Arquivo do extinto blogue Esferovite- a vida em pedaços (13-08-2003/ 4-01-2006)

segunda-feira, fevereiro 28, 2005

apaixonar-me-te

é uma questão de olhar. talvez nem sequer de ponto de vista. é uma questão de olhar. não estás habituado a isso, compreende-se. não te ensinaram a tentar ver o que existe bem lá dentro de ti. provavelmente, há muito tempo, quando eras pequenino, levaram até a que pensasses que isso não se fazia, por não ser bom, por não valer a pena. agora, eu digo-te. é uma questão de olhar. e só depende de ti.

para lá de toda a confusão, há um lugar de silêncio, digo-te. sim, um silêncio maior que tudo. para lá de toda a confusão, de todos os movimentos, barulhos, ruídos da tua cabeça. uma calma, um lugar de quietude. digo-te, apesar de tu não acreditares. digo-te, mesmo que o temas. esse lugar existe, está lá, bem dentro de ti. podemos pôr os pés onde quisermos, de nada vale, se o nosso pensamento vai sempre connosco. por isso, descobre o silêncio. para ires, de uma maneira inequívoca. ir.

seria mais fácil se não dependesse de nós, mais fácil se alguém chegasse e nos fizesse ser tudo aquilo que pensamos merecer ser. e no entanto, já somos tudo. tudo. seria mais fácil um sinal, um chamamento. e no entanto, está lá, bem dentro de ti, aquilo que procurar, aquilo que anseias. é, como te digo, uma questão de olhar. uma, duas, três vezes, sempre. olhar. respirar. sentir. está lá, és tu. sim, tu. e a partir daí, tu a conseguires ver-te. sempre.

domingo, fevereiro 27, 2005

poesia

os livros de poesia estão nas prateleiras das livrarias, como os bolos de anos repousam nos mostradores das pastelarias. as pessoas, crianças maravilhadas, entram e olham. dá vontade de colocar o dedo, provar o creme. mas a montra, o vidro, a boa educação, não lhes permite a aventura. dá vontade provar um verso, um verso sempre que se entra numa livraria. mas não.

entra, olha, sente. a imensa vontade dos dedos no creme. não sei bem se é melhor provar o doce, o açucar e as natas, se a sensação de enterrar suavemente o dedo numa nuvem, conseguindo pegar num pedaço dela. nos poemas, a nossa vontade é tirar uma palavra, uma expressão, um verso. talvez por sempre se olhar o mundo como se olha uma pastelaria, as pessoas não agarram a poesia.

sentemo-nos então na mesa da pastelaria, mandemos vir um pastel de nata, uma torta. sentemo-nos num qualquer canto da livraria, enterremos os olhos nos romances. enchem-nos de palavras fáceis, frases sem muito que dizer. o creme doce do bolo, fica lá, intacto. por detrás da montra, por detrás dos sortudos que fazem anos, por detrás dos bonés dos pasteleiros. ficam lá. versos com tanto para dizer.

sábado, fevereiro 26, 2005

variações sobre a chuva

chuva, pouca luz a entrar pela janela que se abre de manhã. o cortinado incrédulo que se afasta, o pátio molhado, o beiral molhado, tudo molhado. chuva. pouca luz. hora de alimentar plantas, flores e terra. hora de dar de comer às sementes. beber. as sementes comem ou bebem? chuva. pouca luz que vem de fora, mais uma lâmpada acesa no interior da casa. chuva.

chuva, mais um adereço para sair de casa. chapéu de chuva, guarda-chuva, impermeável. mais um adereço. abre-se a porta da rua e. chuva. os carros passam e levantam a àgua que escorre para dentro dos esgotos. levantam a àgua que se beija pelo alcatrão. mais um adereço, chapéu de chuva aberto. banda sonora de pingos enquanto se anda. mais devagar, pode-se escorregar. na chuva.

