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terça-feira, agosto 31, 2004

amparo

no dia em que o pai morreu, decidiu colocar um anúncio no jornal que dizia "apareçam todos os herdeiros, temos dívidas para dividir". pode parecer estranha, esta atitude, mas havia várias coisas que sabia do velho já há imenso tempo. primeiro, que sempre fora um pinga-amor. ou melhor. que na incapacidade de aceitar o amor que tinha para dar, acabava por o distribuir por diferentes famílias, algumas casas de mulheres sozinhas e ainda um ou outro filho de uma noite mais entusiasmada. a segunda coisa era que todo este esbanjamento de amor lhe trouxera grandes dissabores orçamentais. daí o anúncio.

o mais normal seria ser surpreendido no funeral por algum filho e uma ou duas amantes arrependidas que aproveitariam o último adeus para apresentar as unhas à herança. mas, com o velho já internado há uma semana no hospital, com os diagnósticos sempre sempre a piorar, decidira-se a procurar o advogado e o contabilista dele. tudo aquilo que já sabia agora confirmado. para herdar, só mesmo as dívidas. e decidido a não causar nenhuma emoção extra-funerária à mãe, que esperta como era sabia do mesmo desde sempre calada, e pusera mãos à obra, ou seja, anúncio no jornal.

escusado será dizer que grande parte dos esperados não apareceu. talvez já lhe tivessem dado um último adeus à mais tempo atrás. ainda assim não deixou de aparecer uma jovem desamparada e a sua pequena, em tudo parecida com o cabrão do velho que o caixão levava, a tentar amparar-se no filho aquilo que não conseguira amparar no pai. ele tirou debaixo do casaco preto uma cópia do jornal e deu-lha para mão. informe-se, disse ele. e lá se foram os amparos com o primeiro punhado de terra.

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