Arquivo do extinto blogue Esferovite- a vida em pedaços (13-08-2003/ 4-01-2006)

terça-feira, outubro 04, 2005

inquietação de josé mário branco

a contas com o bem que tu me fazes, abro a janela e vejo no quintal um pássaro que passa, despreocupado, seja com o sentido da vida seja com o andar do mundo. vejo um pássaro e espio-lhe os cuidados com o pousar dos pés sobre a terra, com o debicar emocionado com que vai recolhendo, aqui e ali, o seu alimento. volto para dentro e ligo a música.

a contas com o mal por que passei, estendo, uma de cada vez, as pernas sobre o sofá da sala. observo-me as formas, as curvas e os jeitos destas pernas feitas para andar e mais nada. parecem ser fortes, consistentes, o que não está nada de acordo com aquele sentir dos joelhos a tremer, no virar dos dias. algures no bolso de umas calças abandonadas, deixei o maço de cigarros.

por tantas guerras passei que hoje em dia já poderia dizer que tudo me parece normal. mais longe que isso, não sinto nada que me possa tocar fundo, fica tudo à flor da pele. à flor da pele o frio e o calor. à flor da pele as minhas mãos, quando as deixo repousar na água, antes de me lavar a cara. fecho os olhos e sinto uma onda que me leva. já é tarde.

já não sei fazer as pazes, nem contigo nem comigo, os meus dias sempre nesta inquietação de ter tudo o que fazer e, nisto tudo, haver sempre qualquer coisa que não dá bem para perceber, que me escapa, que me foge. é assim que eu sinto, um balão que se esvazia e, por não ter mais onde ir, lutar contra si próprio, sempre a querer deitar mais ar para fora. para fora, o que tenho e o que não tenho.

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