chuva, porque o inverno nos disse que estas coisas chegam. em todo o lado chão molhado, calçada, alcatrão, mosaico. molhado da chuva. inverno, sim. os cafés fumarentos tornam-se mais simpáticos, quentes e secos, acolhedores. nas vidraças, chuva. ouve-se o barulho, o barulhinho bom. a cair lá do céu, porque o inverno. sim, o inverno. chuva, pouca luz, muito menos luz, àgua que cai sobre os cabelos, os ombros, nos casacos. chuva.

sexta-feira, fevereiro 25, 2005

flores de estufa

sabemos inventar o calor, mesmo quando é inverno e as pessoas espirram nos autocarros. sim, sabemos. trouxemos muita roupa vestida, mas, a pouco e pouco, vamos deixando de lado camisolas e casacos. as cadeiras servem de cabide. à nossa volta, um monte de gente desinteressante, sem nada que nos dizer. nós, sabemos inventar o calor.

roubamos ao sol uns raios, vindos da parte de cima do telhado do edifício. escolhemos a mesa certa. pousamos os tabuleiros, comemos. sorrimos. perguntamos uns aos outros as coisas que queremos saber. dizemos uns aos outros as coisas que sabemos que nunca irão ser ditas. sabemos inventar o calor, em tardes de inverno, em alturas de espirros. nós.

tiramos as camisolas e tocamos as mãos uns dos outros. sorrimos. roubamos à primavera o que nos faz falta hoje, seja hoje que dia fôr. sentamo-nos e deixamos que outros se sentem à nossa volta. somos simpáticos, sim, apesar de tudo. sorrimos. olhamos os olhos uns dos outros, assim, simplesmente. sabemos inventar o calor. e descobrimos, ainda tão longe do genérico do filme, que sabemos inventar a amizade.

quarta-feira, fevereiro 23, 2005

visões - I

agora, eu vejo. era de manhã, manhã ainda cedo. saí de casa, estava frio, estava mesmo muito frio. eu vejo. muito frio, o gelo sobre as coisas verdes e sobre as coisas castanhas. era de manhã, a noite toda de olhos abertos em cima da cama. nem um minuto de sono. nada. era há já muito tempo, o nunca dormir. agora eu vejo. nítido, cada vez mais. o não dormir nunca. há já tanto tempo. o eu não saber nada de mim, não saber nada do que se estava a passar.

eu vejo. a roupa, ainda o pijama, calças e camisolas por cima, o cabelo sujo, despenteado, a barba por fazer, mal feita, de manhã, os olhos rodeados de intensas olheiras, olhos olheiras, sim, assim sim, agora, eu vejo. os pés a deixarem barulhos pelo gelo, a descobrir-se as coisas verdes por baixo, amarelecidas, as coisas castanhas por baixo, água tão suja. agora eu vejo, eu vejo, sim, as coisas ficam nítidas para mim. onde eu ia, sem saber.

eu. perdido, perdido de mim e dos outros, pelos outros. agora, umas botas velhas, sujas, eu, agora. era de manhã, manhã muito cedo, ainda a luz do dia era de noite, sim, era de manhã, manhã escura, era, eu vejo. agora. perdido pelo quintal, sim, era um quintal. agora. uns sacos deixados quase ao acaso, os sacos, para as batatas. agora, eu vejo, como não pensava, como só pensava sempre tudo. agora. as mãos dentro do saco, amarelecidas. o intenso cheiro do enxofre. o intenso cheiro do enxofre. a cara. o poço. agora eu vejo. o poço. o intenso cheiro do enxofre. agora. vejo.

terça-feira, fevereiro 22, 2005

quando o aluno está preparado

sento-me num pequeno banco, coberto pela sombra do telheiro onde resistem flores ao vento que tomou toda a aldeia. sento-me num pequeno banco, da parte da tarde deste dia de cores cinzentas onde as almas parecem andar atarantadas na busca de um qualquer brilho. espero. sei, cá de dentro, que alguém se aproxima para que, com as suas mãos na minha pele, me faça descobrir mais um reconhecimento sobre as coisas que nos edificam. vento.

