Arquivo do extinto blogue Esferovite- a vida em pedaços (13-08-2003/ 4-01-2006)

sexta-feira, junho 10, 2005

higiene ficcional

nem eu sou capaz de mais, nem eu. acabo por voltar a ordenar as letras da mesma maneira, como múltiplos de sete em filas indianas, à espera de uma loja que abre na outra extremidade do quarteirão, um carro que passa com uma família feliz, um miúdo com a cabeça de fora e ele pensa, mesmo tão pequeno ele já sabe, um dia vou ter que repensar tudo isto e vai-me doer as costas, vai-me doer as costas como quando se apanha sol a mais.

nem eu sou capaz de mais, as unhas crescem-me pelos pés e uma voz canta do outro lado da parede do quarto. no prédio há vizinhos que me dão as boas noites quando eu volto, mas não lhes conheço as caras nem os nomes. se eu me sentasse a uma mesa a tentar fazer listas de nomes era incapaz de constituir uma família que fosse, o miúdo do carro a apanhar vento na cara e a chorar, o vento seca as lágrimas, isso aprende-se logo quando se é novo.

nem eu sou capaz de mais, fecho a janela e arrumo as canetas numa gaveta no topo do móvel cá de casa, todos os papéis em branco para o papelão, eu a percorrer o quintal com quilos e quilos de papel nos braços, os vizinhos que me dão boas noites ao verem-me a passar, a minha cabeça que processa as coisas muito ao contrário, vinte horas depois entendo um sorriso, um dia depois compreendo um pedido, eu que fico no café a rir para as paredes, o miúdo a crescer e a não gostar do corpo que tem, no carro, no banco detrás.

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