lembro-me de uma vez, no meio de muitos e variados copos, ter dito a uma velha negra, que nunca antes tinha visto, "i don't really exist, i'm just a shadow of someone who has been here someday". era uma noite triste, aquela, eu estava sentado numa mesa de desconhecidos, de origens várias, e na mesa havia uma jovem casada, belíssima, calada, que julgo não ter, em nenhuma oportunidade, colocado o olhar na minha direcção. quando chegou a hora em que cada um seguiria o seu caminho, eu abeirei-me da velha negra e disse-lhe aquilo. ela sorriu, com o leve sorriso de quem já ouviu muito bêbedo na vida. ao sair do bar gritei, "isto parece-me o gana!". e voltei, aos tombos, para o sítio que chamam casa. minha.
não sei muito bem porque é que isso me voltou agora ao espírito. ando a passear pelas ruas da cidade que parece morta. tenho um saco cheio de lágrimas guardadas, prontas a rebentar, à primeira palavra irreflectida. meço os meus passos, como se fosse um geógrafo à beira do precipício. tento ouvir o zumbido dos carros que passam com intervalos cada vez maiores. inconscientemente, tenho vontade de que esta noite passe depressa, assim uma esperança de chegar à cama e cair desmaiado, só acordando amanhã já muito tarde, sem ninguém em casa que me faça perguntas, sem ninguém no mundo que olhe para mim. sim, quero ficar invisível. porque, afinal, continuo a pensar que não existo realmente.
coloco um cd no leitor e, sei agora, serei incapaz de fechar os olhos. alguém canta num francês macarrónico, incompreensível até ao mais experimentado dos linguistas. gostava de saber dançar, sabias, ó leitor inventado a quem me dirijo nesta lamentável chuva de palavras. tenho os pés frios mas não sinto falta da manta quentinha. o que eu gostava mesmo de ter hoje era a mesma vontade de voar que me fez chegar aqui, a este lugar onde eu ainda não vivi. em cima da minha mesa de trabalho, acumulam-se livros e projectos e restos de almoços. pelo chão, a roupa de toda a semana que ainda não passou. tenho medo de não conseguir passar desta contagem descrescente de memórias. pressinto a finitude das minhas histórias e não sei onde me vou poder encostar, para viver tranquilo, no fim do fim da minha vida. ainda se tivesse o número de telefone daquela velha...
Arquivo do extinto blogue Esferovite- a vida em pedaços (13-08-2003/ 4-01-2006)
domingo, abril 04, 2004
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