sento-me num pequeno banco. inspiro e olho o que me rodeia. o telheiro fica virado a oeste, num recanto da aldeia. abaixo, o vale, um ribeiro, uma estrada, outras pequenas casas de aldeias vizinhas, de casais um tanto isolados. em tudo, o vento. a brisa beija-me a face mal barbeada, sopra-me ao ouvido uma cantiga que vem dos lados longínquos do tempo. as flores, que resistem, exalam cheiros de danças, mais etéreas do que movimentadas. espero, aguardo. vento.

sento-me num pequeno banco, mãos repousadas sobre os joelhos, costas entregues à parede da casa, olhos semi-cerrados na sombra, o telheiro. ao longe, qualquer coisa de azul. imagino que até certo ponto seja mar, para além desse ponto seja céu. ao longe, não consigo descortinar o local exacto onde começam e acabam as coisas. espero a mão reveladora e doce do reconhecimento. inspiro e expiro. daqui, de onde se podem sentir todas as coisas. o meu corpo. o vento.

segunda-feira, fevereiro 21, 2005

relógio

comprei um relógio grande, vindo do lado de lá do mundo, para saber que horas são aí. tenho-o no meu corredor, toca quando tu acordas, toca quando te vais deitar. um relógio grande, vindo do lado de lá do mundo, com as horas do lado de lá do mundo. toca quando tu acordas, de manhãzinha, para ires trabalhar. toca quando tu te deitas, de noitinha, para ires sonhar. comprei um relógio grande, do lado de lá do mundo, do lado de lá do mar.

comprei um relógio grande, vindo do lado de lá do mundo, e agora fico a pensar. nas horas em que tu acordas, do lado de lá do mar, já há algum tempo eu me passeio, muito depois de acordar. comprei um relógio grande, do lado de lá do mar, e depois fico a sonhar. porque nas horas em que tu te deitas, já há muito eu me fui deitar. comprei um relógio grande, para nas horas incertas andar.

comprei um relógio grande, tenho-o no corredor. ele marca as horas exactas, as horas certas do meu amor. comprei um relógio que veio, do lado de lá do mar, do lado de lá do mundo. tenho-o no corredor, oiço-o sempre a tocar. onde quer que eu me encontre, encontra-me o som a vibrar. comprei um relógio grande, veio do lado de lá do mundo. comprei-o e guardo-o comigo, do lado de lá do mar, um relógio grande, com as horas certas do outro lado do mundo.

domingo, fevereiro 20, 2005

há lodo no cais

aqui é muito de noite, muito mais de noite do que aí, visto que dormes, e os sonhos que temos de noite podem ser de qualquer hora do dia. aqui é muito de noite, cheguei agora da rua, não se ouvia quase barulho nenhum, só uns bebedos que saíam pela porta de um bar e logo se arrumaram, em bancos da frente e de trás, dentro de um carro, provavelmente à procura de um outro sítio aberto para os copos que a sede ainda lhes pede.aqui é de noite, muito de noite. os meus olhos gostam, mas estão cansados.

tenho o teu cheiro na minha roupa e sei que estamos longe. ao mesmo tempo, sei que todas as coisas podem ficar mais perto umas das outras. tenho o teu cheiro na minha roupa e sei que estamos longe. mas os abraços podem vir do brasil, as palavras da china, os olhares da américa, os passos de dança de áfrica. a rua está vazia, exactamente no mesmo lugar onde amanhã, quando eu voltar a sair, estarão as pessoas que ocupam a rua nos domingos de manhã. tenho o teu cheiro na minha roupa, na minha própria roupa. é uma maneira de estar perto, assim ao longe.

