este barulho que ouves, quando dormes, sou eu a nadar de costas, na piscina isolada no monte, onde, em criança, tu corrias com os cabelos soltos e te deixavas cair pelas escadas abaixo. este barulho de água que ouves nos sonhos, sou eu a chegar aos teus pés, e tu ainda criança a chorar a um canto da sala, porque ninguém te queria dar beijinhos, porque ninguém te segurava a mão. esse barulho que ouves, quando dormes encostada aos sonhos que julgas não ter, sou eu a abrir a porta do quarto com os sapatos na mão e a despentear o meu cabelo com a camisa que se descola do meu peito suado. é de madrugada e já não chove. esse barulho que ouves, é o barulho que fazes, a adormecer.
onde não houver um minuto restante de silêncio, podes estalar os teus pés e dizer baixinho que o sono te chega como as coisas doces. fazes o teu ninho no meu corpo e sabes que podes ficar em sossego. porque eu sou como os pássaros velhos, voo sempre em círculos e tenho perfeita consciência do sítio onde vou ficar para os meus dias. a ti, que a penumbra dos desesperos louros inquieta, resta-te respirar muito depressa e sentires o coração aos saltos que te vai sair pela boca sempre que dizes alguma coisa e eu faço cara de cão com pulgas. tu sabes que tudo tem um lugar. e que esse lugar sou eu deitado numa cama que está longe, mas onde tu estás a meu lado a passear a tua mão quente sobre o meu umbigo.
entretanto, mergulho-me nas águas frias e nado de costas entre os limiares da luz nocturna do nosso quintal. tu estás lá em cima, no vigésimo sexto andar, e ouves-me baixinho, como um rádio que começa a ficar sem pilhas. eu subo e desço no elevador que não me leva a lado nenhum. eu faço os mil passos pelos diversos corredores do edifício. e tu sabes que quando abrires de novo os olhos e eu vou estar lá de olhos abertos para ti. porque a luz do quarto é pouca e é bom ter um pouco de castanho a fazer de candeeiro. onde não restar silêncio, tu sabes, restará uma palavra. e onde não houver mais nenhuma palavra, um som tomará o seu lugar. é assim que se arrumam as coisas. no seu lugar do universo.
Arquivo do extinto blogue Esferovite- a vida em pedaços (13-08-2003/ 4-01-2006)
terça-feira, abril 20, 2004
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