Tenho a sensação de ter assistido ao teu nascimento, lá longe onde ainda não havia nem luz nem sol mas onde os passarinhos começaram a desenhar existência entre os bicos. Tenho a sensação de ter começado assim também mas algures onde nada fazia tanto sentido como nesse mundo que inventas com os pequenos passos que dás.
Existe, algures por este cubo de gelo em ardente combustão, uma criança que se inaugura como corpo de mulher. Existe, algures neste campo nunca antes vindimado, uma séria indecisão quanto aos passos a dar. Mas, ainda assim, um arrepio toma os contornos corporais mais distantes. Porque essa criança não tem nada de vulgar. É uma criança-símbolo, um nascimento antes de o ser. É uma criança que já conhece o Verbo e os caminhos pelos quais se encontra o corpo dos homens.
Este frio queima como gelo, mulher. Este frio coze-nos a alma aos poucos, sem que seja perceptível a sensação dolorosa que só uma enorme tensão pode originar em nós. A tensão de se ver o nascimento e o crescimento de algo que vem para nos ferir. Não uma ferida de sangue, antes uma ferida de carne. Carne mostrada aos olhos, aos dedos, à boca, à língua, ao sexo. Carne que se escorrega pelo nosso pensamento. Como se fosse possível ser-se apenas uma vez. E sinto o ferro das bandarilhas a espetar-se em mim.
Arquivo do extinto blogue Esferovite- a vida em pedaços (13-08-2003/ 4-01-2006)
sábado, abril 10, 2004
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