Arquivo do extinto blogue Esferovite- a vida em pedaços (13-08-2003/ 4-01-2006)

sexta-feira, abril 29, 2005

Nove passos na escuridão

I
Deixo, em cima da mesa, um caderno em branco onde possas guardar,
Sempre que queiras, coisas da ordem do incomunicável ao próximo.
Depois da morte, voltaremos ambos a estas páginas
E procuraremos renascer no apagar das palavras.


II
O prédio está em silêncio, no seu repouso
Erigido à beira da estrada.
Sou capaz de imaginar alguma brisa,
Folhas de arbustos a correr assustadas.
No quarto ao lado, tu, adormecida e ausente,
Em sonhos. Levanto-me e apalpo
O trajecto reconhecido, a luz apagada.


III
Na cozinha, sento-me perto da janela.
O frigorífico remexe-se, eléctrico e molhado.
Não sei o que espero, quero ler na escuridão
Das casas vizinhas muitas outras sombras sentadas,
O prédio como hospício de pessoas perdidas.
Reconheço a cidade por um avião que passa,
Ao alto. Só nos perdemos assim, silenciosos.
De dia, ninguém ouve os aviões.


IV
Podia fechar os olhos, um escuro mais escuro,
A fingir-se tela de imaginações. Ouviria um rio.
O frigorífico. Pressinto a electricidade, no silêncio
Impossível desta casa. Penso em nomes,
Miguel, Pedro, Sérgio, Alexandre. Penso em movimentos,
Ataque, defesa, subida, descida. Cinco da manhã
De uma noite por existir, não pode haver distracção.


V
Para voltar ao meu colchão, passo pela porta do quarto
Onde dormes. Sim, estás lá. Procuro, no monte de roupa suja
Que deixei na sala, as peças suficientes para sair à rua.
Para não me denunciar, a escuridão. Paro junto à porta,
Afinal irrompe a respiração na ausência de sons.


VI
A casa, de noite, é uma sinfonia.
Nunca estamos sós, apagados.
Sempre alguém, algo,
Para nos dizer que existimos.


VII
Encontro as peças de roupa.
Não faço malas, não sei se me apetece voltar.
A carteira, os pensamentos de que nunca estou separado.
Mantenho as chaves do lado de dentro da porta.
Não faço barulhos.


VIII
Olho o poema, não me entendo na decisão do seu início.
Talvez o poema não comece exactamente na primeira palavra.
Talvez devêssemos virar tudo isto ao contrário.


IX
Deixo, em cima da mesa, um caderno em branco,
O meu recado. Vais fingir que eu nunca existi
E eu não vou voltar a procurar como dizer
Coisas que me doem. Depois da morte,
Talvez.


(Vencedor do Prémio de Poesia Arte Jovem 2005 organizado pela Câmara Municipal de Torres Vedras)

1 comentário:

Anónimo disse...

Bravoooooooo!!!!!!