(para quem não sabe as palavras certas)
na casa onde eu sempre morei nunca faltou o pão. em cima da mesa, todas as manhãs, como uma encenação pobre de teatro português, um pão grande cortado em fatias finas. uma fatia para cada um, ouvia eu, ao esticar a minha mão pela segunda vez para o centro da mesa. éramos felizes, sim, também não sabiamos ser de outra maneira. não tinhamos conhecimentos para mais. eu ouvia dizer, cá em casa somos todos felizes, e achava que aquilo que eu sentia era felicidade.
na casa onde eu sempre morei nunca faltou o amor. era servido antes de adormecermos, com beijinhos e rezas, as crianças todas deitadas nas camas, o pai e a mãe em fila de procissão, beijinhos a um, rezas a outro. não era preciso pensar, para termos amor. bastava repetir as palavras na ordem certa. a opção de trocar as palavras, tinhamo-la. mas de seguida, o amor na ordem certa. eu ouvia dizer, amo-te tanto, e achava que aquilo que eu sentia era amor.
na casa onde eu sempre morei nunca faltou o mar. não tinhamos janelas nem portas, mesmo saindo da casa para fora, tudo o que se via eram paredes por todo o lado. cheirava a mofo nos quartos, tudo era escuro como se a casa inteira fosse um canto esquecido. mas depois, chegava um livro fechado dentro de um envelope, e eu abria muito olhos para o conseguir ler. talvez agora, ao olhar para trás, eu perceba que não havia nem felicidade nem amor naquilo que eu sentia. e, mesmo que se mantenha a incerteza quanto ao significado das palavras, eu sei que o mar nos chega pelo corpo inteiro ao simples referir da palavra mar.
Arquivo do extinto blogue Esferovite- a vida em pedaços (13-08-2003/ 4-01-2006)
terça-feira, abril 26, 2005
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1 comentário:
Gostei muito do que li, não vou comentar o texto porque quem sou eu para comentar aquilo que não senti.
Aliás senti, mas de uma outra maneira e essa é só para mim.
Muito obrigado pela beleza dos textos.
Um beijo*
Vigínia Pedras
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