Arquivo do extinto blogue Esferovite- a vida em pedaços (13-08-2003/ 4-01-2006)

sexta-feira, agosto 13, 2004

direitinho

eu faço-me direitinho, para as fotografias. não é para ficar bem, mas lembro-me de ouvir uma avó ouvir que as fotografias são para sempre. portanto, faço-me direitinho. corto sempre a barba, visto sempre o meu melhor casaco, a camisa engomada. as fotografias são para sempre e eu vou ter muita gente para olhar pela minha entrada na eternidade. imagino filhos, netos, bisnetos, amigos, conhecidos. muita gente até que um dia alguém vai olhar para o papel e só ver uma foto velha. e eu quero estar direitinho.

hoje chamei o sr. andrade da máquina fotográfica. é ele o dono do salão fotográfico que abriu na praça central. ele apareceu depois do meio-dia, com a traquitana toda atrás das costas. não das dele. eram as costas do joãozito, um rapaz que trabalha comigo no campo. ele apareceu depois do meio-dia, depois da missa. eu nunca vou à missa. lembro-me de ouvir uma avó dizer que o padre lá da terra dela gostava de se agarrar às miúdas pequenitas, pedindo-lhes beijos em troca de rebuçados. nunca fui à missa. quando o sr.andrade chegou, eu estava no quarto a vestir o casaco.

faz hoje dois anos que morreu a Suzete, a minha mulher. era uma boa mulher, sempre atenta. hoje faço trinta e dois anos e estou no meu quarto a procurar um casaco. o sr.andrade prepara uma cadeira debaixo do alpendre, estuda a localização do sol, dá ordens à empregada para arranjar a roupa dos miúdos. pego no casaco. é castanho. ao chegar à sala olho-me ao espelho e treino a posição certa. experimento um sorriso. lembro-me de ouvir uma avó dizer, sorri sempre que sentires o coração apertado. debaixo do alpendre, lembro-me das coisas que já não vejo senão quando fecho os olhos. sorrio. faço-me direitinho.

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