estou no meio da zona industrial, rodeado de armazéns onde homens grandes carregam coisas pesadas e conduzem carros de todos os tamanhos e funções. eu, eu só sou grande do lado de fora. os homens apertam-me a mão como se eu fosse grande como eles, falam-me como se eu pertencesse ao mundo deles. sou, em tudo, parecido com eles. mas sinto-me longe de mim. fico exausto com o pó fino que salta do chão sempre que passa um carro. está calor e eu tenho sede. os homens olham para mim e dizem boa tarde doutor. eu não sou daqui.
mesmo agora, quando já voltei para casa, sinto que o mesmo pó me rodeia. nestes dias não consigo limpar as lentes dos óculos como deveriam ser limpas. sento-me à mesa, como sempre, a minha querida querida mesa. olho os meus dedos limpos, as unhas lavadas. pego numa caneta, uma caneta cara, que foi do meu avô, e abro o caderno, o meu querido querido caderno, onde me tenho ocupado a anotar de tudo um pouco, desde planos de obras a contas de cabeça e moradas de desconhecidos. escrevo um poema longo, longuíssimo, do tamanho dos meus livros. e quando volto a fechar o caderno, sou homem crescido outra vez. mas ainda diferente.
abro o fecho das calças e estico as pernas debaixo da mesa.tenho os pés descalços e pela janela aberta entra uma brisa que anuncia o chegar da noite. no rádio tocam músicas antigas, desconhecidas aos meus ouvidos. eu fecho os olhos e penso que, muitas vezes, seria possível encarar os problemas que nos surgem de outra forma, ter uma atitude diferente perante as coisas que nos acontecem. abro um maço de cigarros acabadinho de comprar e tiro um. brinco com ele nas minhas mãos. no armário, ao lado da mesa, estão cinco, seis isqueiros. olho-os. deixo cair o maço no chão, ao cair faz um som seco, como se fosse um pequeno corpo a escorregar por uma parede. um pequeno eu.
Arquivo do extinto blogue Esferovite- a vida em pedaços (13-08-2003/ 4-01-2006)
segunda-feira, abril 05, 2004
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