corredores.

visita

sabes o que é a literatura? aquela sensação de estar a ser ultrapassado por uma impressão de tinta sobre papéis muito pequenos, tão pequenos que cabem dentro de uma mão quando amarrotados e embrulhados numa bola. estava capaz de te dizer ao ouvido o nome de uma dezena de autores, de te escrever um poema na pele. estava capaz de te dar um beijo. vê só.

pego numa dezena de livros para os cheirar, para lhes tocar as palavras guardadas dentro. a literatura é um papel, podes rasgar e guardar dentro da tua camisa. acaricio as páginas como a tua pele, com os meus olhos míopes e salivados. tenho fome, tenho sede, estava capaz de te ler um romance inteiro, fazer de nós uma família de dostoievski. estava capaz de te dar um beijo. escuta.

folheio um livro e olho a janela. estava capaz de vestir um casaco, mesmo com este calor, sair de casa e sentir o suor a criar-se entre a minha pele e a camisa. e depois contar-te uma história escrita num tempo distante, ver os teus olhos a brilhar para as páginas amarelas de um livro velho, sentir-te o perfume enquanto me sorris, ultrassado pelo vento de um verso. sabes?

quinta-feira, setembro 15, 2005

Prémio 36.000!

O 36.000 º visitante do blogue esferovite vai ter um prémio!!

Para isso terá que se acusar para o meu e-mail (vejam no profile).

Ainda não sei que prémio será, mas o que eu gostaria mesmo de dar era uma porção de criptónio, o 36º elemento da tabela periódica... Nunca gostei de química, mas sempre tive uma especial afeição pelo número 36, devido a esse estranho elemento...

whatever...

filme

as pessoas só mudam de cidade nos filmes, pelo menos foi sempre isso que eu pensei. as pessoas mudam de cidade nos filmes porque fica bem num argumento colocar uma personagem a descobrir lugares e caras novas. e depois, para o suspense, nada melhor que alguém que entra num café e tem toda a gente a estranhar-lhe os gestos. é novo aqui, não é?

as pessoas só mudam de cidade nos filmes, isso ou a minha cidade ser tão pequena que ninguém se muda para cá. mudar de cidade implica crescer um pedacinho, mesmo que seja só por dentro, mesmo que não se note. as pessoas mudam de cidade nos filmes e nós vamos ao cinema para espreitar as coisas que não conhecemos. e um dia, dentro do habitual funcionamento da cidade, alguém novo aparece.

as pessoas só mudam de cidade nos filmes, ou, as pessoas só mudavam de cidade nos filmes, pelo menos até ao dia em que dizes, é novo aqui, não é? é só uma frase feita, mas foi a frase que ouviste nos filmes, a frase que ouviste quando foste ao cinema, para ver como é quando as pessoas mudam de cidade, e isso só acontece nos filmes, apesar de tudo, só acontece mesmo nos filmes.

depois da hora

tinhas as mãos pequenas guardadas dentro dos bolsos e fumavas, nervosamente, um cigarro que pediras emprestado ao tipo da mesa do lado. não se pedem cigarros emprestados, disse, com um ar estranhamente bem disposto, o tipo, enquanto tirava o maço do bolso da camisa. tu sorriste e pegaste no cigarro, como quem não ouve. mas tu ouves, tu ouves tudo, quase sempre.

tinhas as mãos pequenas guardadas dentro dos bolsos e olhavas, vagamente, para a porta da rua. esperavas alguém ou alguma coisa, era mais que certo. final da tarde e as cabeças vergadas ao peso destas nuvens que vão chegando. o teu casaco era preto, um preto misturado com tempo e alguma sujidade. chamemos-lhe uso, fica mais bonito. ou pelo menos, mais aceitável.