ficas calada no meu colo. eu ajeito-me no meu lugar e abraço a tua cabeça contra o meu peito. não olho o relógio, o meu tempo parou. ficas calada no meu colo, eu pouco me esforço para saber o que estás a pensar. não ponho música, falo e falo e falo. tu arrumas-te no meu abraço, sorris devagar quando eu te digo, és gira, gozas comigo quando eu digo, diz ela, eu sorrio, sorrio como contente, aqui longe é já muito noite e não há ninguém na rua. ficas calada no meu colo, e no meu peito tenho agora a forma do teu corpo. os meus olhos cansados.

sábado, fevereiro 19, 2005

Póvoa de Varzim - 2º momento

Vou deixar de dizer que os escritores são pessoas chatas. Aqui na Póvoa de Varzim tenho ouvido escritores que são autênticas "pain in the ass", mas a verdade é que também descobri que se pode ser escritor e ser-se simpático, simples, verdadeiro. Vou então deixar de dizer que os escritores são pessoas chatas. Vou passar a dizer que conheço quem seja realmente acessível e que, com isso, me faz aprender bastante sobre o escrever-aqui-assim.

Existem escritores que modulam a voz quando falam. Ouviram todos os conselhos que os professores de retórica tinham para lhes dar quando falharam o seu primeiro acto público. Existem escritores que vangloriam a indústria farmacêutica, que os pôs a falar, e existem escritores que falam tão baixinho que é como se não falassem. No entanto, não voltarei a dizer que os escritores são pessoas chatas. Embora existam escritos que são uma verdadeira chatice.

Existem escritores que parecem não perceber muito do assunto e escritores que parecem perceber demais. Há quem fique fechado em casa, a escrever, e quem, de tanto ler, tenha aprendido a técnica do como se faz. Há quem tenha vergonha e quem tenha orgulho, há quem faça perguntas e quem pense em fumar um cigarro. Enfim, pode-se muito bem ser-se várias coisas na mesma pessoa. Foi isso que eu aprendi hoje. Ou talvez nem tenha aprendido, apenas recordado. Ou talvez eu sempre tenha estado alerta para isso, mas hoje não fico calado.

sexta-feira, fevereiro 18, 2005

Póvoa de Varzim - 1º momento

No Correntes d'Escrita, encontro de escritores ibéricos da Póvoa de Varzim, encontro Rubem Focs (uma daquelas Pessoas de Romance) que, por sinal, se lembrava de um email que eu lhe envie há já uns meses. Saímos para fora do Auditório e ele acende um cigarro, enquanto tira da mala um livro da Editora 2 Luas, uma edição belíssima, que junta poemas, desenhos e papel vegetal, de autoria do seu amigo, o jornalista e escritor Paulinho Assunção. Falo-lhe de projectos, coisas que se fazem em conjunto, daquele e deste lado do mar. Como de costume, sou tímido.

Na sessão a que assisti só metade, porque Torres Vedras, ainda assim, fica longe da Póvoa de Varzim, e porque para mim, 7h20 é uma hora suficientemente cedo para acordar, ouvi deliciado o Ondjaki, um tipo boa onda, de tranças caídas pelos ombros, a inventar palavras como quem inventa novas formas de piscar o olho, a fazer rir todo o auditório com as coisas que ele atribui às primas e às tias, a começar todas as frases por "isso faz-me lembrar aquela história de". Imaginem-no quando chegar a velho.

Passeio a pé pela Póvoa de Varzim, coisa que gosto de fazer por todas as cidades onde vou pela primeira vez. Deixo-me perder pelas ruas e pelos prédios enquanto avanço em direcção ao mar. Soa-me agradável a Póvoa in loco, como nunca me soou o nome Póvoa de Varzim. É bonito chegar a um sítio e descobrir tudo outra vez, como se não soubessemos nada dos lugares que nos ficam longe de casa. Sento-me em frente ao mar e respiro fundo. Cheira a mar e a cabeça lavada.

