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segunda-feira, abril 26, 2004

astronauta

Deixa-me uma manhã livre na agenda para que eu possa respirar esta semana, uma manhã livre para que eu possa sair e ir ver talvez o mar, talvez o campo, uma paisagem, uma coisa qualquer. Estamos aqui fechados sem ter por onde sair, aqui fechados sem saber bem para onde vamos e tu, nesse estado floral de quem está em todo o lado e em lado nenhum ao mesmo tempo, começas a irritar-me, a irritar-me profundamente.
Quis ser um astronauta quando era criança. Chegava junto dos adultos e dizia, quero ser astronauta. Eles riam-se, acenavam com as cabeças enormes, de óculos gigantes e bigodes que lhes dividiam a cara, riam-se, quero ser astronauta. Um dia, íamos de viagem para férias na praia, durante a noite, fui o caminho todo a olhar a lua pela janela do carro, a lua com os seus desenhos que eu tentava descobrir sem perceber. Queria ser astronauta, ir de carro até à lua, não à praia, à lua, porque lá em cima também havia sol, porque lá em cima havia desenhos no chão e o chão era todo branco até ao fim do mundo, ou melhor, até ao fim da lua.
Uma amiga minha veio dizer-me ao ouvido que a lua talvez não fosse um bom sítio para se viver, porque era longe da escola e lá em cima, ao que parece, não havia desenhos animados na televisão. Eu parei um pouco para pensar e ela aproveitou a minha ida às nuvens naquele instante(quando penso vou às nuvens) para me beijar a boca. Percebi que além de desenhos animados e escolas, na lua talvez não houvesse daqueles beijos molhados que nos deixam a cabeça a andar a roda. Foi a primeira vez que recebi assim um beijo molhado, um beijo de que gostei de tão diferente dos outros beijos todos de óculos gigantes. Fui ter com um adulto, puxei-lhe pelas calças e disse-lhe, já não quero ser astronauta. Ele não deve ter compreendido a minha alteração de planos visto que, passados uns dias, no meu aniversário, ofereceu-me na mesma uma nave espacial do Ulisses 31.
Acabadas as idas à lua e as tonturas dos beijos, fechei-me dentro de casa como numa caixa. Convidava os meus colegas da escola para distrair os meus irmãos e aproveitava para ficar fechado na casa de banho a olhar para a banheira a encher-se de água. Estava sentado na sanita, que parecia um farol com vista para um mar imenso, a maré a encher na banheira. Tudo isto deve ter começado depois de uma ida a Peniche, num passeio da escola. Lembro-me de ter entrado no forte e ter fechado os olhos junto ao parlatório dos presos. Tive medo de não encontrar a saída daquela outra caixa. No entanto, ver o mar do jardim da prisão era agradável. Senti uma qualquer vocação marítima mas não corri para junto de ninguém a dizer que queria ser marinheiro( a idade aconselhava prudência). Um farol pareceu-me um poiso bem mais interessante. Um farol onde pudesse olhar o mar e ver os desenhos animados, onde a minha amiga me pudesse dizer coisas que me levassem à lua enquanto aproveitava para me molhar os lábios.
Entretanto, a banheira transbordou e o relógio digital comprado na feira a dizer water proof deixou de funcionar porque ficou todo embaciado por dentro. Fiz a barba e comprei cigarros a caminho da escola. Sentei-me no banco do liceu a olhar uma árvore. Não quis ser jardineiro, nem pastor. Quando está frio na rua, o fumo do cigarro confunde-se com o vapor da minha respiração. Nesses dias assusto-me. Parece que enchi os pulmões de fumo e ele não acaba de sair, numa sensação de todo eu, por dentro, ser uma nuvem de fumo. Tenho as recordações todas misturadas. O mar cheio de presos, os desenhos animados com beijos na boca.
Deixa-me uma manhã livre na agenda para poder fugir daqui, de ti. Talvez possa voltar a Peniche, talvez queira ir ver o mar ou o campo, os desenhos animados, um jogador de futebol. Deixa-me uma manhã livre para eu poder respirar e talvez fique fechado numa caixa a ouvir as vozes dos meus irmãos e dos meus colegas da escola a conversar na sala ao lado. Talvez procure uns óculos gigantes ou deixe crescer um bigode que me divida a cara. Não vou dizer a ninguém que quero ser astronauta. Mas talvez me encontre no sótão, no meio de caixotes poeirentos, à procura da nave espacial do Ulisses 31.

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