Arquivo do extinto blogue Esferovite- a vida em pedaços (13-08-2003/ 4-01-2006)

quarta-feira, maio 05, 2004

xana schulman goes to heaven

Deixa-me ficar sentada na sala branca da minha vida, a sala branca, a minha vida, sentada na sala onde me encontro, na sala onde luto por me encontrar, nas paredes de tecido, brancas, no chão liso, branco, no mundo, enfim, branco, e onde tudo o que eu oiço é silêncio, onde tudo o que me oferecem é uma visita guiada à cantina, viagem bidiária à cantina, onde a comida é neutra como os comprimidos de vitaminas, onde a água é água e só serve para me vitaminar um pouco mais, um pouco mais de esperança química para suportar o silêncio, esse silêncio, onde eu me deixo ficar, sentada, a imaginar, ou será que me lembro, de um mundo lá fora, um mundo lá de fora onde talvez ainda exista luz natural, onde talvez ainda exista ar natural, onde talvez ainda exista uma pessoa diferente, onde talvez ainda reste um sítio para comer que não seja a cantina com comida neutra, onde talvez ainda exista uma sala que não seja branca e talvez ainda sobre algum lugar que não esteja envolvido pelo silêncio, sim, disso lembro-me perfeitamente, lá fora, lembro que em mim tudo era ruído, lá fora, lembro que em mim tudo era outra pessoa qualquer, lá fora, lembro, afinal lembro, não é imaginação, do lá fora onde havia silêncio e sei que cá dentro não há lugar para a imaginação porque o que eu tenho é uma sala branca, uma cantina bidiária, a comida neutra, a água e as vitaminas e o silêncio, todo esse silêncio, que eu nunca encontrei nesses lugares onde fui à procura de silêncio, aquelas praias do sul de Espanha, aquelas vinhas de Bordéus, a praça de Nôtre-Dame a meio da noite, o circo romano em pleno dia, os Alpes suíços, os violinos de Viena, o Reno a furar a Hungria, o que resta de sonho de Europa na Ucrânia, o que já não resta da Praça Vermelha, o comboio fantasma da Sibéria, as águas frias até ao Japão, as águas quentes até à Austrália, o Pacífico por pacificar, o deserto americano, os barcos cheios de sonhos de estudantes madeirenses, e todas as ruas, todas as travessas, todos os becos de Lisboa, todos os desconhecidos e todos os amigos, todas as vidas e todas as mortes, silêncio, tudo o que eu me lembro de ter vivido sem silêncio, e acordar um dia sentada, deixem-me estar, nesta sala branca, a minha vida, e perceber que para além da viagem bidiária à cantina, para além da comida neutra, da água, das vitaminas, da água, das vitaminas, não há outro lugar onde eu procure, não há outro lugar onde eu encontre, não há outro lugar onde eu procure porque não há outro lugar onde eu possa encontrar, este silêncio, este infinito e sepulcral silêncio, onde eu fico sentada, deixem-me estar.

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