Escrevo esta história de memória, a maneira como se contam todas as boas histórias. Como não me lembro de muita coisa, e de muitas outras nem nunca soube o rasto, escrevo aquilo que lembro e imagino aquilo que ignoro. Quando nasceu, nos anos vinte do século de mil e novecentos, este rapaz não fazia ideia de que o seu nome, Tiago Alfredo Cristóvão, iria ser tão marcante para os homens da sua prole. Sem que o quisesse, os seus irmãos, o seu filho, os seus netos, passariam a ser reconhecidos todos por Tiago, uns por nomeação de nascimento, outros por ligação familiar. A mim, pessoalmente, sempre me soou particularmente confortável ser conhecido por este nome, uma maneira qualquer de ser identificado a um grupo, a uma tradição, uma forma agradável de ser reconhecido pelos outros. Para o bem e para o mal, os Tiagos sempre ficaram conhecidos por serem pessoas de bem, de trabalho, de concretização e de trabalho.
São várias as histórias que eu lembro do meu avô. E várias delas me assaltam a memória quando tento ver, lá para trás, quem ele foi. Nasceu no Casal da Parafuja, casal que para mim sempre foi só um moinho que eu via ao longe, porque nunca subi lá acima. Não sei bem porquê, sempre fiquei do caminho, em baixo, a ver, a imaginar, o que seria lá em cima o Casal da Parafuja. A história mais antiga que eu conheço dele, teria ele nove anos, e foi com o pai para Santa Cruz, numa viagem que demorava um dia inteiro, com o objectivo de trabalhar naquilo que sempre foi o seu trabalho, a construção. Sempre que ele falava desta história, os seus olhos pequenos voltavam aos nove anos assustados, que de manhã, ao acordar, sentindo o pai por longe, avistaram pela primeira vez o mar, e toda aquela confusão de branco, espuma e névoa, lhe pareceram casas que caíam. O primeiro sonho do construtor, casas em destruição. Depois, como eu o imagino, cresceu com aquele ar de marialva que sempre trazia consigo. Começou a fumar aos doze anos, dizia sempre orgulhoso ao acender de cada cigarro, devia andar por bailes, com o cabelo penteado, puxado para trás, devia trabalhar que se fartava, empreiteiro de uns e outros, e assim foi fazendo a sua vida, ganhando experiência e confiança por entre aqueles que partilhavam o mesmo labor. Casou tarde, ao que sei, já perto ou depois dos trinta, e não me parece que alguma vez tenho o casamento retirado algum brilho aqueles olhos pequenos, travessos, que sempre voltavam aos nove anos.
Acho que sempre o tratei por tu. Lembro-me de o tratar só por Tiago, como se fosse um amigo do prédio ao lado, um colega da escola. Ele ia comigo ao futebol e nunca dizia de quem gostava, a não ser do Belenenses quando tinha sido campeão. Ele estava sempre nas obras e andava sempre com malandrices, fossem cassetes de anedotas, posters de miúdas, conversas daqui e dali. Nunca dizia o nome quando tocava à campainha. Era um “oi”, um “oi” esticado e sonoro que, mais que anúncio, era um grito de guerra que eu ouvia sempre que o escutava no intercomunicador. Ele, permanecia calado, e ria. Era um malandro encartado, que bebia o seu copo, que brincava com os talheres em cima dos pratos para marcar ritmos de cantigas. Era também o patrão implacável, sempre a marcar em cima, rabugento, mandão. Se alguma coisa fica em mim dele, é essa rabugice intrínseca de quem acha que sabe o que está a fazer (e ele, a maior parte das vezes, sabia) e quer que as coisas fiquem a seu jeito. Era fácil ser neto dele, era mesmo muito fácil, até porque ele nunca ficou velho, nunca ficou velho a sério até ter ficado velho demais.
É fácil gostar dos mortos. É fácil gostar dos mortos porque houve sempre coisas que ficaram por fazer, coisas que ficaram por dizer. Durante a vida, o meu avô Tiago não foi um homem fácil. Porque nunca se é fácil quando se sabe muito bem aquilo que se quer fazer. Sabe-se tão bem que se acaba por fazer a maior parte das coisas sozinho. E isso chateia e magoa os outros. Mas também, como todos aqueles que se fazem sozinhos, o meu avô Tiago soube amar incondicionalmente aqueles que o rodeavam. E tenho a certeza que amou até aos últimos momentos. Não somos homens muito fortes, nós, os Tiagos. Andamos constantemente perdidos entre aquilo que achamos que tem que ser feito e aquilo que achamos que temos que fazer. A última construção do meu avô foi um sopro, um sopro que ele deu quando se atirou da vida abaixo. Partiu assim porque não há satisfação possível para um Tiago nesta terra. Vamos sempre fazer decididamente por nós aquilo que nos haverá no fim de nos fazer sentir sozinhos. Sozinhos com as ruínas de nós mesmos e com o amor que sentimos pelos outros.
É esse peso que sentimos nos pés hoje, ao sair daqui. Esse peso que nos acompanha em todos os dias da nossa vida. O primeiro Tiago, talvez o mais corajoso, talvez o mais descontraído, morreu. Já não temos um “oi” que nos ponha em sentido. Já não temos quem nos marque o ritmo das cantigas com os talheres. Já não temos o marialva de cigarro ao canto da boca. Já não teremos mais histórias para nos lembrarmos no futuro. Agora, só nos restamos a nós.
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terça-feira, abril 12, 2005
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