Arquivo do extinto blogue Esferovite- a vida em pedaços (13-08-2003/ 4-01-2006)
quarta-feira, junho 15, 2005
carta de amor
Não te vou dizer que estou sozinha. Tenho este ramo de flores sobre a secretária. Encontrei hoje aquele postal que me escreveste no dia em que perdemos a guerra. Repetias juras incessantes de amor, dizias que chegarias depressa, que eu secasse as lágrimas e arranjasse o cabelo, a viagem de regresso seria breve e sem sobressalto. Era um dia de paz, eu sei, e talvez estivesses bêbedo em algum cabaré, a recompor os teus olhos cheios de mortos. Eu, fechada em casa, naquela manhã, esperava-te mais feliz que nunca. Tinham sido cinco anos sem fim, desde o dia em que partiste de casa, a barba feita, o cabelo penteado, um cigarro que se escondia nos teus lábios grossos, nas tuas mãos inábeis de tanto remexer a terra. Cinco anos, cinco anos inteiros, a noite inteira a escutar o rádio que debitava mensagens de combatentes que, como tu, tinham mulheres, como eu, na terra, na terra que abandonaram para defender. Cinco anos, cinco anos inteiros, a esperança de escutar o meu nome na tua voz, uma certeza mais de que estavas vivo, algo que não fosse a tua letra tão mais tremida e imperfeita do que já era nos postais cedidos pelo exército. Não eram postais bonitos, com paisagens, namorados ou flores. Eram mensagens de força, para vocês, e do outro lado algumas lágrimas que vinham para encontrar as nossas. Era a guerra, a suprema infelicidade da guerra, repetida a toda a hora, novela sem fim, na minha vida cinco anos, cinco anos. E depois a notícia no rádio, aquela notícia no rádio, a guerra que tínhamos perdido, e dias depois o teu postal, perfumado por alguma mulher de ocasião, a prometer o rápido regresso e o amor eterno. Meu amor, foi há tanto tempo já, não foi? Não te vou dizer agora que estou sozinha, tenho este ramo de flores, a minha tristeza e a tua existência para cobrir os meus dias. Nunca mais pude voltar a sentir a barba que crescia em teu pescoço, nem o teu bafo quente na minha pele. Em lugar disso, flores, apenas flores, que tu me envias, religiosamente, para me recordares da tua ausência. Não te vou dizer que estou sozinha.
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