o meu coração em estado de lírica em desuso, começava Gonçalo por dizer, é uma máquina de destruição do meu existir. todos o compreendiam muito bem, à volta da mesa. Gonçalo bebia absinto num copo alto e coçava a barba espessa que já vinha do seu avô. nos dedos esguios trazia sempre um cigarro que esvoaçava conforme a entoação das suas palavras. era bom ter os olhos sempre abertos para as túnicas do desespero. ele falava, e todos o compreendiam muito bem.
Marie falava sempre em francês. comment mon coeur ouvert peut être comme la nuit? também a ela todos compreendiam muito bem. Marie não era apenas uma mulher. não era simples, não era fácil, nem era evidente. Marie usava vestidos longos e as unhas pintadas de tons violeta. tinhas as mãos pequenas e olhos expressivos. o seu corpo andava sempre resguardado pelos vestidos, as suas origens incompreensíveis disfarçadas pelo perfeito francês. l'incompreensible matiére qu'habite mes lèvres c'est l'amour.
a Abreu a vida não corria tão bem. tinha as mangas do casaco sebosas e o cabelo raro pelo crânio. a sua voz era apagada e mal se percebia o que ele dizia. só ocasionalmente se via o Abreu a participar da conversa. com o tempo, todos o passaram a considerar um observador do que se passava em volta da mesa. era aceite por tudo nele, apesar de nada o confirmar, indicar que ele pertencia ao meio em que viviam todos os outros. Abreu não falava, mas escrevia. foi o que se descobriu depois, no dia do seu suícidio. deixou um recado em cima da mesa do quarto alugado em que vivia. nenhum avanço pode ser tão eficaz como o retrocesso total.
Arquivo do extinto blogue Esferovite- a vida em pedaços (13-08-2003/ 4-01-2006)
sábado, julho 23, 2005
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