tinhas as mãos pequenas guardadas dentro dos bolsos, e isso porque tinhas aprendido nos filmes antigos como é que se fuma sem tocar no cigarro. isso ainda te vai fazer ficar com os dentes amarelos, avisou-te um dia o teu avô, mas tu não querias saber. fumo como nos filmes, colocavas tu nas habilitações literárias. agora esperavas, esperavas alguém ou algo. mas o café fechou.

quarta-feira, setembro 14, 2005

Classified

oh,mas o que eu queria escrever era assim um poema cheio de juventude
qualquer coisa que fizesse saltar do lugar as pessoas de hoje
aquelas pessoas a que quase nada faz saltar do lugar
o que eu queria escrever era aquela ode, aquela frase, seja,
que pusesse alguém a chorar uma noite inteira
que deixasse alguém tão triste e tão contente
algo assim intenso, abrasivo, doentio.

oh, mas o que eu escrevo são poemas começados por oh!
e, bem o sei, hoje em dia já ninguém suspira oh's como antigamente
e depois, também ninguém pára num lugar só
e então fico eu com as minhas canetas
eu com os meus suspiros as minhas fãs inventadas
já nem eu choro, nem chora ninguém
já nem eu sorrio, nem sorri ninguém
porque eu queria escrever mesmo era qualquer coisa
que eu não sei escrever, nem sequer dizer, assim, numa palavra.

foto tipo passe

eu não gosto de raparigas que já foram ao brasil e, quando lhes vejo as fotografias na praia a sair pelas malas abertas, fecho os olhos com muita força, para não gritar, cerro os punhos com ainda mais força e abano, abano muito a cabeça. logo, as raparigas que já foram ao brasil também deixam de gostar de mim. num instante.

eu não gosto de olhos escuros e de sorrisos amarelos, quando me convidam para jantar e me seguram a mão, misteriosamente, enquanto vão falando dos vizinhos e dos problemas na escola. fico irritado e calado, sem saber bem o que dizer, ou dizendo tudo para dentro, como se estivesse num filme e os espectadores pudessem ouvir os meus pensamentos. ao ir para casa, já passou.

eu não gosto de maçãs de rosto rosadas com blush, não gosto do cheiro de perfumes que são anunciados na televisão. espirro, espirro, espirro, esfrego os meus olhos vermelhos e acabo por ter que sair a correr das lojas em que me encontro, assim fechado, com os cheiros de perfumes que são anunciados na televisão. talvez por isso, eu não goste de raparigas. destas.

segunda-feira, setembro 12, 2005

try and catch me

por detrás do fumo do karaoke
o teu cigarro farol da minha noite
envolta em bebida e copos vazios
mãos feitas de gente e gente só de mãos feitas
por detrás do fumo do karaoke
uma cara japonesa a sorrir
uma perna esticada por entre as mesas
e uma borboleta preguiçosa a escorregar pelas minhas lentes.

por detrás do fumo do karaoke
cantores de olhos apagados e mãos trémulas no microfone
uma jovem de dezassete anos a dizer que escreve poemas
uma pintura nos olhos que lhe esconde as feições
por detrás do fumo do karaoke
o meu copo de vodka na tua boca
a tua boca na boca de um tipo qualquer
um tipo qualquer que eu não conheço
alguém que se esqueceu de um casaco aqui no chão
e uma borboleta preguiçosa a escorregar pelas paredes.

por detrás do fumo do karaoke
uma voz que fala em espanhol das astúrias
um infante que lê manuel de freitas
e uma mini saia que nos faria esquecer toda a história da literatura
por detrás do fumo do karaoke
era capaz de jurar que já aqui tinha estado
não uma nem duas
um bom milhão de vezes
um porteiro que se despede de mim amigavelmente
uma manhã que ameaça despertar no meio do frio
uma borboleta que, enfim, desaparece.

ao som de devendra banhardt

e agora o tempo...

se falares ainda mais baixinho
vais conseguir ouvir
as palavras
a tiritar
de frio.

