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sexta-feira, abril 16, 2004

número de telefone

na minha sala, a minha sala vazia de tudo o que é humano, resiste um telefone, daqueles antigos, cheio de dedadas de doce e de impressões digitais de chocolate. é ele que me acorda do meu silêncio, do meu entediante processo de cativação da existência. estou sentado no chão, no chão frio de tijoleira, só umas calças muito leves me separam do arrepio lento mas constante dos dez graus centígrados desta primavera de gelo. olho o tecto branco, com fissuras, e os meus dedos estão entrelaçados entre jornais. na minha sala vazia.

eu já não ando, já não ando, eu escorrego pelo chão desta sala, desta sala vazia. as minhas calças, que eram tão brancas, tão brilhantes, ganharam entretanto a tez dos berbéres, ficaram acastanhadas, avermelhadas, ficaram escuras, nocturnas, e eu já não ando, já não ando, apenas me deixo ficar, no tecto branco, já não as calças, as fissuras, por onde eu ainda vou fugir, quando adormecer, quando voar, quando me apetecer encontrar o céu.

quantas vezes eu me esqueço de que existem janelas, janelas que poderiam trazer uma outra luz a esta sala, tão vazia, vazia de tudo, esqueço-me de que as janelas e só o telefone, daqueles antigos, cheio de dedadas impressões digitais, tenho a impressão, que toca, ringa, tringa, e interrompe-me do silêncio como um assobio de vento, e eu que, já não ando, já não ando, os dedos salivados, os jornais, atendo, e, quantas vezes me esqueço, tu existes.

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