castanho não é uma cor, é uma palavra. quando digo castanho, não te digo o cheiro nem o brilho dos teus olhos. digo fronteira, digo distância, falo de lugares onde não podes tocar com as tuas mãos. castanho não é uma cor, não são caracóis macios a desfazerem-se pelos dedos. castanho é uma palavra, uma palavra que tanto pode servir aos teus cabelos como ao tom da terra molhada que se avista pelo campo.
calço umas botas e não ando. com estas botas tornou-se impossível ir a algum lado. calço as botas, visto um casaco bem quente e sento-me de novo na sala. a sala tem as paredes cheias de fotografias antigas e armas que já foram de caça. calço umas botas. quando era pequeno calçava as botas do meu avô e andava pela sala a fingir que era grande. agora que sou grande sento-me, um pouco vergado, dirias, pelo peso desta sala. lá fora, castanho.
talvez alguém me espere, ou espere de mim uma ordem, um avanço. é inverno e o campo para lavrar. o meu avô entrava pela cozinha com as botas cheias de lama e as empregadas corriam a ajudá-lo. havia nelas um misto de reverência pelo senhor e um pânico da sujidade passar para lá da cozinha. dias inteiros a limpar e a lavar a casa toda e umas botas que podiam estragar tudo. levavam-lhe uns sapatos limpos e um pano para limpar a cara. ele mal sorria.
eu ficava num dos quartos de dentro a olhar pela janela. estava frio e chovia, ninguém me deixava brincar à chuva. quando ouvia o meu avô pelo corredor ia espreitá-lo. vinha imponente, completamente sujo de lama e com uns sapatos que quase brilhavam. nunca percebia bem aquela incongruência. sim, eu sabia do processo, de como tudo se passava. mas era sempre com espanto que o olhava, atrás da porta, a passar no corredor.
castanho. não é bem uma cor, agora que penso melhor nisso. castanho é um rasto de lama no chão da cozinha, é o campo todo até onde se poderia ver num dia de chuva. castanho é o meu inverno, todos os invernos. estou sentado na sala, botas calçadas, casaco quente vestido. há qualquer coisa nos teus cabelos que me faz ficar aqui. mas talvez seja a minha vida inteira. castanho é só uma palavra. tento não me esquecer disso.
Arquivo do extinto blogue Esferovite- a vida em pedaços (13-08-2003/ 4-01-2006)
sexta-feira, dezembro 02, 2005
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
Arquivo do blogue
-
▼
2005
(461)
-
▼
dezembro
(50)
- mpb
- arenes
- repetição
- baile
- algumas observações acerca de manifestos e pronome...
- manifesto-te
- manifesto-me
- manifesto
- webcam
- lã
- espaço em branco
- natal 3
- natalouqualquercoisa
- cedo
- beijo
- um manual
- mestre - um manual
- talk talk talk
- pretinha
- "under the memphis skyline"
- lápis-de-cor
- guia pela cidade
- de mim para mim II
- deixa como está
- despedida
- frio
- lua
- ainda
- recorte
- sms
- escandinávia
- citizen k.
- .
- bloco do eu sozinho
- de mim para mim
- como o caranguejo
- lápis
- roubo
- baile
- someone said my love was gone
- II ( foto Catarina Costinha)
- III ( foto Catarina Costinha)
- someone said my love was gone (texto para o filme)
- para me encantar
- £
- 0
- deixa ser
- try walking in my shoes
- balancé
- k.
-
▼
dezembro
(50)
Sem comentários:
Enviar um comentário