poema 347

hoje trouxe-te uma dúzia de palavras
caridade sono bebida resolução
deves colecioná-las com o devido cuidado
restaurar-lhes as sílabas retocadas
e, ao chegar da noite, sussurrá-las junto a uma janela
devidamente virada para o mar.

hoje trouxe-te uma dúzia de palavras
raridade isolamento abraço desleixo
para que não te esqueças nunca
entende este nunca sublinhado reforçado
e, depois de uma noite passar, embrulha-as em papel pardo
recusando determinadamente a inflexão dos caminhos.

hoje trouxe-te uma dúzia de palavras
fotografia rima espelho rebuçado
um amor para usar recatadamente
uma imagem de dois pequenos seres acabrunhados
o casaco guardado em cima de uma cadeira na sala de jantar
e, manhã de novo, um dia inteiro para falar.

sábado, setembro 10, 2005

aprender a citar

"gato que nasce em forno não é biscoito. é gato."

http://www.letti.com.br/afrodite

deixar

deixar de escrever. sim. deixar de escrever. deixar de carregar connosco o peso de cadernos folhas e canetas. deixar de sentir pesar na cabeça a luta das palavras umas com as outras. deixar de me expôr, de me servir, em bandeja, como alimento dos outros. deixar de escrever. deixar, até, de respirar. deixar de existir.

deixar de me sentar em frente ao teclado. deixar de frequentar esse lugar da casa. deixar de andar pela rua a olhar as coisas que me espantam. deixar de pensar sobre tudo o que acontece. deixar de imaginar finais diferentes para as coisas que ficaram acabadas. deixar de pensar em inícios prováveis para coisas que nunca vão acontecer.

deixar de ser. deixar de telefonar. deixar de atender. deixar de sorrir. deixar de escrever. deixar de fazer listas de coisas que tenho que deixar de fazer. deixar de dizer tenho. deixar de dizer devo. deixar de dizer apetece-me. deixar de dizer gosto. sobretudo, deixar de dizer não gosto. deixar de duvidar. deixar de aceitar. deixar de escrever. sim. deixar de respirar. deixar de existir.

ginger ale

quantas vezes serás capaz de dizer
eu e tu e o oceano
quantas vezes, quieta, ilustre
do alto da tua pequenez
do alto da tua doçura
manhãs de inverno na cama, eu sei
talvez pudessemos fazer as coisas de outro modo
ler todos os tomos da história da filosofia
ver filmes franceses até de madrugada
ser de ferro, chouchou, ser de ferro
e alimentar cada vez mais mãos dadas
respirar cada vez mais o som do mar
na minha terra as gaivotas
na minha mente os abraços
viver sempre o melhor de mim
e o meu melhor ser estar contigo.

podíamos acabar os dois juntos
do mesmo modo que podíamos acabar os dois sozinhos.
até lá, porque nunca se acaba,
vamos vivendo os dois assim.
nem de ferro nem de sopro.

sexta-feira, setembro 09, 2005

conversa

aonde vais nessas botas altas? se o chão escorrega, cais, e depois. era uma vez, era uma vez. a minha mãe contava-me histórias destas, mas. armas-te em gato maltês, com chuva, não sei. se o chão escorrega, e depois. aonde vais nessas botas altas?

mas que raio de ideia essa, hein? o chão e a calçada juntos para te lixar. pois. botas altas, pensava o menino, que estava tudo numa boa. mas depois, zás! zut! vira! pum! não precisavas era de gritar tanto, porque. era uma vez, era uma vez, armaste-te tu em gato maltês. mas que raio de ideia essa.

