queres ficar vivo, mas queres ficar vivo para quê?, perguntava-me ele enquanto se despia no quarto, a janela aberta para uma manhã fumarenta, sempre a mesma cidade, sempre a mesma cidade, ele a dizer-me estas coisas, a roupa caída em cima da cadeira, os passos deslocados dele pela carpete do quarto, do corredor, a luz da casa-de-banho que se acende, ele a entrar para o chuveiro, e eu ainda deitado na cama, de cigarro a apagar-se no cinzeiro da mesa de cabeceira, a pensar no que ele diz, já um pouco farto de tudo isto.
queres ficar vivo, mas queres ficar vivo para quê?, dizia ele depois de me propôr pela milionésima vez matarmo-nos os dois, sempre a mesma conversa quando ele chega a casa do turno da noite, sempre a mesma conversa quando eu, ainda por cima, estou só a acordar, o cigarro no cinzeiro da mesa de cabeceira, o barulho do chuveiro e eu que me levanto calmamente da cama e tropeço nos sapatos dele, os meus pés ensonados pela carpete do quarto, do corredor, abrir a janela da cozinha e ver a mesma cidade, a mesma cidade fumarenta.
queres ficar vivo, mas queres ficar vivo para quê?, está bem, isso dizes tu que já tens mais uns quinze anos do que eu, isso dizes tu que és mais velho e experiente, eu sou só um puto, ouviste, só um puto, não trabalho no turno da noite e não tenho problemas em dizer a quem me apetecer que sou paneleiro, agora ia-me matar para quê, ia-me matar para quê?, ele a sair do chuveiro e a pentear-se no espelho da casa-de-banho, eu a fumar um cigarro ensonado pela casa, naquela cidade, a mesma cidade fumarenta.
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quarta-feira, abril 20, 2005
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