“É um erro a cidade alguma vez a
Cantaste?”
Gastão Cruz, Os Nomes desses corpos
#
em ti te bastas
luz infinita
no trabalho dos espelhos
#
a ninguém será dado
o abraço quente apetecido
#
és longa avenida
carregando nos braços verdes
o castelo como olhar
#
procuro um caminho
para os teus lábios
beijar
#
diria teu peito
calçada
na sua sombra
sorrio
#
como tu
passo a passo
me degrado
#
há uma mulher velha
visão amarela
sentada na soleira
jornal antigo
com uma beata nos dedos
#
dizem que se chamava
Mary
como as actrizes dos filmes
e que batia em mil homens
sem as armas dos cowboys
#
Merry Mary Maria
Maria Cachucha
#
aqui até as fontes
guardam memórias
já não serve aos meus lábios
esta água
#
tenho os pés bêbedos
como enxadas envelhecidas
no solo gasto de um jardim
#
pois deveria ser mais nobre
o trabalho da enxada
escavar o mundo
talvez
ou a vida
#
passo a passo
consigo encontrar
o sabor da pobreza
que o império nos deixou
#
subo devagar
não quero acordar o passado
#
à minha esquerda
toda a novidade
pelas escarpas
a fazer lembrar
um deserto esquecido
pelos dedos sujos
de um comerciante invisível
#
à minha direita
as escadinhas importadas da infância
olhares na casa da avó
a perfeição assustadora de um lego grande
caiada entre barras de azul
#
uma última sombra
um último sinal
de ausência de sede
#
pressinto toda a festa
agora deserto
onde antes movimento
e homens mulheres brilho
agora pó
onde toda a riqueza desta cidade
abandono
#
o doce marulhar das folhas secas
ao adivinhar-se uma cidade calada
pela promessa de chuva
#
centro-me
e à minha volta
como roda dentada
recorto o olhar pelos desígnios
imaginados nos homens
lá em baixo
acolhem-me todos os poemas
neste itinerário
desfeitos
como uma cidade
prostrada às suas ruínas
este poema foi vencedor o concurso Arte Jovem 2004, uma organização da Câmara Municipal de Torres Vedras.
Arquivo do extinto blogue Esferovite- a vida em pedaços (13-08-2003/ 4-01-2006)
terça-feira, maio 18, 2004
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