é que nunca aprendes à primeira, pois não? mais uma vês, botas altas, yeah! e lá vais tu a dar aos braços, avenida abaixo. e depois era calçada, sim, porque no meio da estrada eram os carros. e depois um alto e um baixo, tu acima abaixo, zástráspás! foi feio. para quem viu, foi. mas nunca aprendes à primeira, pois não?

anjo elegante

abres a boca por detrás da mão aberta e tens os olhos vermelhos do sono que não dormiste. pensa bem, hoje já é sexta-feira e, acima de tudo, teres as costas direitas é ainda uma grande sorte, logo para ti, um tipo com a mania que é o melhor em toda e qualquer situações.

abres a boca por detrás da mão aberta, dás passos longos e seguros, sabes sempre onde pisas mas, muitas vezes, esqueces-te de onde tens a cabeça, e vê, logo por azar, pode ser que exactamente nesse momento alguém te esteja a mandar uma pedra, e pronto, ficas logo ali.

abres a boca por detrás da mão aberta, nesse esitlo de anjo elegante que veio para conquistar, para os olhos faziam-te bem uns óculos escuros, mas hoje é dia de chuva e dava muito nas vistas, tu dás passos longos e seguros, sabes sempre onde pisas, mas tens sono, pá, tens sono, e abres a boca por detrás da mão aberta.

quinta-feira, setembro 08, 2005

jeito

este meu tempo de sair casa a cada dia, sente-se num jornal em pulgas. sabe-se, pela ordenação dos dias, que o inverno está cada vez mais perto e vão-se vendo os casacos pendurados nas varandas, prontos a respirar o vento e as chuvas frias. sabe-se, pela normal organização dos dias, que há homens e homens fechados em casa, a fingirem-se do natal. mas isso, só por si, nada significa.

este meu jeito de arrumar os óculos sempre no lugar dos óculos, de trazer o nariz sempre pronto a cheirar, de abotoar nas casas próprias os botões de camisas lavadas e engomadas, é uma profunda chatice que tenho que abraçar. Podia, no entanto, estar calmo em relação ao que me move neste mundo, fosse por tão gentil idade que carrego no bilhete de identidade, fosse por ainda encontrar quem queira ser meu amigo. mas isso, ainda assim, pouco me parece importar.

este meu modo de de dizer as coisas sem que as coisas tenham tempo para aceitar o modo como vão ser ditas, esta luxúria, tantas vezes carnal, que me abomina os olhos e os endereços, esta minha fúria, este meu esplendor, tudo o que me rodeia nestas casas construídas de raíz, onde antes era só campo e mato, e agora se faz cidade como se nunca tivesse existido outra coisa. estas raparigas que me sorriem no café, estes senhores que me tiram o chapéu, estes automóveis que respeitam o meu passo pelas passadeiras, tudo, tudo isso, como eu me canso de repetir, pouco ou nada me adianta.

quarta-feira, setembro 07, 2005

sapatos

demoro horas para escrever três linhas sem nenhum significado. deixa-me, por isso, ficar em silêncio com as mãos pousadas sobre os sapatos que acabo de descalçar. há um certo ritual em ser-se assim, distante e perturbado, e eu não vejo outra maneira de te comunicar que aqui, aqui nesta terra onde vim parar, chove e abrem-se-me os poros de medo. era isso.

horas e horas para escrever trâs linhas, três míseras linhas que nascem para ser apagadas. também por isso escolho o silêncio, o silêncio e um copo vazio. descalço-me e fico a pensar nas míseras maneiras de abraçar o sonho e o sono. as mãos sobre os sapatos, não sei bem o que faça, só não quero que o destino me fuja das mãos.sei como ir, sem saber para onde.

horas e horas para que, no fim, tu continues a achar-te superior ao mundo. pensas, quando é de noite, que não podias merecer nunca aquilo tudo que te fiz sofrer. és pequenina e mereces o melhor, pouco importa o resto. quando te sentires de novo sozinha vais voltar, dizer-me que pensaste sempre em mim, que não tens sorte no amor. eu estarei com as mãos sobre os sapatos. uma espécie de fim.

