Ricardo atira às nuvens. Como se atirasse a matar, Ricardo atira às nuvens.
Todas as manhãs, logo bem cedo, quando a primeira luz do dia surge, Ricardo sai da cama, dirige-se ao armário, retira de lá a caçadeira e vem para a rua. Do seu quintal, Ricardo atira às nuvens. Não que não goste delas ou que fomente dentro de si alguma espécie de argumento contra a existência das mesmas. Também não é por ódio ou por vingança, sequer o gosto de atirar por atirar o move. Todos os dias, Ricardo atira às nuvens. Como quem colecciona isqueiros ou faz jogging ou lê um livro. Pela manhã, Ricardo atira às nuvens.
É um sonho que o faz atirar. Um dia, com os seus tiros, Ricardo pretende desenhar a mais bela nuvem que jamais existiu em todo o universo. Uma nuvem que obrigará todas as pessoas a parar para a observar durante alguns segundos. Como a muitos outros, em diversas formas de arte, a Ricardo não interessa a consequência fantástica de conseguir parar o mundo com a sua obra, mas a sua obra em si. Ricardo sonha desenhar uma nuvem. Desenhar uma nuvem com os seus tiros.
Vive numa pequena casa no meio do nada. Para além dos limites do seu quintal, só algumas dezenas de árvores divididas a meio por uma pequena e esburacada estrada que Ricardo utiliza para conduzir o seu carro até à cidade em dias de compras. O facto de viver sozinho no meio de tanta solidão não o deprime nem o assusta. Aliás, é para ele motivo de grande alegria. A inexistência de vizinhança é até uma vantagem pois acaba por o libertar completamente para o exercício da sua arte. Ricardo pensa que a melhor forma para não sermos incomodados é, justamente, não termos quem incomodar. Além disso, gosta de ocupar a maior parte do seu tempo livre em actividades de contemplação. Com o Bach certo, é capaz de ficar horas, um dia inteiro mesmo, a observar o movimento imóvel de uma flor selvagem. Em dias de vento, acompanha-se de Paganini e soltam-se-lhe os cabelos em viagens de olhos fechados pelas searas da sua imaginação.
Ricardo não tem amigos e, pelo menos, não se lembra mesmo de algum dia ter tido algum. É incapaz de reconhecer as feições de qualquer companheiro de escola que possa ter tido e nem nenhum nome lhe vem à ideia quando se sente tentado a pensar nisso. A bem da verdade, Ricardo raramente ou nunca sente essa tentação. Também não lhe ocorre nenhuma conversa que tenha tido nem recentemente nem em nenhum outro momento da sua vida. Tem uma vaga ideia de trocar algumas palavras de circunstância com a dona [?], a senhora da mercearia da qual também não se consegue lembrar o nome.
Ricardo não sabe nada, ou quase nada, do que se passa no mundo. Não tem televisão, não ouve rádio, não compra jornais. Não lhe interessa a guerra como não lhe interessa a paz. Não se comove com o fim das ideologias como não se emociona com a existência delas. Não festeja campeonatos como nunca lamenta as derrotas. Nenhum fenómeno actual o toca. Possui, no entanto, uma vasta colecção de música herdada do seu pai por omissão testamentária aquando da morte deste. Tal como o pai, também a mãe de Ricardo morreu, esse dia tem ele bem presente na sua memória. Não que nutrisse por ela especial carinho ou que os unisse especial ligação. Chegou a casa ao fim de uma tarde e não encontrou sinal da mãe. Ao procurar, finalmente, no armazém onde se acumulavam uma série de objectos desnecessários agregados pelo pai, viu a sua mãe suspensa um metro acima do chão, com um laço de corda a ornar-lhe o pescoço. Ricardo ficou uma semana sem comer e sem sair do quarto. Lembra-se que um advogado da família tratou de todas as diligências para que ele pudesse ficar a viver sozinho.
Todas as manhãs, perante o primeiro sinal de sol, Ricardo levanta-se da cama, tira a caçadeira do armário e sai à rua. A arte comanda a sua vida e, no seu caso, a arte que lhe pertence é desenhar nuvens. Ricardo atira às nuvens, como se atirasse a matar.
Duas das salas da casa de Ricardo têm as paredes cobertas de livros. Numa delas guarda enciclopédias, dicionários e livros de imagens. Na outra, dividida que está em duas secções, tem a literatura e a ciência. Ricardo gosta de ler e inspira-se recorrentemente nos livros para imaginar o desenho que depois passa a executar nas suas nuvens. O que por vezes causa em Ricardo um sentimento de estranheza é que a cada livro que lê surge-lhe uma ideia de nuvem diferente e assim praticamente a cada semana que passa corresponde uma ideia diferente de nuvem. Logo novas exigências nascem, na direcção do tiro, na execução da obra.
A par da vertente imaginativa da sua arte, Ricardo desenvolve interessantes teorias sobre os fenómenos atmosféricos e a sua conjugação com esta forma de intervenção na natureza. O tempo cinzento e carregado com nuvens espessas e baixas permite-lhe grandes superfícies de intervenção e obriga-o a sessões longas e determinadas. Os dias de céu pouco nublado apresentam-lhe pedacinhos sensíveis de nuvens em que, por vezes, um só tiro basta para limar arestas ou quebrar o conceptualismo. Nos dias limpos de verão, Ricardo não pode trabalhar. Nos dias de chuva parece-lhe inútil criar, pois nesses dias ninguém olha para cima, apenas se oferecem faces de olhos fechados ao prazer da água natural.
Ricardo atira às nuvens. Como se atirasse, decidido, a matar, Ricardo atira às nuvens.
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domingo, maio 02, 2004
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