volto à velha casa que pertencia à minha infância, refaço o mesmo degrau que dá para a rua onde passam os carros, a porta onde o padeiro deixava o pão todas as manhãs. dou passos pequenos, para ter o gozo de ouvir a gravilha a estalar debaixo dos meus sapatos, comigo vem a Rita, aqui uma intrusa, como se fosse possível entrar na infância de alguém que não nós, por intermédio de um regresso. finjo que procuro nos bolsos as chaves da porta, aquelas chaves que olhava a noite passada quando adormeci, que toquei sempre que parei o carro num cruzamento, num sinal. "era preciso vir aqui, para poderes ser homem?", pergunta-me a Rita na língua das crianças. eu aceno com a cabeça e ela percebe. foi aqui que eu comecei a ser homem, o homem em que muitos anos depois me tornei.
o corredor da casa mantém os mesmo móveis de sempre, agora velhos, a ameaçar cair. a cada três passos, portas à direita e à esquerda, num total de seis divisões. ao fundo, a casa-de-banho. primeiro trecho: à direita, o quarto dos meus pais. o quarto fechado dos meus pais. onde havia as roupas e a cama. pequenos armários nas cabeceiras, do lado do meu pai um candeeiro, do lado da minha mãe o retrato da família. engraçada, a simbologia. ao pai, a ordem da luz. à mãe, a guarda do mistério familiar. à esquerda do corredor, o meu quarto. o quarto meu e dos meus irmãos. éramos quatro rapazes de olhos tristes e cara caída no chão. costumávamos correr pela aldeia, um pouco sem destinho. depois de jantar, de pijama vestido, ouvíamos rádio deitados na cama. era esse o único mobiliário do nosso quarto. quatro camas e um rádio.
segundo trecho: à esquerda, o escritório do pai. a casa da papelada e de alguns livros. onde ninguém podia entrar. só a mãe, uma vez por semana, para limpar o pó que nunca deixava de se acumular. espreito, só, ainda a medo. noto várias garrafas de licor numa das prateleiras. quem lavaria os copos? do lado esquerdo, a sala. um sofá, uma pequena mesa. onde a mãe recebia as tias, conversava. onde depois houve uma pequena televisão, muito rouca, vinda de casa de um primo que já as teria a cores. onde nunca aconteceu realmente nada de interessante. terceiro trecho: a casa do costura e das nossas roupas, de todas as nossas roupas. ao meio a casa-de-banho. à esquerda a cozinha. uma mesa corrida contra a parede, a todas as refeições arrastada para o centro, encenando a sagrada família. era a cozinha que dava cheiro à casa, a minha mãe em volta do fumo do fogão. entrávamos em casa e tentávamos adivinhar o que seria o jantar. era sempre sopa de qualquer coisa.
a Rita segue atrás de mim, segurando-me na mão, percebendo o silêncio necessário a esta peregrinação. páro a olhar na janela da cozinha, a que dá para um pequeno quintal cheio de ervas. ela enconsta-se nas minhas costas com as mãos sobre os meus ombros. aperta-os levemente, percebendo a minha tensão. "foi aqui" e aponto para o quintal, bem no fundo, junto ao muro. caem-me lágrimas. a Rita abraça-me e eu tenho medo. foi aqui, foi aqui mesmo, onde a vida das ervas daninhas ainda não acabou. respiro fundo a sujidade desta casa. entre irmãos, acordámos deitá-la abaixo e vender o terreno. só eu tive a necessidade de ainda vir ver aquilo que restou do que todos nós nos queremos esquecer. certas coisas, é bem melhor viver sem elas.
Arquivo do extinto blogue Esferovite- a vida em pedaços (13-08-2003/ 4-01-2006)
sexta-feira, outubro 01, 2004
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