visitação

a mão pelas costas, dentro da camisa, a coçar, sentir a minha pele a desfazer-se pelas unhas, é assim que o tempo passa, passando devagar, pelas unhas. a mão pelas costas, dentro da camisa, sentado na sanita enquanto olho, fixamente, para a parede, uma parede de azulejo frio, uma parede com pequenos fios de água a escorrer, água do banho, água de há pouco. eu não quero ser feliz sozinho.

a mão pelas costas e o telefone desligado, tenho mesa, cama e roupa lavada, uma vizinha simpática da qual não conheço o nome e vista para a cidade da janela da minha sala. estou sentado na sanita a roer as unhas, o suor desliza pela minha testa, tenho a boca seca, a boca seca e amarga, os olhos na toalha de banho que ficou suja nas pontas. a toalha do banho suja. eu não quero ser isto.

a mão pelas costas e a vaga recordação do álcool da noite passada, sentado na sanita, as pernas a doer, as unhas a desfazer-me a pele, a vaga recordação de uma rua da cidade, onde as pessoas se cumprimentam só porque não conhecem mais nada, manda-me um e-mail mais logo, suja-me a cara com os teus beijos que nunca me vais dar, podes dizer que me amas mas eu sei, amas-me tanto como num filme de cinema. eu não quero ser assim.

sábado, setembro 03, 2005

"agora já é uma senhora!"

- estava ainda agora com o livro da Adília Lopes nas mãos e pensei em abrir mais uma porta ao lado.
- oh meu amigo, deixe-se disso.
- é que desde que descobri que gosto da Adília que não encontro sossego.
- ai sim?
- esta coisa da poesia de que não gostamos se tornar, com o tempo, nossa predileta, convive muito mal com a constância da comunidade burguesa.
- bem me parecia, você ainda se preocupa com essas coisas.
- não é tanto preocupar. estou é sempre a pensar sobre mim, como pensaria o pior dos meus críticos.
- não há quem diga suficientemente mal de si, é o que me parece.
- ainda por cima ao folhear o livro da Adília, descubro que ela dedicou poemas ao Miguel Tamen. o que vão pensar as pessoas disto? que eu agoro gosto dela por uma ténue sensação de pertença ao grupo?
- deixe-se disso. se bem se lembra, você lia Fernando Guerreiro e roía-se todo por perceber como é que ele era capaz de gostar da Adília. afinal aí está, eles sempre se entenderam na poesia, você é que estava a ser limitado.
- reconheço isso, meu caro. que chatice, esta coisa a que chamam juventude.

ain't it hard to hear the blues, Louisiana

estava sentado como um pianista: a chuva lá fora - a ouvir o temporal que se aproximava: a chuva e o vento lá fora - uma manhã de verão: tenho a certeza pelo calendário, era verão - estação das chuvas por aqui : não sei bem, nada percebo de meteorologia - estava sentado como um pianista: costas direitas, coração atento.

estava sentado como um pianista: os braços esticados, em frente - a ouvir o temporal, cada vez mais perto - os braços esticados, em frente: dizem que é possível sentir as vibrações da terra - quando ela treme: quando o chão treme - os braços esticados e lá fora: a chuva e o vento - o temporal - estava sentado como um pianista: costas direitas.

estava sentado como um pianista: mas sem teclas, sem piano, nem um rádio sequer: nada: estava sentado como um pianista e o silêncio - a ouvir a chuva e o vento que caíam lá fora - o temporal, cada vez mais perto - dizem que é possível sentir: os braços esticados: a vibração da terra, sim, mas era verão, tenho a certeza pelo calendário: estava sentado como um pianista: coração atento.

duas ou três

sabe-me a pó este branco leve que escorrega pela garganta não me deixando articular duas ou três palavras que trazia guardadas para esta noite - sabe-me a pó, mesmo que este pó seja só uma miragem, uma tempestade, gritos um tanto insinuados pelas baterias de carros que foram sendo deixadas à beira da estrada, dia após dia.

