se são as minhas mãos que tremem em cima deste piano, se ainda tenho o tempo de o observar, eu não sei que canção eu poderei cantar-te. de nada vale o teu sussurro, acalma-te, tão perto do meu ouvido. eu sei do vento e das marés e são essas as coisas que me ultrapassam. se são as minhas mãos que tremem, talvez devesse deixar a água a aquecer no fogão, espreitar pela janela, contar da minha vida a metade que te interessa. mas depois, o que nos resta afinal desta insatisfação, senão uma memória comentada, depois da reforma, em salas poeirentas de velhice.
se for este piano, esta altivez branca e negra de teclas sucessivas, então eu julgo poder ausentar-me da razão por mais uns dias, ignorar a sede e os relógios, caminhar descalço pelos abraços prometidos. este piano já veio do tempo desta casa, quando eu aqui cheguei já ele se fazia a dramas e a encenações. nunca para mim uma sala pôde ser uma sala depois desta casa, nenhum calendário se fez para mim sem umas notas desleixadas a encomendar a fome do jantar. se as minhas mãos tremem, agora, é porque, enfim, eu sei que nada vale neste desfazer de nós contínuo, a não ser uma pequena recordação de intenções desfeitas pelos atrasos do correio.
ainda assim, se bem o reparas, eu faço o meu discursco com o verbo saber, com o verbo experimentar, com o verbo construir, sempre tudo no passado. eu faço o meu discurso com o verbo fazer, tão desadequado como o modo em que te conto esta lírica passagem de nível, da minha boca para a tua cabeça, feita em palavras e desarrumada como um apartamento de solteiro. se foste este piano, se forem as minhas mãos, o meu desleixo eterno sobre os joelhos, os meus olhos sempre fechados às evidências, para quê renovar os sentimentos, para quê lavar os pés, ignorar o vento? eu não sei, eu não sei nada. entretanto, quando chegares, não te esqueças de tocar a campaínha.
Arquivo do extinto blogue Esferovite- a vida em pedaços (13-08-2003/ 4-01-2006)
sábado, setembro 17, 2005
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