quinta-feira, fevereiro 17, 2005

pela janela

este aqui sou eu, a fazer gestos lentos pela casa, de mãos abertas sobre as mesas, a cama, este aqui sou eu, a andar muito muito devagar, a olhar as coisas de olhos abertos, a respirar fundo e a expirar sem esforço, este aqui sou eu, a deixar entrar o sol pela janela, a abrir a casa à corrente de ar, a ouvir uma música calma, este aqui sou eu, na expressão quieta deste dia. e tu aí, a espreitar pela janela.

esse aí és tu, a fazer gestos lentos pela casa, de mãos abertas sobre as mesas, a cama, esse aí és tu, a andar muito muito devagar, a olhar as coisas de olhos abertos, a respirar fundo e a expirar sem esforço, esse aí és tu, a deixar entrar o sol pela janela, a abrir a casa à brisa que corre, a dançar como se ouvisses uma música calma, esse aí és tu, na expressão quieta deste dia. e eu aqui, a espreitar pela janela.

este aqui sou eu, sentado sobre o telhado, a sentir o vento e os cheiros das casas, pequenos grãos de pó presos nos lábios, este aqui sou eu, os cabelos despenteados em desalinho, o coração aos saltos de estar tão alto, os barulhos de tudo lá em baixo, cá em cima, este aqui sou eu, as mãos a segurarem-me ao beiral, os pés incertos tão certos de não querer cair, este aqui sou eu, a aperceber-me de ti, quando o espreitas pela janela.

quarta-feira, fevereiro 16, 2005

sorriso

podemos acordar um dia e sentir que o sol nos chama lá fora. abrimos a janela e sentimos que nos toca. podemos acordar um dia e sentir que há alguém dentro de nós. abrimos os olhos e vemo-nos a nós. não deixa de ser surpreendente, o dia em que nos libertamos para a luz. afinal de contas, estivemos tantos anos fechados, que provavelmente já nem nos reconhecemos. damos uns passos connosco próprios, de mão dada. e o nosso sorriso diz que sabe bem.

podemos andar pela rua um dia e sentir que nos vêem coisas à cabeça. abrimos a voz ao ouvido de alguém e descobrimos que não somos únicos. podemos andar pela rua um dia e sentir que somos diferentes. abrimos as mãos à mão de alguém e descobrimos que não fomos os primeiros. e todo o sossego que nos poderia tocar, toca-nos realmente. crescemos uns centímetros, em altura, nos ombros. o nosso sorriso é feito de um respirar fundo e terno.

podemos nos sentar nas nossas pernas um dia e encontrar aí uma forma de estar. abrimos a pele para descobrir que o que corre lá dentro não é só sangue. podemos nos sentar nas nossas pernas um dia e perceber que aí se está bem. abrimos a pele para descobrir que a luz pode nos penetrar. e então a sede cresce, a fome sacia-se no conhecimento. e o nosso sorriso, bem, o nosso sorriso é o reflexo de um sorriso maior que nos atinge.

domingo, fevereiro 13, 2005

exemplos de cartas

Porque tu, tu não dizes nada, e eu, eu continuo aqui, com um pijama de calças rotas, esticado sobre o sofá da sala, a deixar-me ficar com os olhos húmidos quando passa uma publicidade com dois namorados. Porque tu, tu não dizes nada, e eu, eu ainda acabo por ficar em maior silêncio, não digo que tenha medo de dizer alguma coisa, mas, no fundo, a pensar se há realmente alguma coisa que deva ser dita.

Porque tu, tu não dizes nada, e eu, eu continuo aqui, com as mãos abertas sobre o parapeito frio da janela, o nariz encostado ao vidro, a respiração controlada pelo embaciar, como se a rua ou os meus olhos embaciassem também, neste contínuo ficar sem dizer nada. Porque tu, tu não dizes nada, e eu, eu não tenho que saber sempre o que fazer, não tenho que saber o que dizer, não tenho que ser forte sequer, porque, no fundo, eu não sei, eu não sou nada disso.

