o que eu vejo na televisão não tem nada a ver com a vida a sério. saio de casa, finalmente, a pensar como tenho passado tanto tempo em casa. depois digo, cá para mim, o que aconteceu primeiro na minha vida já passou para a ficção, o que aconteceu depois, escrevo-o em qualquer lado. ando pela rua e sorrio para desconhecidos. corrijo, desconhecidos sorriem para mim e eu penso que alguém me persegue. digo para mim, vou fazer o euromilhões, digo para mim, tenho que passar pelo banco, digo para mim, numa infinitude de dizer tudo para mim, repetir tudo ao infinito, numa inacabável teorização do gesto.
o gesto. coisa pequena que nos acontece. tenho uma régua para medir a intensidade dos gestos. ando pela rua e, a régua no bolso, a régua na cabeça, nos olhares. desconhecidos sorriem para mim e eu tenho que ir ao banco. ao longe, tento fazer com a imaginação a face de uma rapariga que a minha miopia não vê ao longe. não me consigo decidir se é bonita ou não. talvez tenha uma cara estranha, recentemente saída da infância. mesmo assim, não lhe consigo decidir nem a idade. passa a sorrir para mim, desafiadora. imagino que daqui a uns anos seja linda, inalcançável, distante. e eu continuarei com medo dos sorrisos de estranhos.
o banco. um lugar de máquinas e números. onde as pessoas esperam tristes veredictos para uma vida inteira. onde os gestos são lentos e os desconhecidos não sorriem, só pedem desculpa por terem que pagar as contas. a rua, o frio. olho espantado as montras, o sol. quase dezembro, o natal a subir pelas paredes. desconhecidos, menos desconhecidos, a sorrir. eu a ser perseguido, perseguido por mim mesmo, como sempre estou. penso e re-penso-me, digo-me, o almoço de amanhã, o jantar de amanhã, tudo o que há e não há amanhã. canso-me até adormecer deitado no sofá. e acabo de escrever mais um texto recusado pelo dn.
Arquivo do extinto blogue Esferovite- a vida em pedaços (13-08-2003/ 4-01-2006)
quinta-feira, novembro 25, 2004
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