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segunda-feira, fevereiro 23, 2004

andamento em dó menor

e quando menos se espera, é carnaval. recupera-se um monte de roupas velhas que tinham ficado esquecidas no armário do sótão, rapa-se a barba, corta-se o cabelo e sai-se à rua, onde chove, chove muito, mas nada parece mais importante do que levantar os pés ao som do sambinha mixuruca que passa em todas as casas que têm portas abertas para a rua. a máscara, que já não era boa, ficava toda encharcada, o que nos resta do cabelo é mais próximo de um pinto do que outra coisa qualquer, sempre que se passa por uma rua mais ventosa, sentem-se facas a entrar pelo nosso corpo dentro. e quando menos se espera, é carnaval.

ainda assim, há um homem que me observa como se conseguisse estar distante de toda a loucura que escorre dos copos de plástico. copos de plástico a valer um euro e trinta. moedas, moedinhas a saírem da carteira, a noite inteira. sorrisos desfocados pelos olhos mal pintados, olheiras com contorno de bebedeiras. dizem que usava chapéu e que construía sambinhas de dor de cotovelo, histórias de homens e mulheres que acabavam sempre mal. eu, sentado na sala, a olhar a televisão. ou fechado num carro a enumerar nomes de fadistas que são mesmo fadistas (nada de gajas que se chamam só mariza, nada de gajas que assinam cátia com K).ainda assim, há um homem que me observa.

do nariz escorre o frio que invadiu a noite passada. gasto lenços de papel em catadupa e sinto um arrepio estranho pela altura da coluna. telefonas-me de manhã para me dizeres que me amas. eu estou embrulhado nos cobertores e digo que farei amor contigo, farei amor contigo. telefonas-me de manhã e dizes que me queres. eu fecho os olhos e viajo. auto-estradas onde chove a noite inteira, com um rádio ligado na emissora nacional, passando música ligeira em diferentes línguas europeias, como se os noctívagos gostassem de música para dormir. perto do final da história, lembro-me de um homem de barbas, olhos muito abertos, como quem está triste. espero por uma janela onde possa saltar. do nariz escorre o frio que invadiu a noite passada.

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