Porque tu, tu não dizes nada, e eu, eu continuo aqui, a procurar roupa dentro do roupeiro, a imaginar o dia em que me vou constipar, ou por ter roupa a mais vestida, ou por ter roupa a menos, sempre um pouco errado, apesar de tudo, apesar de mim. Porque tu, tu não dizes nada, e eu, eu não gosto de me estar sempre a meter na tua vida, a aparecer nos teus dias, a perguntar-te se haverá alguma coisa que tu queiras dizer, e acabo por não me meter, não aparecer, não perguntar nada, nada.

quinta-feira, fevereiro 10, 2005

pedras

quando encontro pedras no caminho, sento-me. é assim que se faz. quando encontro pedras no caminho, puxo de uma guitarra, toco uma melodia desafinada. sim, é isso. sorrio, com os olhos cheios de lágrimas, e espero que alguém dance, mesmo que longe, mesmo que eu não dê por nada. quando encontro pedras no caminho, mesmo no meio do caminho, sigo isto como um ritual. e depois talvez me meta no carro e vá até ao mar. ou talvez me sente na mesa de um café e sorria para pessoas como eu.

quando encontro pedras no caminho, mesmo no meio do caminho, sento-me e penso. sim, é isso que eu faço, mesmo quando não seja isso que eu devesse fazer. à minha frente, alguém puxa uma cadeira. eu olho, a fingir que não ligo. olhos duas, muitas vezes. quando encontro pedras no caminho, mesmo que seja a caminho de casa. porque em casa é onde dói. é onde dói ter nos bolsos as pedras que encontro no caminho. no escuro de uma sala de cinema, a vida pode parecer fantástica. mas cá fora, apetece-me chorar.

quando encontro pedras no caminho, sento-me. pego numa guitarra, ensaio uma melodia. quando encontro, e quando encontro o que devo fazer. mesmo que pudesse fazer outra coisa. é assim que se faz. quando encontro pedras no meio do caminho, mesmo no meio, faço por seguir como quem vai a algum lado. por dentro, tremo. por fora, vou a algum lado. talvez porque as pedras não me assustem. talvez porque o que seja realmente assustador é olhar em frente, para uma paisagem limpa, anunciando felicidade.

quarta-feira, fevereiro 09, 2005

três manhãs

acordo de manhã e, é preciso ser forte, tenho que contar até dez para me levantar da cama, abrir os estores, levar-me até à casa de banho, olhar-me e pensar, é preciso ser forte, tenho que contar até dez e pensar no que vou fazer durante o dia, andar pela casa, pensar no que vou fazer durante o dia, acordo de manhã, é preciso ser forte, acabar por não decidir nada, acabar por fazer as coisas sem ordem, sem objectivo, sem que alguma coisa seja precisa.

acordo de manhã e, é preciso estar descontraído, a sorrir conto até dez para me levantar da cama, abrir os estores, a janela, respirar fundo o ar da rua, ir até à casa de banho, olhar-me ao espelho e pensar, é preciso estar descontraído, a sorrir contar até dez e pensar no que me apetece fazer durante o dia, andar pela casa, a assobiar, pensar no que me apetece, acordo de manhã, é preciso estar descontraído, perceber que não há nada que me apeteça realmente, não fazer nada realmente importante, ficar assim, sem obejctivo, só a pensar que é preciso estar descontraído.

acordo de manhã e levanto-me da cama, abro os estores, a janela, vou até à casa de banho, olho-me no espelho, penso, tenho que arrumar isto, acordo de manhã e tiro a roupa toda da cama, meto-a na máquina de lavar, pensar, é preciso aspirar a sala, buscar o aspirador, procuro lençóis lavados, acordo de manhã e lavo a casa de banho, limpo o pó, tudo a correr, tudo sem pensar, tudo feito um pouco depois de acordar de manhã.

