I
antes de tudo, era o livro esquecido pelo pai sobre a mesa da sala. a curiosidade calada de o abrir, sentir-lhe o cheiro. a surpresa de só lhe ver letras, não desenhos. antes de tudo, a descoberta. as perguntas que sempre fazemos sem que ninguém nos responda.
II
à procura incessante do crescer, deram-lhe um nome. pegou na folha em branco e sussurraram-lhe, agora és escritor. com o orgulho da primeira barba no queixo, passeou-se pelos corredores da escola, exibindo as letras. sim, cresceu. e a primeira vez que o leram, na sua cabeça explodiram vergonhas e estremeções que nunca soubera dizer.
III
depois a gente habitua-se. misturam-se os cafés com as palavras, os passeios a pé em dias de chuva e as entradas em cinemas onde estamos sós. depois a gente habitua-se, ninguém à nossa volta, toda a nossa boca cheia de um silêncio nos ouvidos. depois a gente habitua-se, o nosso nome no jornal, na montra de uma livraria. e quando a gente, finalmente, se habitua, o terror imenso de tudo aquilo falhar.
IV
um dia acorda-se todo suado, mesmo que faça um gelo no quarto. outro dia sem se conseguir dormir. o nosso nome em todo o lado, aos gritos, dentro da nossa cabeça. um dia acorda-se assim. e pensamos muito baixinho: há um escritor em mim que morreu.
V
pouco adiantam os telefonemas que nos dizem a nossa falta. de nada servem as cartas que vão ficar sem resposta. só assim se consegue dormir, voltar a sair à rua. mata-se o medo por antecipação, escorrida a tinta sobre todas as folhas em branco da casa, escondidas as canetas. nem a lista de compras se volta a fazer. o medo, ali, morto na nossa prateleira.
VI
desce agora obscuro pelas escadas do seu próprio prédio. os vizinhos dão-lhe os bons dias com um aceno e ele compra o pão normalizado entre uma bica e o jornal da manhã. uma criança sorri-lhe enquanto a mãe a puxa para a escola. o céu é azul, sim, porque quando se sai da ficção o mundo retoma as suas cores. sobe agora as escadas do seu próprio prédio. em casa, cheira-lhe a paz.
VII
e ao sétimo dia, descansou.
Arquivo do extinto blogue Esferovite- a vida em pedaços (13-08-2003/ 4-01-2006)
quinta-feira, outubro 28, 2004
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