gosto desta ideia, dia após dia, que reduz ao mínimo as vintequatrohoras que nos fazem delirar uma existência. diapósdia como se não houvesse nem noite, nem manhã, nem tarde, nem almoço, nem jantar, nem dores, nem amores, tão só uma vista de calendário a passar de um lado a outro dos olhos.

sabe-me a pó este branco leve, leve e tão fresco que quase queima, queima os meus olhos e os sentidos, apaga-os, alguém dizia que este vinho era emoção, mas se eu bebo tanto é para esquecer, esquecer quantas vezes mais vou ter de beber até encontrar um sossego, e depois outras duas ou três palavras que ficam por articular.

sexta-feira, setembro 02, 2005

o eu estar aqui é uma consequência

o eu não te conseguir explicar isto de outra maneira é apenas um pequeno problema com as palavras que, ao suceder neste cruzamento entre a minha e a tua pessoa, se transforma num enorme problema quase irresolúvel.
como uma manhã de chuva em dia de pequenique, ouvia eu dizer da minha afastada tia.

depois há ainda a tua mão pousada sobre o móvel da sala e a televisão, ópticamente segura no teu ombro direito, a fazer um burburinho ao fundo do meu pensamento. tudo isto são pequenas coisas que prejudicam a minha capacidade de decisão.
havia também um pássaro no retrato. passara a voar à frente da objectiva, no preciso momento do sorriso cor de queijo.

o eu não te conseguir explicar isto de outra maneira é apenas a confirmação do que eu repito exaustivamente em todas as vezes que conversamos: eu não sei dizer, falta-me esse jeito com as palavras. e tu não ouves, nunca ouves.
a afastada tia a fazer malha debaixo de um telheiro, tão longe do mundo sempre, o aparelho auditivo pousado na mesa de cabeceira.

setembro

chega mais perto, o perfume já se sente e os olhos fecham-se devagar para que seja só o olfacto a receber-te. é de manhã, manhã ou tarde, é hoje e estás aqui. chega mais perto, mais, o perfume que se sente faz fechar os olhos, devagar, e só o olfacto, só, recebe-te inteira, ligeira, suave, amorosa. tu.

um dia era uma cadeira vazia num café aqui perto e, ao entrar, a personagem sorria mesmo não te conhecendo. um dia era a empregada de balcão a tentar prever as tuas necessidades e tu a trocar-lhe as voltas só para a fazer duvidar. um dia eram senhores que diziam bom dia e tiravam o chapéu. e depois tudo a recomeçar outra vez.

mais, mais perto, a tua, a tua voz, mais, mais perto, esse perfume, esses olhos, os meus, que se fecham e te levam para outras visões, o teu perfume, o teu perfume, e só, só o olfacto, quando te vejo passar e te digo, mais perto, quando te vejo chegar e te digo, mais perto, mais, tu, já se sente, já se sente tão tão bem, tu, tu, tu.

quinta-feira, setembro 01, 2005

operário

os homens bebem dos seus copos a inevitabilidade de ser meia-noite. têm as pernas cruzadas debaixo das mesas e olham, melancólicos, o écrã da televisão que não passa nada de interesse. os homens bebem dos seus copos e bocejam o ainda ser de noite, porque de noite tudo é parado e quieto, de dia é que se fazem os amigos, o trabalho e o salário.

os homens bebem dos seus copos o facto de já serem demasiado velhos para serem novos. um ou outro espreguiça dos braços o torpor do tempo que passou e quase que engole a seco a cerveja que tanto lhe arranha as entranhas. os homens bebem dos seus copos e são fortes, fortes como uma folha inquebrável. e nunca, nunca páram.

os homens bebem dos seus copos os sonhos que nunca tiveram fora deles. limpam o suor com as costas da mão e abrem mais um botão da camisa, deixando o peito peludo visível. fazem gestos lentos para o dono do café, como quem pede um perdão dos deuses, e olham desorientados para uma menina que ficou até mais tarde na mesa do canto. os homens bebem dos seus copos o a seguir ser amanhã.