segunda-feira, fevereiro 07, 2005

eis-me

eis-me de regresso às coisas simples. ao dormir uma manhã sossegado na cama. ao ler um jornal sem pensar em que dia estou. ao ver um jogo de futebol sem me preocupar com o resultado. ao comer uma pizza encomendada pelo telefone. ao passear de noite com uma conversa ao ombro. ao olhar, satisfeito, uns olhos do lado de lá de um café. ao beber chá e deixar a noite andar até ser hora de ir dormir. eis-me de regresso às coisas simples.

eis-me de regresso aos dias limpos. ao estender a roupa na varanda. ao olhar o passeio molhado pela chuva. ao sentir-me acompanhado na distância. ao ter alguma coisa para dizer a alguém. ao apertar a mão a jovens pais. ao gargalhar agarrado a um amigo. ao procurar roupas velhas no roupeiro. ao sentar-me em frente ao televisor a ver o telejornal. ao sair de casa com frio nos dedos. ao ser já tão tarde quando se volta para casa. eis-me de regresso às coisas simples.

eis-me de regresso às coisas simples. ao dançar a noite inteira de olhos fechados. ao beber uns copos de sangria muito boa. ao mandar uma mensagem de boa noite. ao receber um email de bons dias. ao apanhar autocarros para coisas bonitas. ao chorar agarrado a mim e a pensar futuro. ao saber que hei-de chegar lá. mesmo que não seja agora. será de certeza um dia. com um sorriso assim. de regresso às coisas simples.

domingo, fevereiro 06, 2005

práticas terapêuticas

eu choro baixinho debaixo dos lençóis na minha cama, demasiado grande para um homem só. choro baixinho enquanto oiço os barulhos dos vizinhos a acordar pelo prédio, os barulhos da manhã, passos arrastados pelo chão, gemidos de crianças, músicas que se vão levantando do silêncio destes dias cinzentos. eu choro baixinho, ajeito-me na cama fria, olho o relógio com o desespero dos dias inúteis.

estava sentado num canto escuro do bar, o sorriso que não saía, a cabeça a doer-me, passado o efeito dos comprimidos. na mão um copo de má cerveja a sentir a turbulência da música sobre as matérias imóveis. estava sentado, nem triste nem contente, apenas igual a mim. vozes chatas à minha volta, a tentar fazer disparar a alegria plástica, custasse o que custasse. estava sentado num canto escuro, incapaz de deixar de ser igual a mim próprio.

eu não estou triste e também não estou contente. não me sinto completo mas também não me sinto carente. rodeio-me na paranóia da auto-suficiência, manobro-me para fugir ao medo que tenho de mim. eu não estou aqui, mas também não consigo sair daqui. não é fácil resistir ao peso que está sobre as minhas costas, eu em todos os momentos da minha própria vida. na cama, num canto escuro de um bar, em mim, está sempre frio. e não é bonito.

sexta-feira, fevereiro 04, 2005

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acordar mais cedo que todos os outros dias, levantar na cama e sorrir ao espelho sujo da casa de banho, andar pela casa cheio de energia, fazer a barba, ir para a rua, e sentir no ar o cheiro de festa que a música pelo ar e as crianças mascaradas pela rua não desmentem. Sim, começa hoje. deixo-te uma mensagem no atendedor.

andar pelas lojas dos chineses a procurar aquelas coisas que não nos fazem falta nenhuma, discutir com as pessoas que encontramos pormenores de fatos que nunca vestimos durante o resto do ano, sorrir e cumprimentar toda a gente, sentir os pés mais leves, dar uma voltinha, dizer até logo com um sorriso grande e muito irónico, esfregar as mãos e dizer, todos os anos, à sexta-feira, é demais.

parar em frente ao computador, e fazer um download de músicas que nós nunca gostamos de ouvir. passear pelas páginas de pessoas que conhecemos e tentar adivinhar as novidades nas mentiras que cada um gosta de dizer de si. gravar num cd coisas que não interessam a ninguém. sorrir, sorrir sem se saber bem porquê, apesar de ser carnaval e estar tudo explicado. deixar um comentário num blogue de alguém que se desconhece.