uso óculos escuros para esconder o tamanho dos meus olhos e o sangue que me salta pelas pestanas. caminho pela calçada com sapatos de sola dura que fazem tac tac como o relógio do fundo da noite antes de adormecer. ando direito, por entre as frases das pessoas que passam distraídas, tão direito que julgo até que não me vêem. sou insuspeito, repito-me a cada passo. canso-me. ando direito.
quero meter um pauzinho na engrenagem.
sento no fundo do café, nas mesas da sombra, talvez com medo das correntes de ar, talvez querendo soprar forte como o adamastor de cada vez que se abre a porta, corrente de ar a rebentar. vejo-os que falam distraídos, vejo-os que pagam cafés. senhoras a comer bolos, crianças, as crianças, talvez se elas, talvez. também a mim já me cuspiram na cara e já me arrastaram pelo chão. uso óculos escuros.
quero meter um pauzinho na engrenagem.
se volto a casa, sim, se volto a casa, mas se volto a casa. pode-se chamar casa ao lugar onde estivemos sempre, onde ninguém nos conhece. abro a porta e o meu pai a adormecer na mesa da cozinha, os cabelos a despentearem-se para dentro do prato da sopa. minha mãe a chorar junto à janela, a olhar a vizinha da frente, que fuma, que ri, na janela dela. meus irmãos que dormem, sempre estiveram adormecidos, desde que nasceram, mesmo que eu fale, mesmo que eu. trancado no quarto. se volto a casa.
um pauzinho, pequeno que seja, na engrenagem.
Arquivo do extinto blogue Esferovite- a vida em pedaços (13-08-2003/ 4-01-2006)
quarta-feira, abril 21, 2004
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