Arquivo do extinto blogue Esferovite- a vida em pedaços (13-08-2003/ 4-01-2006)

quinta-feira, agosto 04, 2005

higiene

com um pano húmido e a bota malcheirosa na mão encaixada, tento remover a bosta da sola. remeto para este trabalho toda a minha dedicação do instante. um pano húmido, de tom azul mas no passado, nunca antes usado neste ofício que prenúncia a morte; a morte do pano que, depois da bosta limpa, para nada nunca mais voltará a ser usado.

a bota malcheirosa encaixada na mão, a bota tantas vezes companheira de aventuras e outros riscos. a bota roubada de entre a farda da tropa, no dia em que me dispensaram com a ironia, nem para a guerra serves. a bota roubada dentro do saco em que só vieram amarguras. um escovinha a perguntar-me por elas e eu, perdi-as, como Judas. são dois contos, disse-me ele, agnóstico.

a bosta pisada por andar distraído, assim, a passear pelo relvado do jardim, nesta cidade sem porto nem comboio. cães que passam a ladrar e eu a ouvir na rádio, o cão tem características psicológicas próximas da do homem, mas o cão nem pisa merda nem limpa botas. com um pano húmido e a bota malcheirosa na mão encaixada, dedico-me, solene, à higiene. não chorarei por ti, pano azul.

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