tem demasiada roupa para o tempo que está, mas talvez as noites ao relento lhe tenham esfriado de tal modo os ossos que agora só casacos e casacos debaixo deste calor lhe sirvam para aguentar os dias. também pode ser só uma forma de transporte, de alguma forma, um casaco vestido não cansa os braços, os braços que serão precisos, mais dia menos dia, para encontrar algo que comer.
tem um boné antigo, certamente resgatado de uma casa onde gente velha se desinteressa das coisas que têm marcado um passado. um boné antigo, em claro contraste com todas as novidades que agora nos oferecem na feira, nos mercados, em todas as ruas. mesmo assim, vai-se ficando pela sombra, vai-se ficando pelos cantos, espreia as montras da lojas e ensaia uma conversa, mesmo sem saber nada desta língua.
entra numa loja e, sem perceber nada da língua em que lhe tentam explicar que ainda estão fechados, olha os livros com um ar de encantado. uma conjugação de letras que não consegue entender, procura uma imagem familiar, algo que lhe diga respeito. perante a passividade de quem lhe aceita os modos tal como são, fala na sua língua que ninguém compreende, que lá na sua terra chove muito, que a água lhe passava do peito, que os filhos estão perdidos e ele não come. os braços descansados de estarem livres de um casaco, morrem mais um pouco quando estica a mão para uma moeda.
Arquivo do extinto blogue Esferovite- a vida em pedaços (13-08-2003/ 4-01-2006)
terça-feira, outubro 04, 2005
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