todos nós temos os nossos condenáveis desdobramentos de personalidade, pensava Oscar enquanto afiava a nova faca de cozinha comprada na loja chinesa. gostava de olhar pela varanda e ver a vizinha a despir-se de estores abertos. semanalmente comprava facas de cozinha. tentava estabelecer uma relação de confiança e proximidade com cada uma delas. esperava encontrar a faca ideal para cortar os próprios pulsos.
há certas coisas em que é melhor nem pensar, dizia, ao telefone, Anais. passava metade do tempo do telefonema a pintar as unhas, era uma maneira de manter estável o seu discurso e também a sua relação à distância com Oscar. quando desligava o telefone, sentava-se no sofá da sala a comer bolachas de chocolate e a ver filmes antigos. era uma senhorita séria, como diria o seu vizinho mexicano, Álvarez.
Álvarez insistia em dizer-se um intelectual, um interessado pelas filosofias modernas, um inventor, um cientista. Apesar de tudo isso, só lia o Correio da Manhã e livros técnicos velhos que encontrava num alfarrabista do Bairro Nono. Os vizinhos julgavam-no uma personagem de romance, mas poucos vizinhos tinham o hábito de ler romances. Na verdade, Álvarez era um nome falso. Adrian era, afinal, descendente de anarquistas russos e vivia iludido com a existência de agentes secretos soviéticos que o perseguiam para todo o lado.
Arquivo do extinto blogue Esferovite- a vida em pedaços (13-08-2003/ 4-01-2006)
sexta-feira, julho 22, 2005
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