podia dizer, estou vivo, podia dizer, cortei o cabelo, podia dizer, apetecem-me todos os cigarros do mundo, sim. é sexta-feira, sexta-feira santa, pessoas paradas em frente da igreja, vestidos pretos, sexta-feira, as senhoras velhas a comprarem peixe no mercado de manhã, uma chuva dos diabos, senhoras velhas a encaminharem-se, aos pares, para a frente da igreja. podia dizer, estou vivo, podia, sim.
podia dizer, cortei o cabelo, podia dizer, uma manhã feia, podia dizer, caras bonitas não aquecem corações, sim. sexta-feira, igual a todas as outras sextas-feiras do mundo, o jornal amarrotado debaixo do braço, os cafés habituais todos fechados, e nenhum barman é católico, sequer religioso, andar pelas ruas vazias e pensar que já só se respeita o negócio, pois. senhoras velhas a pedir meias de leite e a comer pastéis de nata nas montras das pastelarias. o mundo todo fechado, o cabelo cortado.
podia dizer, apetecem-me todos os cigarros do mundo, podia dizer, tenho dedos e não tenho anéis, podia dizer, um livro é um livro mas eu hoje estou de folga, sim. sexta-feira, havia de ter ido à missa, sim, noutra vida qualquer, os sapatos sujos com o pó da rua, ou a lama de uma páscoa muito cedo no calendário. senhoras velhas a pedirem ajuda para atravessar a estrada, carros que andam só dentro das ruas dos donos, senhores mal habituados aos prazeres do passeio. os cigarros, sim. mas eu não fumo.
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sexta-feira, março 25, 2005
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3 comentários:
O problema é o que fazer com as cinzas.
Como deve ser saboroso passar uma sexta-feira santa em Portugal como se fosse um dia recuado no tempo, memória aguda da nossa infância ou de um passado ancestral. Comer pastéis de nata ou de Belém. Moro no Brasil. Descendo de portugueses. Em algum espaço da minha memória, flutuam mulheres vestidas de preto indo à igreja numa sexta-feira santa de 1850 ou mais ou menos isso.
o poeta e amigo Jaime Leitão indicou o seu sítio, realmente muito bonito. Gostei das imagens, da saudade indefinida que evocam..
um abraço.
Sandra Baldessin
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